José Galamba de Oliveira, presidente da APS, explica as lições recebidas da crise pandémica e considera que o setor segurador, uma vez mais, não abalou em situação extrema.
O presidente da APS – Associação Portuguesa de Seguradores, José Galamba de Oliveira, antecipa que o impacto económico da Covid-19 será o mais violento a que as sociedades assistiram. No entanto, defende ser prematuro quantificar o travão na atividade seguradora. Um setor que tem no ADN a gestão do risco. E, por isso, é um dos setores mais bem preparados para enfrentar situações catastróficas. Acredita que nada ficará como antes. E que o setor saberá dar os passos certos no digital, no teletrabalho e telemedicina. Uma entrevista igualmente publicada na revista Seguros & Cidadania, editada pela APS.
As seguradoras resistiram à crise financeira e económica de 2007-2008. Como se prevê a saída desta crise de saúde pública – pandemia Covid-19 – que terá reflexos na economia?
Esta crise de saúde pública, é uma crise sistémica e simétrica, com origem na propagação acelerada de um vírus totalmente desconhecido para a comunidade científica e para a qual a sociedade, no seu todo, não estava preparada. As medidas drásticas, com o foco na redução da propagação da epidemia, que as autoridades um pouco por todo o mundo levaram a cabo, causam uma paragem geral das economias. No mundo globalizado em que vivemos, e porque são medidas inéditas e nunca antes experimentadas, o seu impacto não é ainda mensurável – diria mesmo que podemos levar meses até termos uma perspetiva mais correta dos impactos, sejam eles económicos ou sociais. Uma coisa parece, desde já, certa: o impacto económico desta crise da pandemia Covid-19 será, seguramente, o mais violento vivido pela nossa sociedade desde que há memória.
Como reagiu o setor a este acontecimento?
O setor reagiu com prontidão a esta nova realidade, à semelhança de muitos outros acontecimentos. Atualizou os seus planos de contingência e de continuidade de negócio e foi tomando as decisões necessárias de acordo com esses planos, à medida que a pandemia se foi desenvolvendo em Portugal. Desde logo, houve uma grande preocupação em garantir a segurança dos seus colaboradores, clientes e parceiros. E ao mesmo tempo garantindo a operacionalidade dos seus serviços de modo a honrar os seus compromissos para com a sociedade, enquanto força estabilizadora na gestão de riscos. Nesse sentido, apesar de grande parte dos seus colaboradores estar em regime de teletrabalho, foram acionados novos processos e novas rotinas de modo a garantir um serviço com o mínimo de disrupções possível. Há, obviamente, áreas onde o impacto é maior que outras, por exemplo, na gestão de sinistros, em áreas mais afetadas pela propagação do vírus onde a disponibilidade de serviços no terreno tem limitações. Mas a reação, quer dos colaboradores do setor, quer dos clientes e parceiros, em geral, tem sido positiva.
A APS criou um Fundo Solidário de apoio aos familiares de profissionais de saúde e outros que, durante o período do Estado de Emergência e no exercício da sua profissão, tenham testado positivo a doença COVID-19 e, que por esse motivo, tenham falecido. O valor é de 1,5 milhões de euros. Qual considera ser o papel de responsabilidade social das seguradoras, neste contexto particularmente difícil?
O setor segurador não tem ficado alheio a este contexto particularmente difícil em que todos vivemos e nesse sentido, as seguradoras têm desenvolvido inúmeras ações de solidariedade com o objetivo de mitigar os efeitos desta crise junto daqueles que mais necessitam. E esta iniciativa do setor no seu todo, o Fundo Solidário, é mais uma demonstração desse compromisso das seguradoras com o nosso país e em especial para todos aqueles que no dia a dia ajudam a combater a doença Covid-19. Mas todas estas iniciativas que têm vindo a ser desenvolvidas no contexto desta crise, vêm apenas reforçar um papel de destaque enquanto agentes de responsabilidade social, que as seguradoras já vinham a demonstrar na sociedade portuguesa, através da criação de iniciativas e programas de apoio aos mais desfavorecidos ou necessitados.
