Depois da “trapalhada”, emigrantes deixam cair voto útil

  • Joana Abrantes Gomes
  • 13 Março 2022

Este fim de semana, os portugueses na Europa vão às urnas pela segunda vez eleger os dois deputados em falta. Ao ECO, alguns admitem alterar o sentido de voto face à votação anulada.

A invalidação de mais de 150 mil votos dos emigrantes do círculo da Europa nas legislativas de 30 de janeiro deixou estes portugueses a sentirem que uns votos “pesam mais do que outros”. Este fim de semana, voltam às urnas aqueles que preferiram o voto presencial, enquanto os votos por via postal serão considerados se recebidos até dia 23 de março. O ECO falou com seis portugueses espalhados pelo Velho Continente que vão voltar a votar, por correspondência, com alguns a admitir que o descontentamento e a frustração face a esta “trapalhada” irão refletir-se no sentido de voto.

“Vou voltar a votar porque tenho um sentido muito forte de dever cívico e acredito que, mesmo que tenha havido esta asneira (…), acho que é o meu papel enquanto cidadão expressar-me em termos eleitorais“, assume João Silva, a viver em Bruxelas desde setembro de 2020. Este gestor de marketing e comunicação garante ao ECO que, da primeira vez, “cumpriu tal e qual como dizia” a brochura explicativa que acompanhava o boletim de voto. “Pensava eu que tinha sido o fim da minha participação nestas eleições”, lamenta.

João Silva, 24 anos, residente em Bruxelas

De acordo com o artigo 79.º-G da lei eleitoral, referente ao voto postal por eleitores residentes no estrangeiro, cada boletim é acompanhado por dois envelopes, um de cor verde que se destina a “receber o boletim de voto” e outro “branco e de tamanho maior” com as informações do eleitor e da assembleia de recolha e contagem de votos correspondente.

João Cruz, que trabalha como designer em Barcelona, assegura que seguiu este procedimento “corretamente”. “Em princípio, o meu voto deve ter sido válido. Gostava que houvesse uma forma de confirmá-lo, mas, se existe, não a conheço”, afirma ao ECO. Da mesma maneira garantem tê-lo feito Daniela Bernardo, António Oliveira, Joana Lima e Rita Nóbrega Gomes.

“Frustração, “amadorismo” e “falha logística”

Quando Rita Nóbrega Gomes, de 30 anos e a viver em Bruxelas desde 2018, soube da invalidação dos votos do círculo da Europa sentiu “uma frustração enorme”. “Uma ideia de que estavam a brincar com a nossa cara” e “um disparate completo“, descreve esta engenheira informática, que considera que a situação em causa “corrói um bocadinho a confiança na democracia”.

A invalidação de 80,32% dos votos do círculo eleitoral da Europa teve por base um entendimento diferente das mesas dos círculos da emigração sobre aceitar ou não como válidos os votos que chegassem sem a fotocópia do cartão de cidadão, sendo que a lei eleitoral estipula que não enviar fotocópia da identificação torna o voto nulo. Enquanto a mesa de apuramento do círculo de Fora da Europa aceitou todos os votos, a da Europa não aceitou, o que resultou em boletins que vinham com e sem fotocópia colocados dentro da mesma urna, tornando impossível distinguir os válidos dos inválidos.

Joana Lima aponta o sucedido como uma “falha completa de logística e organização“, que tira “credibilidade às eleições“. Para esta emigrante portuguesa, residente na cidade de Cardiff, no País de Gales, “sem dúvida que uns [votos] pesam mais do que outros”, além de que “não faz sentido” a anulação dos votos do círculo da Europa e não dos de Fora da Europa. Aceitar os votos sem fotocópia do Cartão de Cidadão é “ir contra a lei”, sublinhou, defendendo que “só deviam ter sido aceites” os boletins com a cópia do documento de identificação.

“Pareceu uma brincadeira de mau gosto, um amadorismo“, diz, por sua vez, António Oliveira. Natural de Guimarães, este português de 32 anos, a viver atualmente em Cork, a segunda maior cidade da República da Irlanda, não culpa partidos nem o Ministério da Administração Interna. “É-me difícil atribuir culpas diretamente (…), mas alguém há de as ter“, remata.

António Oliveira, 32 anos, residente em Cork, na República da Irlanda

João Cruz conta que se sentiu frustrado “por ter que repetir todo o processo”, mas também pela despesa pública que essa repetição implica e pelo consequente atraso na tomada de posse do novo Governo, agora prevista para 29 de março, conforme apontou o Presidente da República esta semana. Este português de 32 anos aponta ainda o dedo à “má organização que a situação revela”.

