Freguesias & Aventais
O pior desta pandemia é que ninguém parece realmente furioso com o que aconteceu, com o que está a acontecer e furioso certamente com o que continuará a acontecer.
Para salvar o Verão só mesmo a vacinação. Parece uma campanha publicitária para vender refrigerantes alcoólicos a jovens sem futuro. Este é o discurso da Europa no meio da grande estagnação. Em Portugal, as freguesias e os aventais juntam-se na comédia das Eleições e da Maçonaria.
Dou por mim a pensar que existem momentos em que tudo o que de mais negativo existe e emerge à superfície e se exprime através das instituições políticas. Existem portugueses cépticos, radicais, reformistas, libertários, patriotas, mas forças superiores dominam a paisagem da Nação como uma baleia morta domina a fortificação da praia. O País está sonâmbulo e no sono dos justos instalam-se as conspirações da vacina, a “bazuca europeia”, que é uma espécie de bomba terapêutica para asmáticos, mais a economia verde, mais a rede digital com ligação directa para uma horta no Funchal. É tão desalmadamente pobre a narrativa política que a Europa, no esplendor de Portugal, mais parece um romance medíocre submerso por uma avalanche de cartas de rejeição. Uma novela absurda engolida por emails repletos de vírus à espera de um gesto político. É só consultar o spam cartoon.
Não quero convencer ninguém de que tudo está mal, nem que o desemprego é uma doença escondida, nem que a pobreza aumenta, nem que a criminalidade está erradicada, nem que as forças do trabalho organizado, estilo sindicatos, são, na verdade, inimigos do trabalho organizado.
Certo é que o Governo tem poder de vida ou de morte sobre os cidadãos. Veja-se o caso das santas vacinas, o fétiche científico do momento. Ninguém pode escolher a vacina com que vai ser inoculado no Comité Central de Controle à Pandemia. A vacina será a fornecida pelos Serviços Sanitários, sem vestígios de opção, serviço de consulta, liberdade de escolha, ficando ainda o cidadão obrigado a exprimir o seu agradecimento ao Comissário Geral da Inoculação Pública. Em caso de recusa, perde o cidadão a sua vez, sendo pois remetido para o fim da lista de todas as listas. No final da Grande Purga Sanitária, o cidadão continuará obrigado a ceder o seu corpo ao exercício da Soberania Sanitária Comum. A liberdade é um discurso em linguagem braille para deficientes auditivos. Adoro o som das ondas no País à beira-mar encalhado.
Não sei se este procedimento é a representação do pior do Socialismo ou se é o pior do Capitalismo. Não sei se é um exemplo de Centralismo ou uma Falha de Mercado. Tal como na publicidade ao modelo Ford-T, cada cliente é livre de escolher a cor da viatura desde que seja preta. Tal como no Serviço Nacional de Saúde Britânico em que o utente pode escolher o modelo dos óculos desde que seja o exemplar subsidiado. Tal como na República Popular da China em que o cidadão tem o direito inalienável a receber todos os Benefícios do Estado desde que permaneça no local registado no passaporte interno emitido pelas Autoridades. Nestes momentos, o controle da massa dos cidadãos confunde-se entre o Activo Socialista e o Cliente Capitalista. Sejam Socialistas ou Capitalistas, convém sempre lembrar que o desespero provoca o conforto nos inimigos da autonomia e da liberdade.
Esta ideia remete para a convicção de que a liberdade exige sempre a presença e a acção do Governo. Mas pergunto eu ao Povo de Esquerda e à Maioria Silenciosa onde estão os activistas. Será a Europa e Portugal um território de “inactivistas”, obrigando o colunista a pensar que a Esquerda deve ser associada ao valor da Sinistra e a Direita encaixada no valor da Reacção? Será que estamos simultaneamente condenados à Utopia do Futuro e ao regresso à Idade de Ouro do Passado? No mapa político da Europa, onde fica hoje o Presente?
Há um nevoeiro político que cobre o País, que vem da Europa, que transporta uma profunda descrença e o fantasma de uma esperança perdida, onde ninguém se indigna, nem revolta, nem exibe nas ruas das Grandes Cidades da Europa a fúria constitutiva de todos aqueles que querem viver. Não. O pior desta Pandemia é que ninguém parece realmente furioso com o que aconteceu, com o que está a acontecer e furioso certamente com o que continuará a acontecer. Acredito que a ausência de uma revolta generalizada não é sintoma de uma Democracia Liberal, será talvez sintoma de uma Democracia Iliberal – nenhuma Nação conhece o Progresso e o Desenvolvimento quando a atitude prevalecente é a da submissão, do cinismo, da passividade, do “inactivismo”, da resignação, do controle das Grandes Massas, do impenetrável domínio surdo dos Cães de Guerra no cenário da Europa.
Subitamente a imagem da Guernica de Picasso surge-me na memória. O quadro é a explosão surda de uma mente que se reclama da importância política de um momento particular. Guernica deixa-me no espírito uma honestidade tão real e evidente que acaba por me impressionar pela sua qualidade moral. A abstracção da forma serve apenas para sublinhar a realidade do Mundo. Procuro hoje onde estará essa outra Guernica como representação da ameaça da Pandemia. Essa obra ainda está dispersa pelo Mundo, mas inscrita nas acções de todos os que hoje vivem. Se o Mundo de hoje não quer ser apenas a representação de uma natureza-morta, exige-se o predomínio da acção, a revolta dos poetas, a estética inocente de poder escolher uma vacina.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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