Há alguma ideia, em termos globais, sobre o impacto desta travagem a fundo da atividade económica no setor dos seguros?
O impacto sente-se já nos contratos em vigor, com muitas pessoas e empresas a solicitarem a suspensão de contratos, redução e alargamento dos prazos para pagamento de prémios. Por outro lado, assiste-se, igualmente, a uma redução sensível na subscrição de novos seguros, que é mais evidente nuns ramos que noutros. Finalmente, e considerando que a carteira de seguros tem uma base importante de renovação anual, estima-se que o impacto nesta componente será tanto maior quanto maior for o impacto na economia. O fecho de empresas, o aumento do desemprego, as dificuldades de tesouraria das empresas e famílias, sentir-se-ão inevitavelmente na produção de seguro. Mas é ainda prematuro quantificar a dimensão do impacto desta travagem da atividade económica no setor segurador.
A sinistralidade automóvel e de acidentes de trabalho, certamente, vão diminuir. Há alguma antevisão sobre essa esperada redução?
Esta é uma realidade que se sentiu durante a vigência do Estado de Emergência em Portugal. O número de novos sinistros, quer do ramo automóvel, quer do ramo de acidentes de trabalho, mostrou uma quebra significativa. Mas o custo médio dos sinistros, em contrapartida, vai aumentar devido às limitações que se verificaram no acesso aos prestadores de serviços das empresas de seguros. Por exemplo, um veículo pode demorar mais tempo a ser reparado porque muitas oficinas ou estiveram encerradas ou têm dificuldade em obter peças. Também na área da assistência clínica há dificuldades. Se um sinistrado que não conseguiu fazer as sessões de fisioterapia, vai demorar mais tempo a ficar recuperado. E mais tempo significa mais custo para a seguradora. Mas não temos ainda informação do mercado que permita quantificar estes números.
Este é um setor que, historicamente, tem demostrado uma enorme capacidade de resiliência face a crises de natureza diversa. Tem no seu ADN a gestão de riscos. Sempre fomos um dos setores mais bem preparados para lidar com situações mais ou menos catastróficas
E na área da Saúde: espera-se agravamento ou redução da sinistralidade, no imediato e a prazo, atendendo a que os cuidados programados, não urgentes, foram suspensos ou adiados?
Na saúde foram, de facto, adiados muitos cuidados programados. Mas este adiamento não significa que deixe de ser um custo, significa apenas que chegará mais tarde quando se retomar a normalidade da vida. Por outro lado, as seguradoras colocaram no terreno serviços adicionais de apoio à pandemia (linhas de apoio médico, linhas de triagem, sites informativos, para dar alguns exemplos) e disponibilizaram-se para suportar os custos dos testes de diagnóstico sem copagamento. E o que estamos a antecipar é que os custos venham a subir porque as pessoas estão a adiar tratamentos e idas aos hospitais e aos médicos, o que pode resultar num agravamento da sua situação clínica e, logo, mais custos no futuro.
O não pagamento em tempo dos prémios implica, por lei, a cessação dos contratos de seguro. Está prevista alguma medida de exceção que evite que tal possa acontecer, se se verificarem, como se admite que possa acontecer, atrasos significativos de pagamento por parte de empresas e famílias?
As seguradoras mostraram-se disponíveis desde o primeiro momento para estudar, caso a caso, as situações de clientes (empresas e/ou famílias) que, por dificuldades de liquidez, se viram fortemente limitados na sua capacidade de pagar os prémios de seguro nos prazos devidos e, assim, encontrar as melhores soluções para que a proteção do seguro se mantivesse. E assim, mesmo sem necessidade de qualquer novo diploma legal, foram efetuando moratórias, ajustando prémios, ajustando coberturas, suspendendo contratos, sempre numa postura de grande flexibilidade, em estreita articulação com os clientes e com a imprescindível colaboração dos mediadores de seguros que estiveram sempre em contacto e muito próximos dos tomadores de seguros. Mais recentemente, foi publicado um decreto lei que vem precisamente colocar a tónica e reforçar a importância das soluções negociadas caso a caso, e estabelecer uma regra padrão que servirá de referência, quando não haja possibilidade de efetuar essa negociação caso a caso, mas muito alinhada com aquela que estava a ser a prática das seguradoras.
