Os profissionais de saúde estão sujeitos a uma enorme pressão física e psicológica nesta pandemia, e muitas vezes em condições inimagináveis. Leia o Novo Normal desta semana.
“Isto é um hospital destroçado”, “estamos num clima desastroso.”
“Quando se fala em caos e em rutura é disto que estamos a falar. A maior parte das pessoas está a fazer tudo menos aquilo que devia estar a fazer.”
“Como metade dos especialistas não fazem o serviço de urgência, os que fazem estão a ter de cumprir duas escalas de urgência de 24 sobre 24 horas, mais turnos de 12 horas, todos os dias da semana e do fim de semana. São 28 turnos por semana a dividir por 12, uma perfeita loucura.”
“Neste momento temos dedicadas a estas enfermarias covid pessoas de praticamente todas as especialidades; da última vez que vi os recrutamentos, a única especialidade médica que não tinha sido chamada era a estomatologia.”
“Isto é disruptivo até em termos psicológicos. Aquilo a que assistimos em Itália, quando começou a pandemia (…), estamos nós agora a viver aqui. Agora está-se a viver aqui o inferno.”
As frases acima são de Carlos Robalo Cordeiro, diretor de Pneumologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. O seu testemunho, que pode (e deve) ser lido no Observador, impressiona. Dá conta do ambiente de calamidade nos principais hospitais portugueses, e da pressão a que estão sujeitos médicos e outros profissionais de saúde.
“Os médicos estão exaustos, ninguém tem um bocadinho para fazer nada seu”, relata Robalo Cordeiro, que fala de “médicos e enfermeiros, desesperados e cansados, a virem apanhar um bocado de ar para conseguirem respirar fundo, desabafar ou até chorar”. E muitos “estão a ver os colegas a infetarem-se” – “temos vários colegas em unidades de cuidados intensivos neste momento.”
Escolhi este relato, entre muitos que têm sido divulgados pelos media portugueses e internacionais, para focar a pressão física e psicológica a que estão sujeitos os profissionais de saúde nesta pandemia, e nas consequências de trabalhar sob estas condições. Não há país onde médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da linha da frente não partilhem vídeos desesperados com os relatos das condições inimagináveis em que estão a trabalhar, sem capacidade de dar resposta ao agravamento dos números de infeções, internamentos, doentes em cuidados intensivos e mortes.
Esta sexta-feira, o hospital de Santa Maria era bem a imagem dessa pressão insuportável, com um comboio de ambulâncias à porta, e a notícia de que há surtos de covid em vários serviços.
Em março, esse esforço valia, pelo menos, o reconhecimento público de quem ia para a janela aplaudir esses profissionais. Da mesma forma que parecemos ter-nos deixado anestesiar pela banalidade dos números, também parecemos ter-nos alheado desse esforço, nalguns casos, sobrehumano.
Por todo o mundo tem sido avaliado o estado da saúde mental da população nestes tempos de peste, e em particular o que se passa com os profissionais de saúde. Em Portugal também. O estudo Saúde mental em tempos de pandemia Covid-19, levado a cabo pelo Instituto Ricardo Jorge, com a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, foi divulgado esta semana. Participaram pouco mais de seis mil pessoas, das quais 2097 profissionais de saúde, com vista a averiguar o impacto da pandemia em diversas dimensões de saúde mental (bem-estar psicológico, ansiedade, depressão, perturbação de stress pós-traumático, burnout e resiliência).
O trabalho de campo aconteceu entre maio e agosto de 2020. Isto é, após o primeiro pico da pandemia em Portugal. Ou seja: as conclusões são preocupantes, mas refletem uma realidade já distante – e, a esta distância, quase cor-de-rosa, tendo em conta o quanto as coisas se agravaram.
Eis as principais conclusões para a população geral:
- 33,7 % apresentavam sinais de sofrimento psicológico.
- 27% dos inquiridos reportaram sintomas moderados a graves de ansiedade.
- 26,4% tinham sintomas moderados a graves de depressão.
- 26% reportaram sintomas de perturbação de stress pós-traumático.
- Mulheres, jovens adultos entre os 18 e os 29 anos, desempregados e indivíduos com mais baixo rendimento são quem mais apresenta sintomas de sofrimento psicológico.
