“Quanto aos vistos, se for trabalhador fora da Europa tentamos evitar” recrutar, diz CEO da Funcom

Em Portugal, o estúdio de jogos da Funcom conta com uma equipa de 126 pessoas, dos quais 81 residem no país e os restantes estão distribuídos por 15 países. Rui Casais, o CEO, falou com o ECO.

Rui Casais é português e, a partir de Oslo, na Noruega, lidera a Funcom, estúdio internacional por trás de chancelas de videojogos como “Age of Conan”, “The Secret World”, “Conan Exiles” ou “Dune: Awakening”, um lançamento mundial que contou com um “forte contributo” do estúdio de Lisboa.

Em Portugal – onde a Funcom está presente desde 2019 a compra da ZPX –, o estúdio conta com uma equipa de 126 pessoas, dos quais 81 residem no país e os restantes estão distribuídos por 15 países. São parte de uma equipa de mais de 500 pessoas, espalhadas por cinco estúdios localizados em mercados como os Estados Unidos.

Apesar da boa reputação que a indústria de jogos nacional começa a ter, recrutar talento internacional é um verdadeiro jogo com vários níveis de dificuldade. A começar pelo custo de vida — “como o custo de vida, as casas, tanto no Porto como em Lisboa, está alto, não está fácil atrair pessoal estrangeiro com experiência para vir” —, passando pela elevada carga fiscal, que retira salário do bolso dos trabalhadores, como a lentidão na atribuição dos vistos.

Como dinamizar a indústria de jogos no país, o empreendedorismo e o impacto da inteligência artificial (IA) no setor outros dos temas abordados em entrevista com o CEO da Funcom.

Lançaram o “Dune: Awakening” com forte contributo do estúdio em Lisboa da Funcom. A indústria de jogos em Portugal está também a ‘acordar’?

Diria que sim. Nos últimos anos, há uns cinco anos talvez, nota-se uma diferença clara na indústria portuguesa, há muito mais estúdios que vieram e Portugal está mais no radar de tudo o que é tecnologia de informação, incluindo o de videojogos.

Ainda é uma indústria pequena, mas estou confiante que vai crescer, porque há bastantes developers que trabalham não apenas em Portugal, mas também no estrangeiro. Há muita gente que, tal como eu, saiu e trabalha fora e depois querem voltar. Sem dúvida que a indústria está a crescer e tem uma reputação boa.

Estão presentes em mercados como os EUA. O que Portugal pode fazer para atrair mais estúdios, para acelerar crescimento da indústria?

Há certos países que têm programas de apoio à indústria de videojogos que funcionam muito bem, outros em que não funciona tão bem e há ainda outros países que não têm apoio nenhum.

Morei no Canadá há uns anos e eles têm um programa de apoio muito bom, a Noruega, onde estou agora, tem um programa, a Suécia não tem programa nenhum de apoio, mas tem uma associação muito forte dos estúdios que estão lá. Há vários modelos.

Portugal tinha um custo baixo para um país ocidental. Esse custo tem vindo a aumentar.

Os salários não são altos, mas não são baixos. São médios, médios-altos. Mas a carga sobre a empresa, de IRC, é quase tão alta como em França, mais alta do que os países escandinavos, como a Noruega, por exemplo, e faz com que o custo total da empresa com o trabalhador seja alto. E como o custo de vida, as casas, tanto no Porto como em Lisboa, está alto, não está fácil atrair pessoal estrangeiro com experiência para vir.

Refere-se a custos salariais?

Salários e custo de vida, que tem consequências no nível geral. Tem uma carga de impostos alta, que é uma das coisas que complica. Os salários não são altos, mas não são baixos. São médios, médios-altos.

Mas a carga sobre a empresa, de IRC, é quase tão alta como em França, mais alta do que os países escandinavos, como a Noruega, por exemplo, e faz com que o custo total da empresa com o trabalhador seja alto. E como o custo de vida, as casas, tanto no Porto como em Lisboa, está alto, não está fácil atrair pessoal estrangeiro com experiência para vir.

A nossa estratégia foi abrir em Lisboa, comprar a ZPX, eles não têm pessoas com 20 anos de experiência, temos que atrair pessoal de fora que venha ensinar e treinar as pessoas cá. E isso tem-se tornado mais difícil. Mas em termos de apoios, eu acho que há duas vertentes. Há uma vertente em que Portugal fazia, depois parou e depois voltou, que é um benefício fiscal para quem vem de fora.

Refere-se ao agora IFICID+.

Nós até perdemos algumas pessoas quando foi cancelado, considerando que podiam ganhar mais em Espanha ou Reino Unido fazendo o mesmo trabalho.

Eu gosto muito do modelo do Canadá, especialmente da região do Quebec, em que dão apoio na forma de créditos fiscais, em que, na prática, para certas indústrias, parte dos custos do trabalhador são devolvidos à empresa no final do ano. E é automático, num processo simples, todas as empresas de videojogos têm isso, tanto que o Quebec tem hoje uma indústria de videojogos muito grande que foi criada do nada, em parte por causa deste benefício.

