As regras orçamentais num mundo fiat

Começa a generalizar-se a ideia de que não há como rejeitar a oportunidade para a expansão orçamental proporcionada pela política monetária dos governos (perdão, dos bancos centrais!).

É um segredo de polichinelo que as regras orçamentais da União Europeia, depois de terem sido suspensas por causa da pandemia, dificilmente vão voltar a ser o que eram antes da pandemia. O debate orçamental na Europa está a aquecer e será também influenciado pelo que vier a acontecer do outro lado do Atlântico. Mas uma coisa parece evidente: As alterações que vão sendo propostas conduzem invariavelmente no sentido de uma maior expansão orçamental. Assim, levanta-se uma questão prévia: será a pandemia verdadeiramente causa ou um mero pretexto político para a necessidade de reformar as regras orçamentais da União Europeia?

A boa regra é aquela que é aplicada e respeitada. Se é aplicada tende a ser respeitada, e se é respeitada é porque se sabe que será aplicada. As duas qualidades reforçam-se mutuamente. Mas aqui jaz o problema das regras europeias. Há muito que elas deixaram de ser observadas e, pior do que isso, tendo sido ultrapassadas pela realidade elas poderão mesmo ter deixado de ser aplicáveis. Recorde-se que a regra da dívida pública na União Europeia estipula um limite máximo de 60% do PIB em cada país. Todavia, a regra não é no geral observada. Na zona euro, como um todo, o endividamento soberano é hoje de 100% do produto e a tendência a médio prazo prevê-se de crescimento. Em suma, as regras encontram-se descredibilizadas.

No final de 2019 a dívida pública na zona euro já estava bastante acima do patamar de 60% do PIB previsto nas regras de Maastricht. Estava então em cerca de 85% do produto. Ou seja, a pandemia veio agravar o que já constituía uma situação de incumprimento crónico. Em defesa das regras, pode também afirmar-se que, na sequência da revisão institucional ocorrida no final de 2011 (o pacote legislativo que ficou então conhecido como “six-pack”), – que introduziu o défice estrutural e a obrigação de reduzir a dívida pública em excesso ao ritmo de um vigésimo por ano –, a dívida pública na zona euro tinha começado a diminuir. Entre 2014 e 2019 diminuiu cerca de 10 pontos percentuais. Mas foi sol de pouca dura.

A suspensão das regras orçamentais não encontrou a mínima resistência. A pandemia deu à Comissão Europeia a munição para disparar sobre o “six-pack”, ao qual afinal faltava músculo, e seguiu-se a recomendação de manual: em tempos de crise, a política orçamental é expansionista e cumpre uma função de estabilização macroeconómica. As opiniões entre economistas foram consensuais, o que, para além de ter demonstrado que todos estudámos pelos mesmos manuais, demonstrou também alguma falta de apego às regras estabelecidas. Porém, rapidamente se reinstalou a falta de consenso. Duas questões passaram a colocar-se.

  • Primeiro, devem os estímulos orçamentais serem retirados logo que a economia volta a crescer?
  • Segundo, a partir de que momento deve o estabilizador automático funcionar em sentido inverso?

Recentemente, têm sido avançadas ideias quanto a uma nova abordagem à política orçamental. A título de exemplo, destaco a proposta avançada pelo trio Orszag-Rubin-Stiglitz. Segundo estes autores, a política orçamental deve evoluir de um paradigma baseado em âncoras orçamentais (“fiscal anchors”) para um modelo de “estabilização automaticamente selectiva” (tradução livre que faço da expressão “focused automaticity”, utilizada pelos autores). Ou seja, as regras devem permitir espaço de expansão orçamental em domínios que a médio prazo venham a ser essencialmente determinados pela evolução de variáveis passíveis de observação (v.g., a Segurança Social e a esperança média de vida), mas sem se passarem cheques em branco.

O modelo de Orszag-Rubin-Stiglitz ensaia uma resposta ao problema que desde sempre tem afligido a política orçamental, e que as perguntas antes colocadas indiciavam. Refiro-me ao problema que resulta da aplicação do estabilizador automático. A experiência mostra-nos que ele é de fácil aplicação quando se trata de “abrir a torneira”. Mas é de mais difícil aplicação quando se trata de a fechar.

Por outras palavras, o estabilizador automático só existe no manual. Assim tem sido desde que Keynes inventou a macroeconomia e Samuelson o manual. (Sobre isto, a relação entre a gestão das finanças públicas e o cálculo político-partidário, recomendo a leitura do eterno “Democracy in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes” de James Buchanan, um clássico que todos os cidadãos interessados deveriam ler.)

Nas últimas décadas a intervenção do Estado na economia veio sempre a crescer, fosse com bons ou maus resultados. Quando o crescimento da despesa era acompanhado de crescimento económico, os louros do sucesso iam para o papel fundamental da despesa pública. Quando ao crescimento da despesa não correspondia o crescimento da economia, a culpa era da má aplicação da despesa. Um bocadinho como o comunismo: nunca funcionou porque foi sempre mal aplicado. Até hoje, quem na minha opinião melhor falou sobre isto foi Milton Friedman. Dizia Friedman que quando uma empresa privada ia à falência, ela fechava a porta; já o Estado, quando ia à falência, pedia mais dinheiro (aos contribuintes, aos do presente e aos do futuro).

Os argumentos de hoje são mais refinados. O mundo é mais “complexo”. Relativamente às regras orçamentais, os novos apóstolos da despesa pública dizem-nos que as regras não devem constituir-se como finalidades em si mesmas. As regras devem ser entendidas como meramente instrumentais em prol de uma finalidade superior. O fim é a prosperidade societária. Já os limites ao défice e ao endividamento são apenas meios. Trata-se de uma argumentação sedutora, razoavelmente lógica para quem acredita na bondade despesista do Estado, que encerra uma espécie de “há vida para além do défice” (2.0), uma versão melhorada e até moralmente superior à original, e que se torna ainda mais sedutora numa altura em que a pandemia e a disrupção tecnológica estão a deixar tanta gente fragilizada e com medo do futuro.

Começa a generalizar-se a ideia de que não há como rejeitar a oportunidade para a expansão orçamental proporcionada pela política monetária dos governos (perdão, dos bancos centrais!). No limite, se o Estado toma fundos a taxas negativas, o seu endividamento só poderá ser um bom negócio. Assim, se a dívida do Estado passou a ser boa e até credora de juros (!), o corolário é que não deveria haver limite ao endividamento público. Estabilizador automático?! Mas para quê, se a despesa e a dívida passaram a ser uma avenida de sentido único…!? A tese possui (in)felizmente dois senãos. No imediato, a expropriação dos aforradores. A prazo, a inflação. Nenhum dos dois augura grande futuro. O mundo “fiat” está a namorar o precipício.

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