“Somos dos países da UE em que o desporto mais depende do financiamento público e isso é um grande problema”

Os últimos Jogos Olímpicos representaram a melhor participação de sempre de Portugal. João Paulo Almeida, Diretor do COP, alerta para a excessiva dependência do desporto do financiamento público.

Foi a melhor participação de sempre de Portugal nos Jogos Olímpicos. No maior evento desportivo do mundo, a comitiva lusitana conquistou um total de quatro medalhas olímpicas (incluindo um Ouro, de Pedro Pichardo) e 15 diplomas Olímpicos.

Mas quais foram os ingredientes para o sucesso desportivo destes Jogos, mesmo após uma época atribulada e profundamente afetada pela pandemia da Covid-19? João Paulo Almeida não tem dúvidas sobre qual foi a fórmula mágica.

“O principal fator que contribuiu para alcançarmos os objetivos foi o modelo de gestão ser diferente”, com o Comité a assumir a gestão direta do envelope financeiro, adianta o diretor do Comité Olímpico de Portugal (COP), em entrevista ao ECO. “Os nossos atletas começaram a ter um conjunto de apoios garantidos pelo Comité, apoios multidisciplinares, como por exemplo na área da nutrição ou da psicologia, que hoje em dia são absolutamente determinantes para conseguirmos ter aqui o que os ingleses chamam de competitive edge“, justifica o responsável do Comité Olímpico, um dos participantes do evento SIGA Sports Integrity Week 2021.

O dirigente deixou também um aviso: “Somos dos países da União Europeia em que o desporto mais depende do financiamento público e isso é um grande problema, especialmente em períodos de crise económico”, alerta.

Com quatro medalhas e 15 diplomas Olímpicos conquistados em Tóquio, Portugal teve a melhor participação de sempre nos Jogos Olímpicos. O aumento do investimento (para 18,5 milhões de euros) do Estado nesta missão olímpica contribuiu para esta melhoria de resultados?

Creio que o principal fator que contribuiu para alcançarmos os objetivos foi o modelo de gestão ser diferente. Ou seja, no passado as verbas e os recursos eram transferidos diretamente do governo, através do Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ), para as federações. No modelo que o Comité instituiu desde o ciclo do Rio [referindo-se aos Jogos Olímpicos realizados em 2016], é o próprio Comité que faz a gestão do envelope financeiro do apoio à cooperação e nós assumimos desde logo que não poderíamos ser apenas um bypass financeiro. Queríamos acrescentar valor nesta gestão e foi isso que aconteceu. Progressivamente os nossos atletas começaram a ter um conjunto de apoios garantidos pelo Comité, apoios multidisciplinares, como por exemplo na área da nutrição ou da psicologia, que hoje em dia são absolutamente determinantes para conseguirmos ter aqui o que os ingleses chamam de competitive edge, ou seja, ganhar aquele milésimo de segundo, de conseguir ultrapassar com resiliência problemas que possam surgir inesperadamente. Portanto esse trabalho começa a dar frutos. Aliás, na minha leitura, este foi o principal fator crítico que nos permitiu alcançar o sucesso. E depois, lá está, o trabalho desenvolvido pelos atletas, pelas federações através de um suporte de maior qualidade que lhes foi garantido. Mas ainda há muito fazer claramente.

Uma melhor gestão dos recursos é mais importante do que aumentar o financiamento?

É evidente que o dinheiro é um aspeto relevante mas não é tudo quando se trabalha a este nível de excelência. Na minha opinião, o mais importante é conseguir otimizar os recursos financeiros, e não só, que são colocados ao dispor do programa de preparação olímpica. Respondendo diretamente à sua pergunta, diria que nunca é suficiente, há sempre aspetos de gestão financeira que ficam por responder, ficam aquém das necessidades. Mas há um aspeto que quero sublinhar: o Estado honrou a tempo e horas todos os seus compromissos e, portanto, é tão ou mais importante o envelope financeiro como é a disponibilidade do mesmo no momento certo.

O Comité conseguiu em traços gerais ter os recursos dentro dos prazos previstos para fazer toda a gestão do projeto Olímpico. Agora, isto tem de ser visto numa ótica mais alargada. O programa de preparação olímpica é o culminar de toda uma carreira desportiva de alto rendimento e há aqui aspetos que têm de ser otimizados e, o facto de, haver um programa, apoiado pelo Estado, de alto rendimento necessita de ter uma maior coordenação e interligação como projeto olímpico para que haja uma continuidade neste processo, que vai desde a captação de talentos ao início da carreira de alto rendimento. Esta afinação é para mim o aspeto mais essencial. Porventura, mais até que o envelope financeiro.

O maior desafio é termos um conjunto de atletas que consigam, de uma forma consistente, obter resultados de excelência ao longo do ciclo Olímpico, para que chegados os jogos tenham fortes hipóteses de posições de pódio, e quem sabe até do ouro Olímpico.

