A censura que veio por carta

A aprovação desta “carta digital”, quando se aproximam os 50 anos do 25 de Abril, parece trazer a concretização da “verdadeira revolução de Abril”, aquela que foi derrotada a 25 de Novembro de 1975.

O Observador chamou-me a atenção para a “carta digital” aprovada em Portugal e mostrou como algum do seu texto coincide com o da lei de censura no tempo de Salazar, que por sua vez já aproveitava algumas partes da censura em vigor na primeira república.

Por isso fui lê-la. O seu objectivo é combater a desinformação que existe nas “redes sociais”. A nova lei não prevê censura prévia, pelo menos por agora, mas legaliza a censura à “posteriori”, institucionalizando-a e, mais grave ainda, colocando-a nas mãos de burocratas (que agora substituem os coronéis do ”lápis azul”).

A “carta digital” visa combater a desinformação, mas baseia-se num enorme equívoco que apenas alimenta a desinformação que quer combater. Desde a sua origem e passando pelo nome até ao seu conteúdo, toda ela é um cardápio de ilusões que engana os portugueses.

A sua origem é a União Europeia, uma organização onde a legitimação democrática do poder não é suficientemente valorizada. Em Portugal, continuamos a aceitar acriticamente tudo o que nos chega de Bruxelas desde que venha no mesmo envelope dos cheques.

O pretensiosismo do título da lei (“Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”) condiz com o pretensiosismo dos seus autores, que na esteira dos revolucionários de 1789 se sentem os arautos do bem, não apenas para os portugueses mas, admire-se, para toda a Humanidade, e não hesitam em usar toda a demagogia necessária para o alcançar. O problema é que sabemos quais foram os resultados de 1789, e não foram nada famosos.

O primeiro parágrafo do projecto de lei do PS confirma-o, destacando-se a abrangência deste grande momento histórico: “ … muitos milhões de homens e mulheres continuam em situação de ciberexclusão, o que pode comprometer a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável e da Agenda 2030, designadamente a erradicação da pobreza e da fome, o combate às desigualdades, a educação de qualidade e a promoção da saúde para todos.”.

A “carta” proposta pelos socialistas visa tudo isto, desde a promoção da saúde no Burundi até à educação de qualidade na Papua Nova Guiné. Maravilhoso. E apresenta referências ímpares como a “Carta das Comunicações do Povo”, muito ao estilo do “Congresso dos Deputados do Povo” soviético ou do “Congresso Nacional do Povo” do comunismo chinês, ou a “Carta dos Direitos da Internet” da Associação para a Comunicação Progressista, porque é o progressismo, e não o desenvolvimento, o caminho que querem para Portugal.

Uma nova rampa deslizante

Mas o mais grave é mesmo o seu conteúdo. Não é a pomposidade dos “direitos humanos” ou a própria futilidade desta lei, que em termos de direitos fundamentais não faz mais do que repetir os que já estão consagrados na Constituição. O nº 2, do artigo 2.º confirma-o: “As normas que na ordem jurídica portuguesa delimitam e protegem direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.”.

Não há nada na Constituição que isente o ciberespaço dos direitos, liberdade e garantias, mas o objectivo desta lei não é explicitá-lo. O que nela é grave é toda a carga propagandística contida nos 22 artigos com pseudo-direitos que a anuncia e, pior do que isso, a institucionalização da censura que faz.

No primeiro caso, é mais do mesmo, a legislação há muito que é usada para fazer propaganda socialista, especialmente nos preâmbulos, mas também no articulado. Os próprios socialistas nunca tiveram qualquer pejo em usar e abusar dos recursos dos portugueses para fazer propaganda em causa própria. Fazem-no continuamente desde o 25 de Abril, imitando e substituindo-se ao regime salazarista. Este é mais um exemplo. A proposta do PAN, como bons “candidatos a socialistas” que são, também vai no mesmo sentido.

Mais grave é a institucionalização e a defesa da censura que a lei faz. O artigo 4.º é intitulado liberdade de expressão e de criação (?). Mas não se percebe porquê uma vez que o seu número 3 transforma a liberdade de expressão e de criação num direito a beneficiar de medidas públicas de proteção. E é aqui que começa a desinformação.

