“Empresas familiares exibem maior robustez e resiliência que as listadas na bolsa”
Guy Villax, um dos cinco nomeados do prémio EY Entrepreneur of the Year, cresceu de mão dada com a empresa que o pai fundou na cave de casa, em Lisboa.
Japão, China, Índia, Suíça, Irlanda, EUA e Portugal. Um mapa-mundo no site da Hovione mostra os pontos do planeta onde a empresa está. Tão internacional como o atual CEO, filho de um húngaro e de uma portuguesa com ascendência inglesa. A Hovione nasceu na Lapa, em Lisboa, na casa onde a família morava e onde Guy Villax, o segundo de quatro irmãos, teve o primeiro contacto com o mundo da farmacêutica. “Quando chegávamos da escola a entrada era feita pelo escritório – onde cumprimentávamos o Sr. Moreira e a Deonilde. Muitas vezes não podíamos ir para o jardim pois decorria uma “brominação” no terraço, pois ao ar livre era mais seguro”, recorda, em entrevista ao ECO, o finalista do prémio EY Entrepeneur of The Year.
Terão sido ali as primeiras lições de ciências naturais e físico-química. “Era extraordinário ter um pai que nos explicava o que era a fotossíntese e que nos mostrava como se extraia a clorofila das folhas com um pouco de clorofórmio, ou como fazer eletrólise da água e produzir hidrogénio suficiente para fazer uma pequena explosão. Uma tarde cheguei da escola e vi o terraço coberto de uma série de caixas de madeira – tinham entregue o reator de 20 litros, com balões de carga e condensadores!”
Depois de um período a trabalhar no Laboratório Pasteur, em 1959, o químico Ivan Villax funda a Hovione com dois refugiados húngaros, Nicholas de Horthy e Andrew Onody – as primeiras duas letras dos apelidos dos fundadores deram o nome à empresa.
Começa uma história de crescimento: “Da cave as operações invadiram o jardim, de artesanal passámos a indústria de quintal. Depois a Hovione passou para Loures, e começou a crescer. Lembro-me do meu pai me mostrar o estacionamento com cada vez mais carros e explicar que ali é que estava o barómetro da prosperidade da empresa. Tínhamos um telex junto à casa de jantar, e no meio da noite chegavam os telexes do Japão – era uma barulheira”, conta. “Depois veio o 25 de Abril, e para um refugiado húngaro, era um déjà vu terrível. O meu pai lembrava-se que na Hungria todas as empresas com mais de 50 trabalhadores tinham sido nacionalizadas – assim durante vários anos a Hovione não teve mais de 49 trabalhadores”.
Acabaria por mudar-se para Inglaterra, a 15 de agosto de 1975. “Mudamos de escola, mudamos de vida – o meu pai vinha a Londres frequentemente. Foi fantástico descobrir outro mundo, fazer outros amigos, e comecei a perceber que havia que contar com muita incerteza, por alguma razão houve mais aplicação nos estudos. Julgo que crescemos mais depressa, e com saudade do que tinha ficado em Lisboa, do mar. Acabei o ‘bac’ no Lycée Français de Londres, fiz a minha licenciatura em Buckingham e comecei a trabalhar na Price Waterhouse em Londres. Depois de uns anos quis ir trabalhar para os EUA, mas o meu pai propôs-me trabalhar para a Hovione no escritório de Hong Kong. Fui para lá em outubro de 1983 para uma função de vendedor”. Um arranque que se viria a revelar muito importante na evolução da empresa.
Diane Villax, a mãe de Guy Villax, que também esteve na fundação da Hovione, diz que o filho transformou a empresa numa companhia global com 1993 colaboradores pelo mundo, 1267 só em Portugal. Em 2020, faturou em Portugal 192,5 milhões de dólares (excluída a faturação da operação internacional). “A empresa cresceu porque entregava algo que os clientes queriam e porque conseguíamos passar à frente da concorrência. Quando a fábrica de Macau arrancou em finais de 1986 a Hovione vendia 10 milhões de dólares por ano e investimos 5 milhões nessa fábrica. O BNU emprestou MOP20milhões. Fomos para Macau pois Portugal estava ainda numa confusão do pós-revolução e precisávamos de capacidade de produção para fornecer o mercado americano – a China fornecia matérias primas a preço muito competitivo”, conta, e acrescenta: “Olhando para trás tudo parece óbvio, mas naquele tempo as decisões que tomámos foram muito arrojadas e muito visionárias”.