Os resultados das empresas dependem muito da sinistralidade, mas também dos ganhos, ou perdas, obtidos na área financeira e de investimentos. A situação da indústria é suficientemente sólida para acomodar a queda dos títulos cotados em Bolsa e previsivelmente do valor de outros ativos financeiros ou de outra natureza?
A componente financeira tem dado uma contribuição importante para os resultados do setor, embora a dependência nessa contribuição tenha sido substancialmente menor nos últimos anos, fruto do ambiente de baixas taxas de juro de longo prazo. O setor entrou em 2020 com rácios de solvabilidade confortáveis, mas esta crise sanitária e económica provocou já quebras significativas nos mercados financeiros e traz, por isso, novos desafios ao setor. De qualquer forma, é de salientar que o exigente regime de solvência, definido pela Diretiva Comunitária de Solvência II, existe precisamente para poder acomodar situações de stress como a que vivemos e que, esperamos, possa ser temporária.
Espera que, mais uma vez, o setor volte a mostrar a sua boa resiliência às crises, como aconteceu na anterior crise (financeira), pese a diversa natureza desta?
Espero, sim. Este é um setor que, historicamente, tem demonstrado uma enorme capacidade de resiliência face a crises de natureza diversa. Tem no seu ADN a gestão de riscos. Somos um dos setores mais bem preparados para lidar com situações mais ou menos catastróficas.
Recuemos a 2019. Quais os resultados gerados pelas empresas estabelecidas em Portugal?
Os resultados do setor em 2019 ascenderam a cerca de 344 milhões de euros. Foi um ano muito difícil em que se assistiu uma quebra de 5,7% na produção total face à verificada em 2018, quebra essa com origem no Ramo Vida. O já longo período de baixas taxas de juros que presenciamos não permite uma oferta com rentabilidades atrativas o que, conjugado com a inexistência de estímulos à poupança, levou a uma queda na nova produção na ordem dos dois dígitos. Já nos Ramos Não Vida assistimos, novamente, a crescimentos em todos os principais ramos, muito alinhados com os dois anos anteriores.
Há, no atual contexto, alguma expectativa fundada sobre o que possam vir a ser os resultados de 2020?
Neste momento de total imprevisibilidade sobre a evolução da epidemia Covid-19 e do seu impacto, quer na economia, quer nos mercados, a única expectativa que se pode adiantar é, também, a da imprevisibilidade na dimensão da quebra nos resultados.
A atividade seguradora, pese pontuais questões de concorrência, é reconhecida por ser uma atividade na qual a competição sobressai, revelando-se mesmo, por vezes, muito agressiva em termos de preço. Como tem sido possível compatibilizar esse espírito de saudável competição entre os operadores com o sentido de cooperação indispensável ao bom e são funcionamento do mercado?
Existe uma consciência clara entre todos os operadores de que há matérias que são concorrenciais e outras onde faz sentido cooperar, de modo a conseguir sinergias em termos de eficiência operacional ou eficácia de processos, resultando em benefícios para os clientes, sejam eles empresas ou famílias. E cabe aqui salientar o papel que a APS tem na promoção desta cooperação, enquanto fórum de debate e partilha de soluções que facilitem estes objetivos.
Cumpre o segundo mandato. Compara as relações entre os operadores com o que se passa noutras atividades que conheça? E no plano associativo: como imagina o papel da APS no futuro?
Não sendo, seguramente, o único setor em que as boas relações entre os operadores possam ser evidenciadas, vale a pena salientar o prestígio e a referência que a APS é hoje no mundo associativo, situação que só foi conseguida pela boa cooperação entre os seus Associados ao longo dos seus 38 anos de existência.