As medidas protegem-nos contra quê? Contra “… todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, … o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.”

Note-se a perversidade deste ponto. Mistura-se crime, que constitui um desrespeito objectivo da lei, com conceitos abstractos e subjectivos como “todas as formas de discriminação” (a imposição de quotas que beneficia uns e prejudica outros também está incluída? E a selecção de “amigos” no Facebook?), o discurso de ódio (abrange os socialistas que promovem uma cerca sanitária ao Chega na internet?) ou a apologia do terrorismo (inclui os apoiantes do Hamas que proliferam pelas redes sociais?), além de se incluir a protecção digital contra a mutilação genital feminina (?).

Para além de não saberem escrever, os deputados pretendem impor a sua linguagem, a única que (para eles) é aceitável. E se eu quiser dizem mal do Pedro, que é cigano, não posso? Porquê? se posso dizer mal do José Magalhães, que é deputado? E se eu quiser defender as touradas estou a incitar ao ódio contra os animais, que os governos de geringonça transformaram em pessoas, como o PAN pretende?

O problema está também em quem é que decide o que é discurso de ódio. Quem é que decide o que são boas maneiras? São os burocratas que o governo nomeia para a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para os autores da lei não há dúvida sobre isso. Eles é que sabem e eles é que decidem qual deve ser o código de boas maneiras no espaço digital.

E a apologia do terrorismo? Não posso apoiar os palestinianos que lançam rockets para Israel, como muita gente faz na internet? O Dr. Louçã vai ser preso porque defendeu os terroristas da ETA? O candidato do Bloco que tem orgulho nos atentados que fez e nas mortes que provocou nas FP-25 é abrangido pelo incitamento à violência? O ex-líder da CGTP, Arménio Carlos, vai ser preso porque chamou “escurinho” ao representante do FMI? Ou a lei não cobre estes acontecimentos porque são da mesma elite da esquerda que se julga detentora do exclusivo sobre as boas maneiras, logo os que estão acima dos valores que exigem para os restantes?

Senhores deputados, acordem!

O artigo 6.º reforça a proteção dos portugueses, agora contra a “narrativa considerada desinformação”. Aqui, os deputados socialistas parecem ter-se inspirado no seu grande líder Sócrates. E o que é a desinformação? “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”

Veja-se o quão abrangente e perigosa é esta lei. Um exemplo de uma “narrativa” comprovadamente falsa, apresentada para enganar deliberadamente o público confirma-o. O ex-ministro Mário Centeno afirmou que a redução dos horários dos médicos de 40 para 35 horas semanais não iria ter custos para os portugueses. Esta afirmação é, sem margem para quaisquer dúvidas, uma mentira, pois quem substituiu os médicos naquelas 5 horas foi remunerado, o que representou um custo extra para os portugueses. O Presidente da República veio a seguir dizer que iria monitorizar o assunto para garantir que os custos não aumentavam, Fez alguma coisa a esse propósito? Claro que não, disse-o apenas para que o assunto caísse no esquecimento e, na prática, enganou os portugueses.

Este exemplo não se passou nas redes digitais mas poderia ter-se passado. Iam presos os dois porque estavam a desrespeitar a “carta digital”? Não, porque o número 3 do mesmo artigo da lei reduz substancialmente a sua aplicação prática. Mas a verdade é que esta lei valida que a mesma situação de tentativa de enganar os portugueses seja sancionada nuns casos e noutros não. Porquê? Porque a classe política está isenta da obrigação moral de dizer a verdade? Não está, mas parece estar isenta da obrigação legal de dizer a verdade que esta “carta” pretende impor, mesmo que isso cause um prejuízo público. Para o comum dos mortais, esta compreensão sobre as afirmações públicas nas redes sociais não parece existir na lei.

Mas o pior de tudo é que esta lei vem criar um precedente que abre uma porta para todo o tipo de abusos. Depois de institucionalizada, quais serão os limites para a censura? A intenção dos legisladores em combater a desinformação até poderá ser a melhor, mas facilmente a lei será alterada para que se introduzam outras restrições e novas censuras, avolumando os limites à liberdade. A lei deixa esta questão totalmente em aberto e a prática actual só nos deve deixar preocupados e não menosprezar o seu alcance, como muitos deputados fazem.

