Uma história muito mal contada
O Governo anunciou um programa de inclusão digital que mais não será do que a ressuscitação de um projeto privado, que agora é pago com dinheiros públicos.
Esta semana foi anunciado o programa Eu sou Digital, que visa combater a iliteracia digital dos portugueses. Infelizmente, parece ser mais um disparate irrefletido que depende do voluntarismo individual, mistura atos privados com dinheiros públicos e não sabe bem para onde vai. Claro que é mais fácil dizer mal do que fazer bem e a iniciativa tem na base um objetivo altamente meritório e extremamente necessário. Mas ficam tantas perguntas por responder que é difícil aceitar que esta medida tenha sido devidamente ponderada.
Comecemos pelo início: o secretário de Estado para a transição digital assume que há um milhão e oitocentos mil portugueses sem competências digitais. O programa quer resolver este problema para pouco mais de metade destes (um milhão), o que não será propriamente ambicioso – fica por saber se os outros são irremediáveis, se serão resgatados numa segunda fase ou se se fica simplesmente à espera de que morram para que as estatísticas melhorem. Mas se o problema é assim tão grave, e julgo que é unânime pensar que sim, não deveria tudo isto ser mais ambicioso? E não deveria o Estado ter um papel mais ativo?
Com este programa, tudo fica na mão de voluntários. Foi anunciada uma rede de milhares de voluntários, mas que se saiba não existe ainda nenhum inscrito. Foram anunciados “mil e quinhentos centros que estão a ser criados em todo o país”. Quantos existem? Aparentemente nenhum, porque a criação dos centros depende… do voluntarismo de entidades e instituições. E os candidatos hão-de aparecer, levados certamente pelos voluntários que os querem ensinar… se tudo correr bem.
Depois, o objetivo do programa. A ideia é “capacitar adultos que nunca utilizaram a internet”. E como é que isso se faz? Numa sessão de duas horas – leu bem, duas horas – em que se vão ensinar sete temas: Descobrir a internet, Saber navegar, Saber fazer pesquisas, Criar uma identidade digital, Usar uma caixa de correio eletrónico, Criar conta em redes sociais, Proteger dados sociais e privacidade”. Confesso que eu próprio fiquei imediatamente com vontade de fazer o curso, porque tenho passado os últimos meses só preocupado com o último ponto – e a perspetiva de aprender tudo isso em menos de 15 minutos seria fantástica! Aparentemente a FCT aprovou o curso, o que é extraordinário. Vamos ser claros: quem nunca tenha contactado com a internet não vai aprender a navegar em duas horas, muito menos aprender a ser capaz de se proteger online.
Também adoraria saber que ferramentas vão ser recomendadas: que browsers, que fornecedores de email, que redes sociais. Bem feito, este “curso” poderia ser uma verdadeira aprendizagem digital; como está, vai ser uma ótima porta para fraudes na internet que visem os mais idosos e menos letrados. E já nem pergunto em que aparelhos é que se espera que estas pessoas comecem a navegar, porque se elas nunca descobriram a internet dificilmente terão computadores em casa a ganhar pó.
Quanto a envolvimento privado, a situação também é tudo menos clara. O site está entregue a uma consultora, o que é perfeitamente normal. Essa consultora gere o site e é responsável pela gestão dos dados que os envolvidos ali colocarão – o que faz dela a gestora efetiva do programa, apesar de ainda não existir no Portal Base qualquer adjudicação nesse sentido. É por isso estranho que esta tenha sido uma medida promovida como vinda do governo.
Mais estranho é que esta mesma consultora já seja responsável, desde 2017, por um programa exatamente igual. O MUDA – Movimento pela Utilização Digital Ativa – criou uma plataforma com conteúdos para “ajudar familiares e amigos nos mais variados temas: desde a criação de uma identidade digital ou saber pesquisar na internet, até às compras online ou aceder a serviços públicos e privados.” O MUDA também já pedia voluntários para “ajudar a mudar a vida das pessoas que o rodeiam”. Aliás, a situação é tão grave que os formulários a pedir voluntários para o programa governamental são exatamente iguais aos do formulário que pede voluntários para o MUDA. Note-se: exatamente iguais. Só falta que os conteúdos que vão ensinar os utilizadores da nova plataforma sejam exatamente os mesmos que já existem na plataforma MUDA. Não se percebe: Se a ideia é aproveitar o trabalho da plataforma, porquê disfarçar a marca original e o trabalho feito? Se a ideia é fazer uma coisa nova, porquê pegar em materiais que não deram resultados práticos?
Esta plataforma MUDA era (é) uma iniciativa de 40 organizações, quase todas privadas, que servia para ligar potenciais clientes a fornecedores de serviços, propagando pelo meio vários conteúdos que iam do mais educativo ao mais comercial. Poderá argumentar-se que, precisamente pela experiência adquirida com este trabalho, esta mesma consultora estaria particularmente habilitada a desenvolver o novo programa. Mas, se o programa original tivesse sido bem sucedido, este esforço governamental já não seria necessário… O que se retira disto tudo é que aparentemente se estão a meter dinheiros públicos (do orçamento de estado e de fundos europeus) num projeto privado que dura há quatro anos e que não apresentou resultados que se vissem.
Está longe de ser uma novidade em Portugal, mas é triste que continue a acontecer desta forma. Já aqui escrevi várias vezes sobre a urgência de dar formação digital à população, e admito que fiquei entusiasmado com o anúncio do programa. Ainda espero que corra bem e que atinja os seus objetivos. Mas a forma atabalhoada como foi apresentado e as perguntas que ficam por responder não ajudam a dar esperança. É uma pena.
Ler mais: Vale a pena deixar aqui uma última curiosidade. Nesta plataforma MUDA há um “quizz” para que cada utilizador possa testar o seu “nível de competências digitais”. Fiz o teste e fiquei a saber que até não sou mau nisto do digital, mas que a minha utilização “pode ser melhor”. Um das perguntas era se utilizo “as redes sociais para aceder a informação” e se utilizo “as redes sociais para publicar fotografias e vídeos”, o que é indicativo do nível de literacia digital que se quer promover. Este é um daqueles “testes” indigentes em que, se respondesse a tudo que sim, teria cem por cento. Na verdade, até estranhei não me terem dado o horóscopo no final.
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