- A conciliação do trabalho e da vida familiar em tempo de pandemia é um dos maiores fatores de pressão: dos que apresentam sinais de sofrimento psicológico, 71,2% não têm conseguido conciliar trabalho e vida familiar, 55,6% não conseguem manter o nível de desempenho/produtividade, para 51,4% o trabalho tem interferido mais com a vida familiar e pessoal, 53,7% não têm a mesma capacidade financeira.
- O estudo concluiu ainda que a manutenção de passatempos, rotinas diárias e atividade física “são protetores do bem-estar psicológico e estão associados a um risco diminuído de sintomas de ansiedade, depressão e, em particular, de stress pós traumático”.
Os dados são bastante mais preocupantes quando olhamos para os profissionais de saúde:
- 44,8% apresentavam sinais de sofrimento psicológico.
- Os que estão na linha da frente a tratar doentes com covid-19 mostram um risco de sofrimento psicológico 2,5 superior àqueles que não tratam doentes com coronavírus.
- 32,1% dos profissionais de saúde reportam sintomas de burnout. Atente neste número: 1 em cada 3 profissionais de saúde apresentam níveis de exaustão física e emocional elevados.
- 30,8% tem sintomas de ansiedade moderada ou elevada e 28,4% de depressão.
- 28% revela perturbação de stress pós traumático.
- Em contraponto, cerca de um terço (28,8%) dos profissionais de saúde revela um nível elevado de resiliência, sobretudo os do sexo masculino e com 50 anos ou mais.
A outra epidemia da pandemia
“Existe já evidência robusta a nível internacional em como a pandemia covid-19 está a ter um impacto relevante na saúde mental e no bem-estar, conduzindo a ansiedade, depressão e perturbação de stress pós-traumático”, refere o estudo liderado pelo INSA, concluindo que “os resultados deste estudo apontam para taxas elevadas de perturbações em saúde mental”. É assim para a população em geral, para quem esteve infetado com covid (com quarentena ou internamento) e em particular para os profissionais de saúde.
Não há nada de especificamente português nestes resultados. Estudos internacionais sobre as consequências da pandemia nos grupos profissionais que estão na linha da frente do combate ao vírus dão resultados semelhantes. Este paper publicado em agosto trabalhou sobre as conclusões de treze estudos elaborados durante a primeira vaga, para fazer uma súmula do estado da arte em relação à prevalência de depressão, ansiedade e insónia entre os profissionais da saúde durante a pandemia de covid-19. Algumas conclusões:
- pelo menos um em cada cinco profissionais tinha sintomas de depressão.
- quatro em cada dez tinha insónias ou dificuldades em dormir.
- os níveis de ansiedade e depressão são superiores nas mulheres.
- Note-se que todos esses trabalhos foram feitos antes da atual vaga da pandemia, que agravou tudo o que já era grave – e, com isso, aumentou a pressão sob a qual trabalham médicos, enfermeiros e demais pessoal de saúde.
Estes níveis de burnout, stress, e sintomas de depressão e de stress pós-traumático (note-se que ter sintomas de depressão não equivale a estar deprimido) atingem um grupo profissional que é muitas vezes olhado como privilegiado. Desde logo, porque tem uma taxa de mortalidade mais baixa do que a média da população, pois estamos a falar de pessoas que, por fazerem parte do sistema de saúde, têm melhor acesso a diagnósticos e tratamentos. É ainda mais assim no caso dos médicos, cujo estatuto social acentua esta perceção. Mas isso esconde outra realidade: os médicos são dos grupos profissionais com indicadores mais preocupantes de saúde mental, nomeadamente relacionado com stress pós-traumático, conforme frisa este artigo do Journal of Clinical Psychiatry (JCP) sobre o impacto da covid-19 na saúde mental e risco de suicídio entre trabalhadores da saúde. Os mais expostos são os que lidam com situações de urgência e trauma.
Estudos internacionais indicam que os médicos são dos grupos profissionais com mais altas taxas de suicídio, até 44% acima da população em geral (há muita literatura científica, deixo só estes três artigos). Alguns países também mostram maiores taxas de suicídio (ou pensamentos relacionados com suicídio) entre enfermeiros e outros profissionais de saúde, como diz este estudo inglês. Os níveis de burnout também são mais elevados entre o pessoal de saúde do que noutras áreas de atividade, em resultante de stress crónico relacionado com o trabalho.