Lei eleitoral devia “evoluir” para o digital

Embora refira não conhecer “ao pormenor” a lei eleitoral, João Silva considera que tem de existir uma “uniformização” da sua aplicação. Ou seja, os votos acompanhados de cópia do CC são considerados válidos, enquanto os que não têm cópia do CC não podem ser considerados válidos, “porque pode haver alguém que se apodere do voto de outra pessoa e tem de ser confirmada a identidade da pessoa que vota”, justifica.

João Cruz sugere, por seu lado, usar as ferramentas digitais para melhorar o processo de votação, criticando a “burocracia do Estado”. “Mais e melhor informação para cada eleitor, prazos bem comunicados, possibilidade de confirmar o estado do voto de cada um (caso seja por correio)“, acrescenta o emigrante, confessando que gostaria de poder votar “de forma eletrónica e telemática”.

Considerando igualmente que o procedimento “deveria evoluir mais no sentido do digital”, Daniela Bernardo, que vive na cidade italiana de Florença há quase sete anos, vai mais longe e defende a existência de um “código de identificação” em vez do envio de uma cópia do CC. “É uma coisa que, de facto, já não se utiliza muito e é contra diferentes regras que o dizem para não fazer. É uma coisa que tem de ser revista”, afirma.

Daniela Bernardo, 33 anos, em Florença

Rita Nóbrega Gomes e António Oliveira partilham da opinião de que a lei eleitoral deve ser alterada, designadamente quanto ao envio da fotocópia do documento de identificação, mas também defendem uma alteração quanto aos círculos eleitorais. A emigrante a viver em Bruxelas entende que essa mudança ajudaria a evitar a “tentação do voto útil”, enquanto o vimaranense gostava de “sentir uma maior representação”.

Conhecimento dos resultados pode influenciar segunda votação

“Dado que já sabemos os resultados, as votações vão ser super influenciadas“, entende Joana Lima, de 27 anos. Para a residente no País de Gales, isso não mudará o seu sentido de voto em relação à primeira votação, mas acredita que, para outros portugueses, seja um fator de “bastante influência”.

Joana Lima, de 27 anos, trabalha em Cardiff, no País de Gales, na área da gestão de projetos e eventos

Para Daniela Bernardo, será “muito interessante” ver se a já conhecida maioria absoluta do PS alterará os resultados da votação no círculo da Europa, que serão conhecidos no dia 25 de março. Tal como Joana Lima e também Rita Nóbrega Gomes, irá efetuar o mesmo voto que da primeira vez. No entanto, os motivos da engenheira informática são outros. “Não [vou mudar o sentido de voto] porque, por princípio, não acredito no voto útil”, afirma Rita.

Rita Nóbrega Gomes, 30 anos, é engenheira informática em Bruxelas

Mas João Silva revela a intenção oposta. O emigrante residente em Bruxelas afirma que o descontentamento com a anulação da primeira votação vai ficar expresso no seu sentido de voto. Para isso, vai “analisar quem é que melhor defendeu os interesses dos emigrantes nesta questão”, considerando que “os partidos pequenos estiveram muito bem e chegaram-se à frente”.

Os “partidos pequenos” de que fala o emigrante de Bruxelas são o Chega, o PAN, o Livre, o Volt e o Movimento Alternativa Socialista (MAS), que apresentaram recurso junto do Tribunal Constitucional da decisão de anulação de 157.205 votos do círculo da Europa. No entanto, o tribunal analisou apenas o do Volt, porque os restantes ou repetiam o pedido ou tinham problemas processuais.

João Cruz aponta no mesmo sentido que João Silva, ainda que considere “injusto” que, como se diz na gíria futebolística, os eleitores do círculo europeu possam “fazer prognósticos depois do jogo”. “Sabendo que o PS tem a maioria absoluta garantida e que nada muda, vou votar noutro partido com o qual me identifique mais“, conta ao ECO.

João Cruz, 32 anos, a trabalhar como designer em Barcelona

Esta ideia é igualmente tida em conta por António Oliveira. Face à “incerteza” na primeira vez que foi às urnas nestas legislativas, sentiu que não devia “desperdiçar” o seu voto num partido mais pequeno e acabou a votar “num dos lados da barricada”. Agora, “quase de certeza” votará no partido com o qual se identifica mais.

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