Há mais exemplos, mas esse é o exemplo que eu acho bom e tenho experiência direta.

Disse há pouco que a vossa estratégia passava por atrair talento mais sénior internacional, mas que depois…

No início funcionou bem, porque não tínhamos a crise de imobiliário que estamos a ter, e havia os benefícios fiscais para quem vinha fora. Ultimamente tem sido mais complicado, temos de pagar mais para conseguir atrair. Porque comparando com a Espanha, com o mesmo salário, na prática a pessoa fica com mais dinheiro.

Noutras cidades europeias, temos pessoas em França, em cidades mais pequenas, que é bastante mais barato do que estar em Lisboa. Na Alemanha também, tirando Berlim, o resto das cidades são mais baratas do que Lisboa.

Têm sentido o problema dos atrasos dos vistos? Ou na atração do talento internacional o impacto maior tem sido o facto de, ponderados os custos, ficar mais salário na carteira a trabalhar noutros países?

Diria que o impacto maior é o que fica na carteira. Quanto aos vistos, na prática, se for trabalhador fora da Europa tentamos evitar. Sempre que temos alguém que venha de fora da União Europeia, demora imenso tempo, não recebemos resposta.

Quando foi na altura do início da guerra na Ucrânia, tínhamos alguém que era russo, fugiu da Rússia e queria vir para Portugal, e acabou por ter que ir aos Serviços de Fronteiras [agora AIMA] em Vila Nova de Gaia só para conseguir falar com alguém.

Demorou imenso tempo, conseguiu, mas é imenso tempo, causa muito stress às pessoas que não sabem se vão conseguir ficar no país. Na prática evitamos, focamos mais na União Europeia.

Quanto aos vistos, na prática, se for trabalhador fora da Europa tentamos evitar. Sempre que temos alguém que venha de fora da União Europeia, demora imenso muito tempo, não recebemos resposta.

Por causa dos atrasos dos vistos evitam recrutar fora da União Europeia é isso?

Exato, exato.

Sente também essa burocracia noutros mercados?

Varia bastante. E varia também porque nem todos os anos são iguais. Há anos onde há mais pressão sobre o serviço de imigração de um país do que noutro. É sempre burocrático em todos os países em que nós estamos…

Há países que são mais transparentes com a burocracia e outros menos. Eu diria que Portugal é pouco transparente nesse sentido. Dos países onde nós operamos, Portugal é o mais difícil.

Face a essas dificuldades, quais são os planos para o estúdio? Ampliar a atual estrutura? E qual a estratégia para fazer esse reforço?

Não estamos a planear crescer mais para já, mas temos mais confiança que temos o pessoal que consegue treinar a próxima geração. Temos que continuar a ter mais estágios e continuar a ter pessoal mais jovem.

No ecossistema nacional mantêm alguma ligação ao Gaming Hub da Unicorn Factory. Acredita que esse tipo de estratégia de clusters funciona?

A estratégia de clusters funciona quando são empresas muito pequenas, com 5-10 pessoas, que estão a inovar e quando uma empresa não funciona, as pessoas dessa empresa podem seguir para as outras. A partir de um certo tamanho já não funciona tão bem, porque as empresas são maiores, os projetos são maiores, estão mais focadas na sua própria produção, e há mais segurança de trabalho dentro da própria empresa.

O que vejo na Europa, comparado com os Estados Unidos, e em Portugal, até comparado com outros países europeus, é que nos EUA há uma cultura de arriscar ‘go big or go home’, de ‘high risk, high reward’. Em Portugal é mais, ‘ah, vou fazer um negócio. O que é que vais fazer? Vou abrir um restaurante’. Isso não é grande risco, não é grande retorno. E há a cultura que se o negócio falhar, fica mal, não é bom.

Há uma estratégia europeia para atrair e fixar startups e scaleups. O que falta nessa estratégia para uma indústria como a dos jogos ser também mais robusta?

Não conheço o detalhe dessa estratégia, mas o que vejo na Europa, comparado com os Estados Unidos, e em Portugal, até comparado com outros países europeus, é que nos EUA há uma cultura de arriscar ‘go big or go home’, de ‘high risk, high reward’.

Em Portugal é mais, ‘ah, vou fazer um negócio. O que é que vais fazer? Vou abrir um restaurante’. Isso não é grande risco, não é grande retorno. E há a cultura que se o negócio falhar, fica mal. Não é bom.

Do ponto de vista do que se pode fazer, eu acho que é encorajar, especialmente os recém-formados, habituados a não ter salário, a não ter gastos muito altos, a incubar. Terem empréstimos sem colateral, rendas baixas, serviços, montantes pequenos, só para ajudar um grupo de quatro, cinco pessoas a montar uma empresa. Se calhar, receberem 20.000 euros para equipamento, renda para seis meses e vão experimentar fazer alguma coisa. Talvez avance ou não avance e não faz mal se não funcionar.