A chamada “epidemia de suicídio” entre pessoal médico já foi mais grave, e a tendência tem sido de descida, em boa medida graças a melhores mecanismos de apoio, tanto na sociedade como nas unidades de saúde – mas o choque da covid-19 pode ter impactos dramáticos. E há outro fator, já bem estudado, que pode agravar a situação: parece haver uma inibição social que faz com que poucos profissionais de saúde procurem ajuda face aos sintomas relativos à sua saúde mental. Este estigma está bem caracterizado, e revela-se desde cedo: segundo este estudo norte-americano de 2016, 27% dos estudantes de medicina tinham sintomas de depressão, mas apenas 15% procuravam ajuda. Tudo indica que a resistência se mantém ao longo da vida.
“Dado o risco existente à partida de problemas de saúde mental entre trabalhadores da saúde, os desafios únicos colocados pela crise da covid-19, e as suas consequências a longo prazo, aumentam as preocupações”, escrevem os autores do estudo já citado do JCP.
Por outro lado, o impacto de epidemias de doenças respiratórias na vida dos trabalhadores da saúde é já bem conhecido. Nunca houve nada parecido com a SARS-Cov-2, mas tanto a SARS como a MERS permitiram perceber, há anos, que estes eventos têm consequências imediatas na saúde mental de médicos, enfermeiros e demais pessoal de saúde, mas também efeitos a longo prazo, nomeadamente depressões e síndrome de stress pós-traumático.
“Exaustos e em sofrimento”
Tudo o que foi verdade com epidemias anteriores, e está documentado em trabalhos como este ou este, é ainda mais grave atualmente. As razões para a pressão acrescida são muitas, elencadas em diversos estudos conduzidos em diversos países (pode começar por este):
- risco de contágio
- medo de levar o vírus para casa
- horas excessivas de trabalho
- poucas horas de sono e de descanso
- sensação de estar a falhar no apoio doméstico
- menos sociabilização, menor rede de apoio social e familiar
- sensação de isolamento
- condições de trabalho insuficientes
- escassez de material
- falta de recursos humanos
- aplicação de protocolos novos e que mudam frequentemente
- necessidade de assegurar funções diferentes das habituais
- dificuldade de trabalhar com o EPI (equipamento de proteção individual)
- percepção de não estar a conseguir fazer a diferença
- frustração perante agravamento da condição dos pacientes
- impotência pela enorme quantidade de mortes
- doença e morte de colegas de trabalho
- necessidade de tomar decisões moralmente dilacerantes
- sensação de poder estar a ser julgado negativamente pelos outros
Este texto, em que o Público ouviu médicos e um enfermeiro de quatro hospitais, revela bem como todos estes elementos contribuem para uma situação de “loucura total”, com os médicos “exaustos e em sofrimento ético” (pode ler aqui sobre as “feridas morais” que resultam de de decisões que, no limite, representam uma traição àquilo que está correto – o caso mais óbvio é escolher que pacientes são ventilados quando não existem meios para todos…).
Cito o testemunho de Carlos Oliveira, intensivista do Hospital Beatriz Ângelo:
“É difícil manter a racionalidade numas urgências em que se pratica uma medicina de catástrofe. Os profissionais ficam devastados quando sabem que, se tivessem chegado meia hora mais cedo, o desfecho daquele doente teria sido diferente.”
“Na verdade, sim, estamos a recusar doentes que em março não recusávamos, dizendo aos colegas que o doente ainda não está suficientemente mal para vir para o nosso serviço.”
“[Há profissionais] exaustos, devastados por estarem conscientes de que não estão a prestar os cuidados devidos, a desidratarem-se e a ficarem infectados porque têm uma porta aberta para a rua e nem sempre conseguem cumprir o protocolo de segurança.”
Mais de 21 mil infetados em Portugal
Em Portugal, de acordo com a DGS, mais de 22 mil profissionais de saúde já contraíram covid-19, entre eles,
- 6.706 assistentes operacionais
- 6.189 enfermeiros
- 2.828 médicos
- 1.078 profissionais de ERPI (lares de idosos)
- 1.150 assistentes técnicos
- 980 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica
- 439 farmacêuticos
Os dados desta sexta-feira, divulgados pelo Público, dão conta de que mais de metade destes infetados já recuperou, mas 10.606 estão atualmente infetados, e não podem trabalhar.