Olhando para a frente, a APS continuará proativamente a procurar áreas de cooperação para aprofundar, tendo em consideração as diversas dinâmicas da nossa sociedade – uma sociedade envelhecida a viver novos desafios: o desafio climático, das novas tecnologias, da mobilidade urbana, para dar alguns exemplos.
A única expectativa que se pode adiantar é, também, a da imprevisibilidade na dimensão da quebra nos resultados
Olhemos para o futuro da sociedade e do setor. Tudo ficará como dantes? Ou é uma oportunidade para uma mudança radical da forma como vivemos?
Não ficará tudo como dantes. A história mostra-nos que estes eventos, mais ou menos disruptivos, as crises mais ou menos catastróficas abrem novas oportunidades para a sociedade. Esta crise que estamos a viver abriu as portas à utilização massiva do mundo digital, seja através das ferramentas do teletrabalho, seja das compras online, seja até da própria divulgação da informação. E alertou-nos para as nossas próprias limitações, apesar de todo o desenvolvimento científico e tecnológico a que assistimos. No final do dia, acredito também que daremos um valor diferente à vida, às relações humanas, à solidariedade entre todos nós, e que necessitamos de trabalhar todos mais em conjunto na procura de soluções para preservar o nosso planeta.
O teletrabalho poderá desempenhar, daqui para a frente, um papel que não tinha sido feito até então. Estará o setor preparado?
O teletrabalho não é uma realidade nova. É já muito utilizado em determinados países e culturas, por exemplo no mundo anglo-saxónico e nórdico. O que esta crise demonstrou foi a oportunidade de estender esta realidade a todas as sociedades desenvolvidas e aos mais variados setores de atividade, com vantagens tão diferentes como conseguir um melhor equilíbrio entre a vida pessoal e profissional dos colaboradores ou com uma redução nas emissões de carbono pela redução das viagens para o local de trabalho ou para reuniões internacionais. Para o setor segurador, esta é também uma nova realidade que está a ser comprovada neste preciso momento e que creio que será mais utilizada pelos operadores, nos mais diversos setores da atividade económica, mesmo numa situação de regresso à normalidade.
E na telemedicina e teleconsulta, como irá o setor agir ou reagir?
Iremos seguramente verificar que também estas novas ferramentas irão ser mais utilizadas pelos prestadores de serviços de saúde. Muitos destes prestadores estavam já a efetuar investimentos nestas áreas e esta crise veio acelerar uma utilização mais alargada destas tecnologias, também porque esta crise ajuda a quebrar a resistência à mudança por parte dos seus clientes – já que, nesta altura, esta é a única forma de obterem cuidados de saúde.
As seguradoras já se mostraram também disponíveis para estudar, caso a caso, as situações de clientes (empresas e/ou famílias) que, por dificuldades de liquidez, se vejam fortemente limitados na sua capacidade de pagar os prémios de seguro nos prazos devidos e, assim, encontrar as melhores soluções para que a proteção se mantenha
Mais do que nunca a Inteligência Artificial poderá dar passos de gigante em todos os setores. Como é que olha para esta questão?
A inteligência artificial é toda uma nova realidade tecnológica, disponível nos mais variados setores de atividade, que visa disponibilizar soluções preditivas para o dia-a-dia das empresas e das famílias. Mas é uma realidade fluida, todas os dias há novas descobertas e novas realidades, muito alavancadas na grande quantidade de dados e informação acumulada, mas que está desestruturada. Com a ajuda de algoritmos computacionais cada vez mais sofisticados, vai ser possível utilizar modelos preditivos de baixo custo cada vez mais completos nos mais variados contextos empresariais ou familiares.
Por fim, como se adaptam as seguradoras a um mundo com uma nova mobilidade?
As seguradoras estão obviamente atentas a todas estas novas tendências de mobilidade que as novas tecnologias e as mudanças comportamentais dos consumidores nos trazem. Adaptam-se, procurando antecipar a evolução destas tendências, de modo a disponibilizar novas soluções de proteção para ir ao encontro das expectativas e necessidades dos consumidores.
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