“Setor público precisa de estratégias de médio e longo prazo que transcendam os ciclos políticos”

CEO da Deloitte aponta as oportunidades que espreitam por entre a instabilidade e as estratégias para as aproveitar. Setor público tem muito a melhorar mas é necessária uma estratégia de longo prazo.

Os Investor Relations and Governance Awards (IRGA) chegam à sua 37º edição, num momento de turbulência mundial e de instabilidade política nacional. Em entrevista por escrito ao ECO, António Lagartixo, CEO e managing partner da Deloitte, vê várias oportunidades em todos estes elementos. O essencial é que as organizações se alicercem em focos como as novas formas de tecnologia, um funcionamento mais ágil e de ciclos mais curtos e uma liderança que cada vez mais se vai evidenciar pela capacidade adaptativa.

OS IRGAwards são uma iniciativa da Deloitte, com o apoio do ECO, e todos os anos distinguem projetos e responsáveis das maiores empresas nacionais. Os distinguidos na edição deste ano serão conhecidos na noite de 22 de maio.

A edição deste ano dos IRGAwards tem como mote “Embracing evolution, inspiring change”. Como podem as organizações navegar toda esta instabilidade, nacional e sobretudo internacional, que vivemos neste arranque do ano?

Vivemos tempos desafiantes. Mas tempos desafiantes são por definição também momentos de oportunidade. Os líderes devem ter a capacidade de olhar criticamente para a sua operação e contexto e, ao longo deste caminho de instabilidade, tentar antecipar tendências e oportunidades.

As empresas devem procurar deixar de lado o planeamento estritamente linear e adotar a estratégia como um processo contínuo, dividido em ciclos mais curtos, revendo continuamente apoiados em dados, contexto e feedback dos stakeholders, permitindo ajustar rapidamente o rumo. É essencial que as organizações reforcem a sua capacidade de adaptação: estruturas organizacionais menos hierárquicas, com liderança distribuída e equipas multidisciplinares, autónomas e ágeis, são essenciais para reagir em tempo real aos choques externos.

Paralelamente, acredito que as organizações devem aproveitar momentos como este para reforçar a sua resiliência — através de planos de contingência para riscos geopolíticos, climáticos ou tecnológicos — garante que a organização não só sobrevive, mas sai mais forte de cada choque.

Não há o risco de as energias serem gastas em reagir a um contexto altamente volátil e se perca o foco na transformação de mais médio/longo prazo?

De facto, existe esse risco e o grande desafio dos líderes é equilibrar a gestão do presente com a construção do futuro. Embora a turbulência característica do presente exija respostas imediatas, é imperativo manter a visão de médio e longo prazo. A visão de futuro deverá concentrar-se no reforço de competitividade e deverá assegurar o investimento adequado nas matérias de inovação, sustentabilidade e talento.

Mais do que um fator de diferenciação, num contexto tão volátil e em constante disrupção, o investimento em inovação e tecnologia é um imperativo para assegurar a sobrevivência futura.

Hoje, os stakeholders não medem valor apenas pelas métricas financeiras: esperam propostas de valor sustentáveis, éticas e socialmente relevantes. Além disso, a pressão por critérios ESG, pelas métricas de pegada ambiental, diversidade, boas práticas de governance e impacto social, cresce a cada dia. A dimensão financeira não pode deixar de ser enquadrada dentro de uma proposta de valor sustentável, ética e relevante para a sociedade.

Finalmente, o talento passa a ser um ativo estratégico, exigindo a monitorização contínua do bem-estar, engagement, formação e inclusão para garantir que a organização se prepara já para as competências mais relevantes no futuro, tanto no imediato como no longo prazo.

Num contexto de disrupção permanente, a transformação deixa de ser vista como um “estado futuro” de chegada e passa a ser o próprio modo de funcionamento da organização

António Lagartixo

CEO e Managing Partner da Deloitte

Esta volatilidade é um obstáculo à mudança e à evolução, levando as organizações a uma postura de “wait and see”? Ou, pelo contrário, força algumas mudanças que poderiam estar mais abaixo na lista de prioridades?

Num contexto de disrupção permanente, a transformação deixa de ser vista como um “estado futuro” de chegada e passa a ser o próprio modo de funcionamento da organização. É necessário antecipar problemas, movimentos de concorrentes e as próprias dinâmicas de mercado.

A mentalidade necessária hoje é adaptativa e ágil: baseada em aprendizagem contínua, experimentação rápida e resiliência. Em vez de “implementar uma mudança” pontualmente, os líderes devem assumir a organização em estado de mudança permanente, preferindo ciclos de iteração e correção de rumo a grandes projetos rígidos que demoram meses ou anos a entregar valor.

Uma das áreas onde a evolução, a mudança e a modernização são mais essenciais é no setor público. Esse caminho está a ser feito com o ritmo e o âmbito necessário?

O setor público, pela sua dimensão, complexidade e abrangência, enfrenta naturalmente um processo de transformação mais complexo e demorado. Por isso mesmo, é ainda mais crucial que se preservem estratégias e políticas de médio e longo prazo que transcendam os ciclos políticos, garantindo reformas estruturais consistentes, pois neste tipo de enquadramento, alterações e transformações mais rápidas e ágeis são mais difíceis de gerir e implementar.

