
José Maria Pires e o exercício da cidadania
O José Maria Pires, com a sua intervenção exclusivamente cívica, sobressaltou o Poder e quem o acolita, amedrontou os negociantes e arrasou uma situação que estava adormecida.
Fui colega do cidadão José Maria Pires, na então Direção-Geral dos Impostos, até 31-12-1996, data em que, em licença de longa duração, a deixei, para ingressar no Banco de Portugal. Daí o conheço, sem prejuízo de posteriores encontros e conversas em que melhor nos conhecemos, pois nunca tive o privilégio de trabalhar diretamente com ele, embora sejamos amigos. Considere-se esta a minha declaração de interesses.
A minha opinião não tem, pois, por objeto o Alto Funcionário da AT, Prof. Doutor José Maria Pires, atualmente colocado, como se fosse uma espécie de “unidade de queimados”, no Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros, com quem, no exercício das suas funções, nem sempre estive de acordo. E até o escrevi e publiquei. Todavia, a não coincidência dos nossos pontos de vista sobre a forma como a AT deve desempenhar as suas atribuições, exercer as suas competências e cumprir a sua função fiscal, de modo algum nos afastou. Devo, no entanto, reconhecer que a sua colocação no CEF propiciou já aos contribuintes deste País o conhecimento, e concomitante aprendizagem, de Pareceres Jurídico-Tributários de elevadíssima qualidade técnica por ele elaborados no quadro das funções que ora lhe estão atribuídos.
A minha opinião é sobre o cidadão (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) José Maria Pires, membro, com toda a legitimidade e suporte constitucional, e sem qualquer incompatibilidade legal, do Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM) que, enquanto associação, e nos termos do artigo 46.º, n.º 2, da CRP, 2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
A MCTM parece não ter incomodado ninguém enquanto se dedicou apenas a defender e a propagar a língua mirandesa. Quando, no exercício do seu objeto, começa a incomodar o Poder, então fica na mira do sniper em cima do telhado. Foi, por aquilo que veio a público – e são exclusivamente as notícias publicadas e o Comunicado do Movimento que me servem de suporte – o caso de o MCTM, na defesa dos genuínos interesses da região, ter erguido uma bandeira diferente da que vinha hasteando: um negócio de alguns milhões de milhões, envolvendo barragens situadas nas terras mirandesas, prejudicava aquela região por não ter pagado o imposto do selo que, em seu entender, seria devido. É matéria específica sobre a qual também me não pronuncio (se é ou não devido imposto)
Na defesa desse interesse, que, além de justificado, tem de considerar-se, sem dúvida, altruísta, e que afasta à partida qualquer intuito de obtenção de vantagens individuais indevidas ou o afastamento de desvantagens individuais devidas, o MCTM iniciou, ao abrigo da liberdade de expressão que a Constituição também ancora, uma campanha pública, denunciando o que considerou ser uma grave lesão dos interesses patrimoniais, na ordem de cerca de duas centenas de milhões de euros, e desenvolvimentistas da Região Mirandesa. E foi numa reunião com o Ministro do Ambiente do Governo de Portugal que este solicitou ao MCTM uma “nota jurídica” que suportasse o seu entendimento sobre o enquadramento fiscal do dito negócio.
Não posso afirmar, mas posso admitir, que o pedido do Ministro levava “água no bico”. Com elevada probabilidade, tal nota seria feita pelo cidadão José Maria Pires, publica e notoriamente membro do MCTM, a quem se reconhece a mais elevada capacidade e competência para o efeito, ou não tivesse ele já publicado, nomeadamente, umas, inúmeras vezes citadas na doutrina e jurisprudência, Lições sobre os Impostos Sobre o Património e do Selo que, em 5 anos, teve 3 edições (Almedina, Coimbra, 2010 1.ª ed., 2015, 3.ª ed.).