Só na última semana tivemos vários exemplos preocupantes: O governo está a tentar calar o Noticias do Viriato, o jornal que expos o caso dos pais que tiveram a coragem de não aceitar a imposição ilegal pelo Ministério da Educação da ideologia do “género”. O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais está a perseguir (está a desrespeitar o artigo 4.º da “carta digital”) um director da Autoridade Tributária porque fez um parecer que defendia o interesse dos portugueses, mas era contrário aos interesses do governo.

A Lusa, agência noticiosa controlada pelo governo e que alimenta toda a comunicação social portuguesa, uma situação pouco aceitável para um país que aparece nos rankings como bem classificado em termos de liberdade de imprensa (o que se passará nos outros países?), enviou uma notícia onde se referia a uma deputada do PS identificando-a entre parêntesis como “preta”. A verdade é que a senhora em questão tem raízes africanas explicitas.

Então qual foi o problema? O termo, ao contrário de “negra”, é visto pelos costumes morais aceites e praticados na sociedade portuguesa como sendo ofensivo. Ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde “black” é aceitável mas “nigger” é considerado ofensivo. Repare-se que o que está em causa são valores e comportamentos morais aceites na sociedade precisamente porque são definidos e praticados por quem a compõe, que são os portugueses. Não são governantes ou burocratas que impõem a moral, como é típico das ditaduras.

O que esta “carta digital” vem institucionalizar é que é a estrutura burocrática do Estado que vai decidir o que é e o que não é moralmente aceitável na linguagem que os portugueses usam na internet. Ora este é um pesadelo Orwelliano típico das ditaduras e por isso não é aceitável num país livre.

Não se trata aqui de regras para que a liberdade funcione, como erradamente dizia esta semana o deputado socialista José Magalhães, um dos entusiastas da “carta digital”. Trata-se de impor comportamentos e linguagens. E isso não é aceitável.

O que está em causa com a institucionalização da censura pela “carta digital” é demasiado sério para ser ignorado e deveria ter sido objecto de uma discussão pública alargada. O caminho para o socialismo continua a ser percorrido pela Assembleia da República perante a indiferença generalizada dos portugueses e com a participação activa dos deputados. Não houve um único deputado representante dos portugueses que tivesse votado contra, demostrando não estarem à altura do cargo. Os senhores deputados, pelo menos os que não são socialistas, deviam acordar.

Onde é que vamos parar?

Toda a lógica desta lei é a de exaltar o que o Estado português nos dá, todos os direitos e protecções que, na tradição socialista, nós só temos de obedecer, aceitar e calar. O Artigo 3.º não deixa dúvidas quando explicita tudo o que compete ao Estado “com vista a assegurar um ambiente digital que fomente e defenda os direitos humanos” (?). Até ordena aos órgãos de poder local, os tais que são eleitos pela população e têm autonomia, que tenham plataformas digitais (o projecto de lei do PS ia ainda mais longe, e ordenava a todos os órgãos de soberania e de poder regional e local que o fizessem). Se não tiverem o que é que acontece?

Onde é que isto vai parar? Esta é a grande questão. O silêncio de alguns jornais sobre este assunto é ensurdecedor, especialmente quando a lei anuncia mais apoios para os jornais, agravando a já pouco transparente relação entre governo, a concessão de subsídios e a imprensa.

A democracia para um socialista não é a mesma coisa do que a democracia para quem defende a liberdade. Os comunistas do PCP e do Bloco, e alguns socialistas do PS, sempre defenderam uma “democracia” em que eles mandam e os outros obedecem em nome do colectivo para, supostamente, promover o “bem estar geral”. Esta foi sempre a “democracia” existente nos países socialistas, a ditadura imposta em “nome” do povo.

A aprovação desta “carta digital”, quando se aproximam os 50 anos do 25 de Abril, parece trazer também a concretização da “verdadeira revolução de Abril”, aquela que foi derrotada a 25 de Novembro de 1975: um Estado centralista, manipulado pelo socialismo para “alimentar” e manter no poder as “elites vanguardistas” que velam pelo nosso bem controlando o nosso comportamento e a nossa linguagem.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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