Quando conta a história da empresa e a cruza com a sua (e a da família), Guy Villax diz que o que fez crescer a Hovione, “e fazê-lo no estrangeiro, foi um forte espírito de empreendedorismo ligado a um sentido de oportunidade e a um acreditar que a Europa estava em declínio e que devíamos encontrar uma alternativa”. E acrescenta: “A condução da Hovione no século XX reflete o sentido de liberdade e de autoconfiança próprio de quem perdeu tudo já uma vez, reconstruiu uma casa e uma família e não quer que a História lhe tire tudo de novo”.
“Na fase do século XX, o que permitiu o crescimento da Hovione foi o cash-flow das vendas, e neste ponto os clientes americanos e japoneses foram sem dúvida aqueles nos permitiram criar valor a sério o qual reinvestimos no negócio”, diz, contando um episódio: “Há que lembrar o Banco Espírito Santo que sempre nos apoiou. Lembro-me de um telefonema do Ricardo Salgado, eu nem tinha 40 anos, mas estávamos a negociar um empréstimo sindicado de $20m e o BPI tinha saltado – o Ricardo perguntou como estava a correr o negócio e disse que o BESCL ficava também com a parte do BPI”.
Mas que formação terá o CEO da Hovione que considere importantes na sua tomada de decisão? “A grande formação é o exemplo que se recebe dos pais. As experiências que se tem a viver noutro país podem ser enriquecedoras, mas isso não é automático. Depende da personalidade de cada um, da nossa atitude, da abertura que se tem para absorver essas outras culturas. Eu aprendi a falar Italiano quando vivia em Londres. Ter vivido em Portugal, na Inglaterra, em Hong Kong e Macau, ter vendido pela Ásia toda, deu-me uma oportunidade única de viver os 30 anos de globalização da economia do nosso planeta, e de ter a sensação de fazer parte dessa transformação”, conta, por e-mail.
Há que lembrar o Banco Espírito Santo que sempre nos apoiou. Lembro-me de um telefonema do Ricardo Salgado, eu nem tinha 40 anos, mas estávamos a negociar um empréstimo sindicado de $20m e o BPI tinha saltado – o Ricardo perguntou como estava a correr o negócio e disse que o BESCL ficava também com a parte do BPI.
Esse conhecimento foi útil na tomada de decisões. “A Hovione soube tirar partido desse processo, mas também soubemos sair a tempo. Em 2017 vendemos o negócio que tínhamos na China. Estava claro que o Xi Jin Ping ia mudar o rumo, ficou claro trabalhou na Ásia durante vários anos. que aquilo que dava vantagem a produzir na China para exportar ia acabar. Aplicámos o produto dessa venda em Portugal e nos EUA. Investimos em pessoas e no seu conhecimento”.
Após a morte de Ivan Villax (1925-2003), o conselho de administração da Hovione passou a funcionar com uma maioria de administradores independentes e não executivos. A haver um executivo, teria de ser o CEO. É assim desde 2005 e atualmente sentam-se à mesa sete pessoas – três portugueses, um canadiano, um suíço, um americano e uma inglesa, duas mulheres e cinco homens. “Anualmente fazemos uma autoavaliação da nossa eficácia, e a cada 3 anos esse exame é feito por uma entidade externa”, diz. “Com a morte do meu Pai, entre tantas outras coisas, deixei de ter reporting line. Considerei imperativo colocar um board entre os executivos e os acionistas. Eu queria garantir que a minha liderança e a estratégia da minha equipa era sujeita ao crivo de um juízo capaz e competente. Foi fundamental para reduzir risco, acelerar crescimento, garantir que as decisões eram mais bem estudadas e ponderadas e que o tema de sucessão em todas as funções de topo estava na agenda”. Outra das funções do board é refletir sobre a sucessão.