Não vi, nem li, essa Nota Jurídica. O MCTM afirma, no entanto, que ela tem contributos de vários membros. Não sei se está assinada e, se, tendo sido assinada, que assinaturas contém. Vou admitir que tem a assinatura do José Maria Pires, cidadão, membro de uma Associação legítima e legal, com cuja atividade a qualidade de funcionário da AT não colide, inexistindo, por conseguinte, como é óbvio, qualquer conflito de interesses. Eu próprio fui, quando ainda funcionário da DGCI, membro da direção de uma IPSS e não intuí qualquer conflito de interesses quando ajudei o advogado da instituição a minutar uma impugnação judicial contra…a liquidação do IMI!
O cidadão José Maria Pires tem o direito, constitucionalmente legitimado, de liberdade de expressão nos exatos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa (CRP): “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. É evidente que a instauração de um processo disciplinar constitui de per si um intolerável tipo ou forma de censura que impede ou limita a liberdade de expressão do cidadão José Maria Pires. Esta atuação da AT, provavelmente ordenada por quem pode, remete-nos para outros tempos e outros Senhores e viola claramente toda a estrutura supraconstitucional, constitucional e infraconstitucional de um Estado de Direito Democrático.
Diz-se, do lado do Governo, que se pretende verificar se foi violado o Código de Conduta dos Funcionários da AT. A instauração do processo disciplinar com esta finalidade porque o cidadão José Maria Pires, a ter contribuído para a elaboração de tal “nota jurídica”, desde logo, não agiu na qualidade de funcionário da AT e o processo é indevido.
Se nessa contribuição utilizou conhecimentos que adquiriu em parte no exercício das suas funções na AT, em parte por esforço próprio de estudo (recorde-se que recentemente defendeu, com brilho, a sua tese de doutoramento na Universidade Católica do Porto), eles são, de qualquer modo, algo que lhe é intrínseco e de que a AT se não pode arrogar proprietária. Por outro lado, certamente não emitiu qualquer “Parecer”, no sentido em que um parecer jurídico é solicitado a um advogado ou a um jurisconsulto, atividades liberais cujo exercício, como é sabido, se caracteriza pela remuneração. Tenho a absoluta certeza de que o cidadão José Maria Pires não foi remunerado para colaborar na elaboração da Nota Jurídica pedida pelo Ministro do Ambiente. E ainda é absolutamente evidente a não violação de tal Código, porque o exercício de “funções privadas” não é incompatível com o exercício de funções públicas quando “não comprometem a isenção e a imparcialidade pelo desempenho das funções públicas”.
Acresce, por último, que essa Nota Jurídica defende, segundo o público, a sujeição do negócio efetuado a imposto do selo, ou seja, defende os interesses do Estado. A ser assim, e se a AT, no âmbito da sua atividade inspetiva, vier entender o mesmo, arredada está qualquer incompatibilidade. O mesmo sucede se entender diferente. Com efeito, foi, a tê-lo sido, o cidadão José Maria Pires, em defesa dos interesses da sua Região de origem e de coração, e não o Funcionário da AT, Gestor Tributário, José Maria Pires, a defender os “interesses” (quer dizer, a legalidade) a que a AT se encontra subordinada.
Dificilmente os envolvidos no negócio de que aqui se fala se veriam desobrigados de pagar, quem fosse considerado sujeito passivo, o imposto devido se o processo inspetivo que propusesse a respetiva liquidação, fosse suportado no parecer do Funcionário José Maria Pires. Isto na parte administrativa. E, com elevadíssima probabilidade, em decisão jurisprudencial.
Ao cabo e ao resto, o José Maria Pires, com a sua intervenção exclusivamente cívica, sobressaltou o Poder e quem o acolita, amedrontou os negociantes e arrasou uma situação que estava adormecida. É que eles não sabem que “tão ilegal é não cobrar os impostos devidos como cobrar os indevidos”, como alguém terá escrito. Mas o Zé sabe.
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