É possível esperarmos semelhante nível de sucesso nos próximos Jogos Olímpicos em 2024, em Paris?

Esse é o grande desafio, queremos acreditar que sim porque temos aqui um conjunto de atletas que nos dão garantias objetivas disso. Muitos dos nossos atletas medalhados tiveram resultados em provas de topo, refiro-me a campeonatos do mundo, da Europa e a marcas pessoais, que no fundo acalentavam fundadas razões que iriam ter resultados de topo. Portanto, a programação que fizemos e os objetivos que traçamos não foi um mero acaso, havia aqui elementos que permitiam que isso acontecesse. E, hoje em dia, temos um conjunto de atletas, não apenas os que foram medalhados, mas também o conjunto de atletas que tiveram posições de diploma [os oito primeiros lugares na classificação final], que garantem que possa haver essa continuidade em termos de sucesso desportivo. O maior desafio é termos um conjunto de atletas que consigam, de uma forma consistente, obter resultados de excelência ao longo do ciclo Olímpico, para que chegados os jogos tenham fortes hipóteses de posições de pódio, e quem sabe até do ouro olímpico.

E quais são os objetivos para os Jogos de Paris?

Neste momento é um processo ainda em aberto. Esperamos que no início do próximo ano já tenhamos um programa para garantir a continuidade dos apoios do ciclo de Paris, que é um ciclo mais curto, de apenas 3 anos.

Na história recente do país, o atletismo, canoagem e judo são as modalidades que mais títulos têm conquistado. O que falta às restantes para atingir o mesmo nível de sucesso?

Isso é um traço demonstrado de algumas carências e fragilidades que existem no nosso sistema desportivo e do nosso processo de desenvolvimento, que é o facto de apenas conseguirmos classificar atletas num número reduzido de modalidades. Porém, olhando para essas modalidades há questões distintas para explicar o seu sucesso. Por exemplo, o atletismo é uma modalidade que teve a felicidade de ter uma pessoa com uma visão muito à frente do seu tempo, como foi o caso do Prof. Mário Moniz Pereira, um pioneiro no planeamento de processos de treino e que conseguiu criar uma equipa, composta por Fernando Mamede, Carlos Lopes ou mais tarde os gémeos Castro, que garantisse o alto desempenho desportivo. Num modo geral, é evidente, que o facto de existirem clubes ecléticos, permitiu assegurar uma base de estabilidade e colmatar algumas lacunas existentes em determinados desportos. Os clubes foram e são absolutamente determinantes para o sucesso das modalidades que esteve a referir.

Apesar da melhoria de performance, Portugal continua atrás de nações como os Países Baixos ou a Hungria, cuja dimensão geográfica e populacional é muito semelhante à nossa. Porquê?

Normalmente, para este tipo de problemas não existe apenas uma única causa. É verdade que existem países que têm mais ou menos a nossa população e, porventura, um PIB per capita semelhante ao nosso que conseguem ter resultados de topo. Mas para isto, temos de olhar também para o aspeto histórico. Por exemplo, muitos países que vêm da esfera da antiga União Soviética, o desporto sempre teve um peso muito grande na agenda política, aliás até era um fator de afirmação externa nos próprios estados e, em Portugal, não temos essa cultura histórica. E quando olhamos para muitos desses países, o nível de investimento per capita na área do desporto é muito diferente do nosso. Não podemos aspirar ter resultados de excelência não tendo aqui uma tradição histórica desportiva. Portanto, diria, usando uma metáfora, começamos a correr bastante atrás da linha de partida e estamos aqui um pouco à procura de colmatar essa lacuna.

Com a pandemia, quais foram os maiores desafios que o Comité Olímpico enfrentou?

Um dos maiores desafios foi a suspensão da atividade desportiva. Tivemos atletas que tiveram fortes condicionalismos no seu processo de preparação, seja em termos de locais de treino ou de competições desportivas, que ficaram suspensas durante muito tempo e numa altura muito próxima dos Jogos. Essa situação criou não só dificuldades em avaliar o desempenho dos atletas, porque não tinham oportunidades para competir, como também criou aqui um stress emocional bastante grande perante a incerteza da data de realização dos Jogos Olímpicos, ou se até mesmo iriam realizar-se.

Há pouca renovação geracional (no desporto) e isso coloca-nos numa situação de enorme risco, associado ao facto do desporto em matéria de políticas públicas, quando comparado com outros países, não estar no topo da agenda torna muito difícil garantir esta sustentabilidade. Esta situação é uma preocupação do Comité Olímpico de Portugal.

Sentiu que o adiamento dos Jogos para 2021 trouxe implicações para os atletas?