Guy Villax diz que “nunca pretendeu tirar a Hovione do grupo das empresas familiares”, que, diz, “exibem maior robustez e resiliência que as listadas na bolsa”. Explica: “O que eu procurei fazer foi eliminar as fraquezas e os aspetos inerentes e naturais das empresas familiares que quando não bem geridos levam à sua autodestruição. A minha aposta passa por manter aquilo que de melhor as empresas familiares têm, e adquirir a profissionalização e a exigência de disciplina que as grandes empresas sabem desenvolver. O desafio agora é crescer – desenvolver pessoas de forma deliberada e acelerada, desenvolver conhecimento”.
Há dois anos a Hovione anunciou uma nova fábrica no Seixal, cujo processo de licenciamento ainda decorre. “Em Portugal, o processo de licenciamento de uma fábrica de indústria química leva mais do dobro do tempo que nos EUA. O Seixal vai ser uma fábrica importante, mas o arranque não consegue ser rápido. Estou em crer que apesar de começarem mais tarde, os investimentos nos EUA vão progredir e começar a criar valor mais rapidamente que no Seixal”, nota.
Para onde pretende crescer? “Devemos crescer onde estão os nossos clientes. Vamos crescer perto das melhores fontes de inovação, das universidades”. Considera que “uma indústria forte precisa de reguladores fortes”. “A Hovione investe muito no standard-setting-process – nem temos essa expressão em Português… Tem a ver com a participação ativa no processo de normalização, de regulamentação da nossa indústria. Eu chamo-lhe construir o futuro”. Dois portugueses, colaboradores da Hovione, fazem parte deste grupo que durante três ou quatro anos trabalha na “definição de standards”. A regulamentação é aplicada em 200 países.
O papel da Hovione é “desenvolver o processo industrial, fornecer pequenas quantidades para os ensaios clínicos e, caso o produto seja aprovado, então sim – produzimos grandes quantidades comerciais”, diz o gestor, explicando que os produtos farmacêuticos que fazem mais diferença são “aqueles que curam, que mudam a vida de uma pessoa. Temos alguns que são mesmo milagrosos. Mas o milagre pertence àqueles que os inventaram e correram o risco de os desenvolver e os levar ao mercado – os nossos clientes.”
Guy Villax dá alguns exemplos: “Dezenas de milhões tratam a sua asma com inaladores que entregam princípio ativo da Hovione. 4 milhões de doentes de hepatite C foram curados por produtos feitos nas nossas fábricas com processos desenvolvidos por Portugueses em Loures. Das nossas fábricas saem produtos que tratam o HIV e vários cancros. Este ano tivemos, de um dia para o outro, que multiplicar por 10 a nossa capacidade de produção da Captisol, um produto chave numa das terapias do Covid-19.”
Aos 59 anos, Guy Villax é um dos cinco finalistas da 8.ª edição do prémio EY Entrepreneur of The Year, em Portugal, ao lado de António Oliveira (OLI – Sistemas Sanitários), Carlos Mendes Gonçalves (Mendes Gonçalves), Rupert Symington (Symington) e António Carlos Rodrigues (Casais).
O prémio é atribuído desde 1986 e é um dos mais antigos a nível global entre empreendedores. Michael Dell (Dell Computers), Jeff Bezos (Amazon), Jeff Weiner (LinkedIn) ou Serguei Brin/Larry Page (Google) são alguns dos vencedores.
Em Portugal, já foram premiados Belmiro de Azevedo (Sonae), Carlos Moreira da Silva (BA Glass), Dionísio Pestana (Grupo Pestana), Carlos e Jorge Martins (Martifer), Manuel Alfredo de Mello (Nutrinveste) e Bento Correia e Miguel Leitmann (Vision-Box) e António Rios de Amorim (Corticeira Amorim).
Anualmente, são analisadas candidaturas de 10 mil líderes empresariais por todo o mundo – 145 cidades e mais de 60 países atribuem esta distinção. Os vencedores regionais disputam o prémio mundial. Guy La Liberté, fundador do Cirque du Soleil, já recebeu o prémio. Em 2020, foi a vez da indiana Kiran Mazumdar-Shaw, fundadora da Biocon .
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