A CP e o Estado que tudo sufoca

A CP, no quadro do serviço público já contratualizado, é uma empresa perfeitamente viável. O modelo que temos é que não funciona nem é defensável.

Nuno Freitas demitiu-se da presidência da CP, após cerca de dois anos e três meses no cargo e a cerca de três meses de completar o seu mandato, que terminaria em Dezembro. Na hora da saída, o gestor e engenheiro aponta baterias contra a burocracia do Estado, o formol que mantém a CP no estado cadavérico que lhe é imposto. Volta a sair para a sua vida empresarial, onde trabalha “apenas” com os principais caminhos de ferro europeus, como o alemão ou o suíço.

Estes dois anos pautaram-se por uma recuperação operacional evidente da empresa, graças a um plano “low cost” saído da criatividade e engenho da administração, que permitiu revalorizar alguma prata da casa para rapidamente terminar com a sangria abundante em que a CP vivia nos anos anteriores. Tal foi conseguido com a dose de bom senso que só o profundo conhecimento do sector e da empresa aportam, com um gasto mínimo de dinheiros públicos. São disso exemplo a aposta de sucesso no serviço semi-turístico na linha do Douro – que permitiu enviar as automotoras que lá serviam para acabar com as falhas de serviço no Oeste e Algarve – ou a recuperação das locomotivas eléctricas que a CP tinha fora de serviço há cerca de dez anos, e que permitiram ao Governo não passar pela humilhação de inaugurar a electrificação da linha do Minho sem ter material eléctrico para lá colocar.

Apesar de, pelo meio, ter sido assinado o importantíssimo contrato de serviço público, a CP continua sufocada pelo Estado e é isso que determina a saída de Nuno Freitas, porventura o melhor presidente que a CP teve nas últimas décadas. Pedro Nuno Santos teve a arte para encontrar esta solução em meados de 2019, mas não conseguiu ainda que o Governo deixe a CP viver. É perfeitamente defensável que a CP continue a ser pública – mesmo para um liberal, como eu – sempre e quando consiga perseguir a sua missão.

Do site da empresa, esta missão é definida como “Ligar pessoas e comunidades, de forma sustentada e alicerçada no modo ferroviário.” Em nenhum lado esta missão está atribuída ao Ministério das Finanças ou ao Ministério das Infraestruturas, mas sim a esta entidade empresarial que se chama CP. No entanto, mesmo sob a liderança esclarecida de um dos melhores do país, a CP mantém a necessidade de esperar pelas tutelas para contratar maquinistas para preencher o quadro de onde saem efectivos para a reforma, mantém a necessidade de um papel carimbado pelas tutelas para comprar as indispensáveis rodas para manter os comboios a circular, entre outras. No fim de contas, a pertinência social da CP está transferida para o Estado central, que tudo quer controlar e que tudo quer determinar.

Qual seria a alternativa da CP a comprar rodas para substituir as que chegam ao fim de vida? Qual a alternativa da CP a contratar maquinistas para substituir os que se reformam? Mesmo sem conseguirem responder à questão, os políticos continuam a transformar os gestores destas empresas em meros administrativos, pedinchando por semanas e meses as autorizações inevitáveis – a não ser, claro, que a opção de voltar a deixar a empresa a pão e água, como aconteceu entre 2016 e 2018, seja de novo uma possibilidade.

A CP, no quadro do serviço público já contratualizado, é uma empresa perfeitamente viável. Com capacidade para investir num serviço denso e de qualidade, de padrões superiores ao existente actualmente, com capacidade também para investir no segmento de Longo Curso, rentável e onde a concorrência inevitavelmente chegará. Mas através do artifício da manutenção da imensa dívida histórica da empresa (que justifica os prejuízos colossais anuais, quase exclusivamente devidos aos gastos financeiros) – acumulada ao longo de décadas em que o Estado obrigou a CP a prestar serviços sem a compensar, e cuja maioria é dívida da CP para com o próprio Estado! – o Governo mantém a CP debaixo da alçada dos boys e da aleatoriedade da gestão orçamental do Terreiro do Paço, o que volta a afastar a rara competência existente no país para liderar numa empresa com esta complexidade e importância.

É perfeitamente defensável que a CP seja uma empresa pública, prestando serviço público contratualizado e, sem outros apoios (que não precisa!), atacar também o mercado liberalizado, seja cá ou no estrangeiro. É também perfeitamente defensável que a CP seja uma empresa privada (como foi quase toda a sua vida), prestando serviço público contratualizando e apostando, por sua conta e risco, nos restantes segmentos de tráfego. São dois modelos que funcionam e funcionarão.

O modelo que temos é que não funciona nem é defensável. A CP é uma empresa pública, mas está sem autonomia para cumprir a sua missão, sendo sufocada pelos gabinetes e pelas jogadas de bastidores, edifícios de mil e uma dificuldades e “truques” que dinamitam a agilidade e dinâmica empresarial que é fundamental manter e desenvolver. O modelo actual não é de direita nem de esquerda, é um absurdo que se mantém sem nenhum racional que o explique, próprio de um Estado sem qualquer visão do que quer ser ou ter, e que se protege da competência que vem de fora em vez de a atrair.

Realço a notável gestão de Nuno Freitas na CP e espero que Pedro Moreira, um dos mais notáveis técnicos portugueses, possa ter o apoio necessário agora que sobe a presidente da empresa, não deixando de sublinhar que o secretário de Estado das infraestruturas havia prometido a reestruturação final da dívida da CP até Março deste ano, o que permitiria à CP alcançar a autonomia de gestão. Já lá vão sete meses do prazo anunciado, e sem qualquer explicação continua por concretizar.

Termino com um exemplo: há quase três anos que a CP foi autorizada a comprar comboios. Durante um ano, o processo arrastou-se em tribunal por causa de uma simples contestação de um dos concorrentes. Depois, durante quase outro ano, arrastou-se no Governo para corrigir o prazo autorizado para esta despesa (anteriormente já autorizada, e adiada por causa da contestação, cuja reprogramação foi pedida pelo Tribunal de Contas) e que só agora o processo voltou ao Tribunal de Contas para validação final. Entretanto, em Espanha, a Renfe adjudicou há menos de seis meses novos comboios suburbanos, que já estão a iniciar produção, com contrato assinado. Querem milagres?

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