Qualquer sistema para encorajar o empreendedorismo tem que encorajar pessoas a tomarem riscos, a aprenderem com o falhanço, quando as coisas não funcionam. Tem que haver uma organização que apoie as startups, os empreendedores, em que passem a palavra em conferências, palestras: ‘esta empresa não funcionou, aprendemos isto, isto funcionou muito bem, quero usar para a próxima oportunidade’.

A inteligência artificial está a impactar todos os setores. Há tecnológicas a reduzir as contratações de engenheiros à conta disso. Nos jogos, já se sente esse impacto?

A nossa indústria está sempre a empurrar os limites do que é possível do ponto de vista tecnológico. Muitos dos avanços de computação, são graças à indústria de jogos fazer mais esforço para melhorar os jogos e ter mais poder de computação.

Neste momento, fazer um jogo de alta qualidade está cada vez mais caro. A IA, o que na prática vai fazer é melhorar as ferramentas que temos, para não precisarmos de crescer as equipas ainda mais. Ou seja, do meu ponto de vista, a IA ajuda os custos a não aumentar.

Porque cada pessoa que tem que trabalhar com ferramentas para arte, design, formação, o que for, vai ser mais eficiente. Por isso, em vez de termos que contratar mais uma pessoa para um projeto, conseguimos manter as pessoas que temos a fazer trabalho de maior qualidade.

Quando as ferramentas de desenho digital apareceram, muitos dos artistas que trabalhavam à mão saíram da indústria. Os que ficaram foram os que se adaptaram às ferramentas novas e já vinham com o conhecimento das ferramentas novas. Do meu ponto de vista, o que acontece com a IA é igual. Vai haver pessoas que vão perder o emprego, sim. Quem não vai perder? Quem adotar as novas tecnologias.

Não acha que há um risco de substituição? O caso dos estúdios Ghibli tornou evidente a existência de ferramentas IA com muita capacidade para recriar ambientes visuais.

Há 20 ou 30 anos quem estava a desenhar para videojogos desenhava à mão porque ainda não havia o Photoshop, não havia essas ferramentas de desenho digital. Quando as ferramentas de desenho digital apareceram, muitos dos artistas que trabalhavam à mão saíram da indústria.

Os que ficaram foram os que se adaptaram às ferramentas novas e já vinham com o conhecimento das ferramentas novas. Do meu ponto de vista, o que acontece com a IA é igual. Vai haver pessoas que vão perder o emprego, sim. Quem não vai perder? Quem adotar as novas tecnologias.

Em termos de números de trabalhadores, acho que a maioria das equipas não vai mudar. A composição da equipa é capaz de mudar. Porque se calhar precisamos menos de certo tipo de pessoas ou em certa fase de projeto não precisamos de tantos artistas, porque podemos ter IA a trazer imagens e alterar mais rapidamente. Mas depois é preciso pegar essas imagens e fazer um jogo.

Mesmo em coisas mais simples, como apenas texto, não há ainda livros, novelas, prosa de alta qualidade escrita por IA. Falta qualquer coisa.

Ou seja, num cenário mais simples, ainda não estão lá. Então num cenário complicado, um jogo, algo interativo, ainda vai demorar muitas décadas. Acho que estamos a chegar a um plateau, a um limite em que as melhorias do lado da IA vão começar a abrandar.

Mas sente que um qualquer ‘ChatGPT’ possa permitir que pessoas com alguns prompts possam criar um “Dune: Awakening” ou estamos longe desse cenário?

Acho que estamos muito longe. O que vemos é que, mesmo em coisas mais simples, como apenas texto, não há ainda livros, novelas, prosa de alta qualidade escrita por IA. Falta qualquer coisa.

Ou seja, num cenário mais simples, ainda não estão lá. Então num cenário complicado, um jogo, algo interativo, ainda vai demorar muitas décadas. Acho que estamos a chegar a um plateau, a um limite em que as melhorias do lado da IA vão começar a abrandar.

O que sem dúvida vamos ver é certos tipos de jogos que vão incorporar isso. Se calhar, vamos ter jogos que são uma aventura em que o personagem com quem estamos a falar tem uma IA que se adapta ao que estamos a dizer.

Em vez de carregar um botão para as opções de diálogo, estamos a jogar, falamos diretamente para o computador e, do outro lado, uma personagem de IA consegue perceber o que estamos a dizer, o nosso sotaque, a nossa língua, traduz diretamente a língua que estamos a usar, e tem parâmetros de jogo amplos para responder de uma maneira mais customizada para nós. Isso vai acontecer.

Vejo-o com muito segurança a afirmar isso. Já estão a fazer isso?

Não, não estamos a fazer, mas eu sei de tecnologias que estão a fazer isto. Mas até substituir o processo criativo todo, ainda vai demorar décadas.

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