Tenho dificuldade em fazer essa avaliação, porque tem aspetos que diria que sim, mas também tem aspetos em que diria que não. Por exemplo, houve atletas, que beneficiaram do facto de competidores que teriam mais chances de ter melhores resultados não chegassem a competir na sua plenitude, ora ficaram infetados com Covid-19 ou tiveram algum problema durante a pandemia que os impediram de estar no topo de forma, mas também aconteceu o inverso. Houve outros atletas para os quais tínhamos determinado tipo de expectativas e que, o impacto da pandemia, fez com que não tivessem resultados de acordo com o previsto. Portanto, é muito difícil fazer um balanço dessa realidade. Mas diria ainda assim que em traços gerais, o adiamento dos Jogos acabou por ser positivo para nós afinarmos o processo de planeamento. Houve aqui um aspeto que foi muito importante e que é um sucesso que não é muito relatado pela comunicação social, foi o facto de em Tóquio, nenhum dos atletas da missão portuguesa ter sido infetado. Isso foi uma vitória para nós.

De acordo com um estudo recente do Comité Olímpico, o número de jovens desportistas federados caiu para menos de metade durante a pandemia. O futuro do desporto nacional está em risco?

Claramente, não só isso como também o facto de Portugal ser um dos países com uma maior taxa de envelhecimento da União Europeia. Portanto, há pouca renovação geracional e isso coloca-nos numa situação de enorme risco, associado ao facto do desporto em matéria de políticas públicas, quando comparado com outros países, não estar no topo da agenda torna muito difícil garantir esta sustentabilidade. Portanto, esta situação é uma preocupação do Comité Olímpico de Portugal. É preciso haver um conjunto de estratégias que permitam fomentar a prática desportiva de uma forma sustentável.

Voltando aos últimos Jogos em Tóquio. Houve uma pequena polémica em torno dos patrocínios, em que o judoca Jorge Fonseca criticou a falta de patrocinadores após vencer a medalha de Bronze. Há de facto um desinteresse por parte das marcas neste tipo de modalidades?

Eu não diria um desinteresse. O mercado dos patrocínios, tal como noutros setores de atividade, sofreu um forte rombo devido ao impacto da crise pandémica e tudo isto é descortinado, desde o valor de um atleta em termos competitivos ao seu valor enquanto marca. Tudo isto é tido em consideração. Infelizmente, nós sentimos isso no Comité, mesmo com os nossos patrocinadores, ainda existe grandes lacunas que importa colmatar. Mas eu aí, não diria que seja apenas um desinteresse ou um desinvestimento por parte de potenciais patrocinadores, há um trabalho também, que seja pelos atletas, clubes, pelas federação e pelo próprio Comité Olímpico que tem de ser feito no sentido de, no fundo, terem uma estratégia de melhor promoção dos seus ativos de transição para a área digital, de envolvimento de fãs, etc.

Outro dos temas que ganhou destaque nos últimos Jogos Olímpicos foi a saúde mental dos atletas. Que tipo de apoio dá o Comité Olímpico aos atletas neste campo?

Temos uma equipa multidisciplinar, onde existe uma psicóloga que esteve nos Jogos Olímpicos e acompanha sempre os atletas, desde os treinos às grandes competições. Aliás, hoje em dia, muitas federações já dispõem de serviços de psicologia. Agora, a questão é mais funda, porque como vimos este ano, mais especificamente no caso de Simon Biles [a ginasta norte-americana retirou-se de uma série de provas nos Jogos Olímpicos de Tóquio invocando questões de saúde mental, embora tenha conquistado Bronze na Trave], existem aqui um conjunto de camadas muito profundas que inibem os atletas, mesmo quando têm apoio, de contar o que estão a passar. Mesmo nas grandes potências desportivas, este tipo de questões ainda está longe de ser resolvida. Isto é um trabalho que tem de ser estruturado a longo prazo.

“Somos dos países da União Europeia em que o desporto mais depende do financiamento público e isso é um grande problema, especialmente em períodos de crise económico.”

O que gostaria de ver daqui a 10 anos no desporto português?

Gostaria de ver que efetivamente no domínio das políticas públicas, o desporto nacional tivesse um estatuto que hoje não tem, ou seja, estar presente nos processos de tomada de decisão. Quando falo dos processos de tomada de decisão, eu refiro-me, por exemplo, ao Orçamento de Estado. Gostaríamos que o desporto tivesse o mesmo nível de importância de outras áreas, como a cultura ou o património. Isto é algo em que vemos em inúmeros países europeus. Em Portugal, há uma grande deriva emocional em torno do desporto.

Por fim, gostava também que houvesse por parte do tecido privado, e quando falo do tecido privado, refiro-me às famílias enquanto consumidores de bens e serviços mas também das empresas, mais interesse pelo desporto. Infelizmente, nós somos dos países da União Europeia em que o desporto mais depende do financiamento público e isso é um grande problema, especialmente em períodos de crise económico.

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