A Justiça e os seus perigosos preconceitos

Tal como os jurados nos EUA, também os juízes não devem ter preconceitos ou pré convicções relativamente a qualquer tipo de causas ou pessoas. E não basta serem isentos. Têm também que parecer.

Como sabemos (nem que seja pelos thrillers judiciais americanos), uma das bases fundamentais do sistema penal norte-americano é o chamado Tribunal de Júri. Esse júri é formado por pessoas da comunidade escolhidas num processo aleatório. Um dos momentos cruciais que, por vezes, também assistimos nas produções “hollywoodescas” é a audiência em que o Juiz e as partes fazem um exigente questionário aos jurados (o chamado “voir dire”) no sentido de perceberem se estes reúnem condições de isenção para julgarem o caso, ou se, pelo contrário, podem ter (ou aparentar ter) algum preconceito ou pré-juízo em relação à causa que vão julgar. Na sequência deste procedimento, é normal que alguns dos jurados sejam excluídos.

Em Portugal o sistema de júri é uma rara exceção, cabendo, portanto, por regra, aos juízes, a difícil e nobre função de julgar. Obviamente, tal como os jurados nos EUA, também os juízes não devem ter preconceitos ou pré convicções relativamente a qualquer tipo de causas ou pessoas. E não basta serem isentos. Têm também que parecer isentos. É difícil, eu sei. Todos somos humanos e todos somos influenciados pelo contexto em que estamos inseridos. Mas, por alguma razão, uns são Juízes e outros meros julgadores de café e das redes sociais.

A pressão em torno dos temas quentes da Justiça relacionados com a chamada criminalidade económico-financeira que envolve pessoas com projeção mediática tem levado alguns dos mais altos representantes dos magistrados a comentarem publicamente e a proporem soluções legislativas/governativas para que, na sua opinião, a Justiça lide melhor com estes temas. Nota-se uma necessidade permanente de demonstração pública de que a Justiça é atuante e, só não faz mais, porque os políticos (sempre eles…) não concedem mais meios técnicos, humanos e procedimentais no sentido de facilitar uma eficaz investigação e punição. Para alguns, também os advogados de defesa são os fáceis culpados dos atrasos na justiça. Embora não tenham os meios e o poder “agressivo” do Estado, como facilmente se constata nas megalómanas buscas e detenções que assistimos em direto. Os advogados são os únicos com obrigação de cumprir prazos perentórios, mesmo relativamente aos atos de exercício de direitos fundamentais, que alguns apelidam de “manobras dilatórias”, como, por exemplo, recursos, reclamações, arguições de nulidades e inconstitucionalidades. Quase que parece que são estes advogados incómodos que constroem os mega processos, dirigem inquéritos criminais intermináveis e promovem todo um circo mediático pré-condenatório dos seus próprios clientes…

A título de exemplo, assistimos à Associação Sindical dos Juízes a propor novos crimes como o chamado “crime de ocultação de riqueza” (que, nas suas próprias palavras, permitirá uma “punição mais eficaz”) e vimos, recentemente, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a sustentar, entre outras coisas, que há excessos de garantias de defesa e a sugerir que se estude a criação de tribunais especializados para este tipo de criminalidade. Não pretendo discutir o mérito e as boas intenções destas propostas. Mas creio que merece reflexão se este tipo de manifestações públicas não transmitem para a comunidade um pré-juízo dos mais altos representantes da magistratura relativamente a uma certa categoria de cidadãos e crimes.

Com todo o respeito que estes protagonistas me merecem, penso que este tipo de manifestação pública é suscetível de transmitir uma sensação de preconceito em relação aos chamados crimes de colarinho branco e isso é muito preocupante. Até pelas funções de liderança no setor que têm, eles estão a contribuir para um desequilíbrio ainda maior da balança que, como é evidente, já está à partida totalmente desequilibrada pela pressão mediática que normalmente incide sobre estes casos. Na verdade, neste contexto, os juízes que julgam – em concreto – esta tipologia de casos (cada vez mais “empurrados” pela habitual pressão mediática condenatória) dificilmente não terão em mente que os seus mais altos protagonistas entendem, explicitamente ou nas “entrelinhas”, que os chamados poderosos têm que ser rapidamente julgados e, se possível, condenados, sob pena da credibilidade do setor ser colocada em causa. Obviamente, só assim se dará uma satisfação à comunidade que, “com um brilho nos olhos”, poderá finalmente clamar: “a Justiça funciona!”

Como advogado (muitas vezes de defesa) lamento que um certo desejo de “justiça a todo o custo” sobre uma determinada categoria de cidadãos e crimes comece a entrar nos corredores do Sistema de Justiça que, para o bem do Estado de Direito (ou seja, de todos nós) e mesmo correndo o risco de não ser “popular”, deveria estar completamente blindado. Estes cidadãos não têm mais, mas também não podem ter menos direitos que os cidadãos “anónimos” e têm o direito fundamental de serem julgados por um Sistema de Justiça que, pelo menos, se preocupe em manter uma aparência de total isenção e absoluto distanciamento em relação à pressão mediática. Quem anda nos tribunais como eu, facilmente verifica que o preconceito começa a notar-se até no teor das próprias sentenças que, com grande facilidade, conseguem resvalar para fundamentações que denotam uma maior preocupação de confirmar/contribuir para o julgamento popular e “moralista” do que aplicar o Direito.

Termino, voltando ao sistema de júri norte-americano e à escolha dos jurados: perante as manifestações públicas que vamos assistindo de alguns magistrados em relação ao chamado crime de “colarinho branco”, será que seriam aprovados no procedimento de “voir dire”?

 

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