Os principais desafios atuais do setor público centram‑se no fomento do desenvolvimento económico capaz de gerar emprego e qualidade de vida, na maximização da produtividade e eficiência dos recursos escassos, na garantia da resiliência dos serviços públicos perante choques cada vez mais frequentes, e na promoção de práticas sustentáveis que deixem legado às gerações futuras.

Em Portugal, como na Europa, já foram dados passos significativos no sentido de simplificar processos, otimizar recursos e agilizar o serviço ao cidadão, mas é essencial acelerar a adoção de ferramentas digitais (incluindo IA) e reforçar a formação dos quadros nas novas tecnologias. Contudo, este esforço deve ser intensificado e orientado por um conjunto de eixos estratégicos fundamentais, como incentivos, programas de formação, investimento em pesquisa e desenvolvimento, políticas de adaptabilidade e regulação.

A modernização do setor público exige um esforço coordenado entre todos os stakeholders — decisores políticos, academia, setor privado e cidadãos — numa lógica de cocriação e compromisso coletivo com o progresso. É este esforço conjunto que permitirá construir um setor público mais ágil, eficiente e centrado nas reais necessidades das pessoas e das empresas.

Concorda que a Inteligência Artificial, sendo uma ferramenta de possível utilização em inúmeras áreas, será o grande acelerador da transformação nas empresas? Como avalia a nossa capacidade de adaptação e de tirar partido desta grande vaga de expansão tecnológica?

Concordo inteiramente. A Inteligência Artificial e as novas tecnologias de forma mais abrangente, nas múltiplas dimensões que já conhecemos, estão a provar o caráter inovador e disruptivo que pode ter para as economias, as empresas e, acima de tudo, para as sociedades e pessoas.

Relativamente às empresas, a Inteligência Artificial não se assume como um elemento de criação de inovação incremental, mas sim como um fator decisivo para a reinvenção das próprias organizações e negócios. Naturalmente que isto não acontece do dia para a noite e exige das empresas e dos seus líderes um investimento sustentado na construção de competências robustas que lhes permitam capitalizar as inovações futuras.

Atualmente, apesar dos exigentes processos de transformação, há já organizações a explorar as potencialidades destas tecnologias, como é o caso dos agentes de inteligência artificial, que estão rapidamente a atrair a atenção do mundo empresarial.

As organizações deverão ter um roadmap estratégico que lhes permita ter uma visão holística, de modo a extraírem o máximo partido destas tecnologias emergentes.

Assumindo a complexidade deste processo de transformação, é recomendável que as organizações comecem por casos de uso de baixo risco com dados não críticos e supervisão humana, evoluindo gradualmente para aplicações mais autónomas e integradas. Pela sua natureza, estes agentes irão alterar profundamente a forma como as empresas operam, desconstruir os seus processos e reinventar o papel das pessoas e talento nas organizações.

O líder moderno tem de transitar de um foco no comando e controlo para uma mentalidade de facilitação e experimentação

António Lagartixo

CEO e Managing Partner da Deloitte

De que forma o papel do líder organizacional se tem vindo a alterar e como pode evoluir para se adaptar a estes contextos particularmente desafiantes?

O líder moderno tem de transitar de um foco no comando e controlo para uma mentalidade de facilitação e experimentação. A estratégia passa a ser um processo iterativo, com ciclos curtos de planeamento, implementação e revisão, todos alicerçados em dados e feedback constantes.

A capacidade adaptativa deixa de ser apenas uma competência desejável e torna‑se a maior vantagem competitiva. Por isso, as organizações devem cultivar uma cultura de errar cedo, aprender depressa e escalar com propósito. É fundamental dar margem para risco controlado e para experiências ágeis para fomentar a inovação contínua e manter a relevância num mercado em rápida mutação.

Os IRGAwards cumprem a sua 37ª edição. Porque é que continua a valer a pena, na sua visão?

Em momentos de disrupção como o que vivemos, é vital contar com um tecido empresarial robusto, capaz de gerar valor económico e também social. Os IRGAwards, ao distinguir as melhores práticas entre organizações e líderes, funcionam como um catalisador para a partilha de casos de sucesso e para a disseminação de modelos replicáveis de inovação e real impacto no mercado empresarial nacional.

Essa visibilidade inspira outras empresas a abraçar a evolução contínua, reforçando assim o papel do setor empresarial como criador de valor para a economia, para a sociedade e para os indivíduos.

Portugal voltou a viver um ato eleitoral. Como é que as empresas devem posicionar-se num contexto que também é de incerteza política nacional?

Apesar da volatilidade política, Portugal tem demonstrado notável resiliência e capacidade de adaptação: a perspetiva de crescimento de 2,0% para 2025 está acima da média da Zona Euro, a inflação deverá recuar de 2,7% para 1,9% e o desemprego mantém‑se em cerca de 6,5%.

O tecido empresarial português, fortalecido pela abertura acelerada aos mercados externos e pelo saldo positivo da balança comercial (tendo vindo a inverter-se uma tendência historicamente negativa), conta hoje com um setor financeiro mais capitalizado para apoiar o crescimento.

Nestas alturas, as empresas devem ver a incerteza como oportunidade. Devem apostar em inovação e tecnologia emergente, adotar uma visão global que integre riscos geopolíticos e cibernéticos, e reforçar a agilidade organizacional para operar com flexibilidade num mercado em constante mutação.

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