Sultões do Swing

O Governo tem a arrogância de quem não sabe confinar e tem a incompetência sábia de quem não sabe desconfinar.

Fecha-se por medo, abre-se por cansaço. O País está reduzido a esta pobreza fracturada, a esta dicotomia entre o medo e o cansaço que invade os espíritos como um impulso animal. O Presidente da República está do lado do confinamento, o Governo faz um silêncio que soa a funeral, mais parece ter sido submetido a uma terapia de choque em função de uma variação política do stress pós-traumático. Quanto aos portugueses, estes não querem perceber que o sentido das coisas é um edifício frágil, construído a partir de farrapos científicos, memórias de outras histórias, artigos de jornal, megapixels na televisão, pequenas vitórias, pessoas odiadas, pessoas amadas. Nesta sociedade pós-moderna a casa é uma representação do Inferno e uma negação do Mundo. Estar em casa é estar morto.

Depois existe um exército de abaixo-assinados, seja para abrir a economia, abrir as escolas, abrir a escala da igualdade, abrir o futuro das gerações, fechar o colóquio das emergências para abrir o certame das utopias. Esta legião de comentadores fala em nome do futuro, mas representa uma visão idealizada do passado, todos são potenciais emigrantes para um País que não existe, não percebendo que esta perda representa parte de uma humanidade comum. Fazem nas suas declarações políticas a hipervalorização de uma enciclopédia de posições ideológicas antiquadas como se fossem uma nova representação do futuro. No espelho partido que filtra o Mundo não existe pandemia.

Na sua apatia mansa, silenciosa, desconfortável, o Governo tem a arrogância de quem não sabe confinar e tem a incompetência sábia de quem não sabe desconfinar. O medo é a política do Governo, uma projecção sofisticada da política da inacção. Não fala, não diz, não esclarece, não se mexe, não se vê, tudo porque receia as consequências políticas de continuar confinado, tal como receia as consequências políticas de começar a desconfinar. É a política do swing ao som estridente do jazz de uma pista de obstáculos. No País político entende-se a abstinência, entende-se o excesso, mas ignora-se compulsivamente a moderação e o equilíbrio. Abre-se a sociedade e os portugueses morrem; fecha-se a sociedade e a economia morre. A decisão é política, a representação da arte da prudência, mas o Governo pede “o consenso dos cientistas”, a representação da lógica da incerteza, o reino provisório de todas as verdades.

Imaginem o Governo numa sala de cinema a olhar estupefacto para um ecrã onde são projectadas uma sequência vertiginosa de imagens fantásticas. Sentado na última fila, o Governo vai-se aproximando gradualmente até ter o nariz perfeitamente encostado ao ecrã. Gradualmente o rosto da sociedade vai-se dissolvendo em partículas dançantes, os mais pequenos detalhes assumem proporções grotescas, tudo se torna finalmente claro quando o Governo percebe que a ilusão não se confunde com a realidade. Esta é a metáfora da experiência política do Governo, uma narrativa através do tempo em que o tempo presente da política é absorvido pela realidade contemporânea da pandemia. Chegados aqui, aqui estamos, sentados em fatias da realidade recheadas com pedaços vermelhos de propaganda.

O confinamento tem custos sociais. O confinamento tem custos económicos. O confinamento tem custos financeiros. Mas o confinamento veio revelar uma “sociedade líquida”, uma sociedade desprovida de memória, na qual o único valor viável e suportável é o do movimento contínuo, é o da satisfação imediata dos caprichos, é o da bulimia do consumo permanente, é o da afirmação categórica e universal do princípio da indulgência na celebração de uma orgia dos desejos. Privados desta existência entre objectos e desejos, a sociedade desespera pelo regresso a uma normalidade fluida, fútil, fugaz, um movimento perpétuo em direcção a lado nenhum, mas que sustenta o grande espectáculo da sociedade do bem-estar reduzido a um registo puramente individual, subjectivo, egocêntrico. O que sobra são os instintos animais do cansaço e do medo.

O Governo ressente-se desta realidade que lhe escapa à velocidade de uma imagem por segundo. Como fazer política em estado de pandemia quando uma sociedade não tem um sentido de comunidade, não tem um sentido de preservação colectiva, não tem a perspectiva de um destino comum. O que é válido para Portugal é aplicável à realidade das sociedades pós-nacionais da Europa.

A Europa não é capaz de gerir esta pandemia porque não contém na sua componente política a necessária imaginação para o desastre. Perdem-se as grandes narrativas históricas, diluem-se as grandes referências ideológicas, evapora-se o instinto de preservação política de uma sociedade global organizada. O passado é observado com uma distância entre o irónico e o cínico, enquanto o futuro é sempre observado como a agregação racional das vontades individuais atomizadas. A pandemia acaba por funcionar como um veículo imprevisível que começa a fazer deslocar as sociedades no sentido das planícies políticas desconhecidas. Modernos, pós-modernos, nacionais, globais, o ferry em que viajamos parece não ter instalado o necessário GPS político, nem os drones exploratórios nos devolvem imagens nítidas daquilo que se aproxima. Deixe-se ficar em casa. O Inferno são os outros.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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