Dados sobre mortalidade entre profissionais da saúde é que não existem, conforme denunciou no Parlamento o bastonário da Ordem dos Médicos. Sabe-se que, só esta semana, morreram pelo menos três clínicos.
Reportagens como esta do New York Times, com um médico que contagiou a sua família e continua a ter pesadelos com isso, dão bem conta de uma parte do que está em causa. É uma provação permanente sobre corpo e mente. São picos de ansiedade seguidos de abismos depressivos. E cansaço profundo e uma sensação de impotência capaz de paralisar. Há quem lhe chame a fadiga do combate. Na primeira vaga ficou célebre esta imagem de uma enfermeira italiana que “apagou” sobre o teclado do computador.
A Itália foi o primeiro país europeu a sofrer o impacto da pandemia, com médicos obrigados a escolher que paciente haviam de salvar. Este estudo, feito durante essa dramática primeira vaga, faz o retrato do impacto psicológico sobre os trabalhadores da saúde que viveram esses dias.
Muitos não sobreviveram para contar: segundo os dados do Instituto Nacional de Saúde de Itália, 150 médicos morreram e outros 25 mil trabalhadores do setor da saúde foram infetados com covid-19, num total de 220 mil casos e 30 mil mortes em apenas onze semanas. Era o tempo em que, para além de faltar quase tudo do ponto de vista material, faltava conhecimento e experiência para saber o que fazer. O inesperado da situação e o desconhecimento do inimigo agravaram a situação.
Psiquiatria da linha da frente
O estudo desenvolvido em Itália na primeira vaga envolveu 210 participantes, incluindo profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, etc.) e pessoal de serviços de emergência (bombeiros, proteção civil e emergência médica). A conclusão é previsível: tantos uns como outros lidaram com elevadíssimos níveis de stress físico e psicológicos, e arriscam desenvolver stress pós-traumático. No entanto, as situações detetadas no grupo da saúde revelaram-se mais graves do que no grupo da emergência, o que teve como consequência:
- mais tensão e dificuldades de trabalho em equipa
- exaustão física
- doenças psicossomáticas
- irritabilidade
- dificuldade em manter o controlo da situação, tomar decisões e prever as consequências das suas ações
- manifestações de raiva, impotência e frustração
À semelhança de outros estudos, o fator género mostrou-se relevante: as mulheres relevaram maior stress físico e emocional, e tinham, mais do que os homens, a sensação de que as suas decisões eram ineficazes.
Segundo um outro estudo conduzido durante a primeira vaga, na China, 72% dos profissionais de saúde acusavam sofrimento psicológico, metade tinham sintomas de depressão, outros tantos revelavam altos níveis de ansiedade, e 34% queixava-se de insónias. Os médicos da linha da frente eram os mais afetados, mas ninguém escapou sem sequelas psicológicas.
Já no final de 2020, outro trabalho focado em Itália, com um universo de mais de mil pessoas, acrescentou informação relevante:
- uma em cada três apresentava altos níveis de exaustão emocional
- mais de metade registava irritabilidade, mudança de hábitos alimentares, dificuldades em adormecer e tensão muscular
- apesar disso, mais de metade (53%) sentia gratificação pessoal pelo trabalho no combate à covid
Há trabalhos semelhantes desenvolvidos em diversos países (como Reino Unido, em Espanha ou Japão) e todos têm resultados preocupantes.
Se há consenso sobre os efeitos, também há sobre a resposta a dar: prevenir e mitigar. Não esperar pelos sintomas de depressão ou ansiedade, para então curar. Compram-se mais camas, mandam-se vir mais ventiladores, troca-se equipamento, mas o pessoal médico não é descartável e demora muitos anos a formar.
Neil Greenberg, professor do King’s College e especialista em trauma, olha para a situação dos hospitais ingleses (no limite, como os portugueses) e sugere “psiquiatria da linha da frente”. Da mesma maneira que protegem os seus profissionais do vírus com EPI (equipamento de proteção individual), as unidades de saúde têm de lhes garantir também EPIP: “Os hospitais têm de garantir que o pessoal que está a trabalhar na pandemia têm suficiente equipamento de proteção individual psicológica.”
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A linha da frente é um inferno. As marcas no pessoal de saúde vão ficar
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