Crescimento explosivo do Covid, variantes preocupantes e vacinas a conta-gotas

Já morreram dois milhões com Covid, há novas variantes de consequências incertas e a vacinação, em Portugal e no mundo, anda a conta-gotas. Leia o Novo Normal desta semana.

Temos más notícias e más notícias. A terceira vaga está aí em força — em Portugal o quadro é dramático, mas as coisas estão a agravar-se em muitos países. O mundo assinalou uma nova fasquia da devastação: dois milhões de mortos A vacinação está a desenrolar-se muito mais lentamente do que seria desejável. E, a completar o quadro, é ameaçador o crescimento de novas variantes da Covid-19, provavelmente mais capazes de se “esconderem” dos anticorpos.

Como qualquer vírus, o SARS-Cov2 sofre naturalmente mutações e evoluiu. Mas no último mês a atenção focou-se nas variantes detetadas no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil, mais contagiosas. Isto só por si seria motivo de preocupação, mas o aviso dos cientistas, parafraseando uma frase célebre, é: habituem-se!

Esta semana, Salim Abdool Karim, um dos principais especialistas mundiais em doenças infecciosas, avisou no Financial Times para o novo normal: conforme mais pessoas vão sendo expostas ao vírus, e ganham alguma imunidade, o vírus irá evoluir mais rapidamente para evitar ser reconhecido pelos anticorpos que o detetam e combatem. “Vamos ver isto ocorrer mais frequentemente do que em 2020, à medida que vacinamos e mais pessoas são infetadas”, garantiu o especialista sul-africano, que liderou os esforços do seu país na luta contra o HIV.

Esta evolução coloca várias preocupações: saber se as variantes são mais virulentas (até agora parece que não), se são mais contagiosas (sim), se driblam melhor os anticorpos (aparentemente sim). Também se levantam dúvidas sobre a eficácia das vacinas, e há questões por responder sobre o efeito das novas variantes na possibilidade de reinfeção. E, em todo um caso, uma certeza: basta que o vírus se torne mais contagioso para isso agravar a situação. “O perigo é o aumento do número de pessoas infetadas, a ponto de originar o colapso dos sistemas de saúde, bem como o aumento da incapacidade dos países no controlo da infeção”, diz a investigadora Maria João Amorim neste bom trabalho do Público deste sábado sobre as novas variantes.

Uma das variantes, a 501Y.V2, detetada em outubro na África do Sul, apresenta mais mutações na proteína espícula – presente no espigão, a parte pela qual o vírus se liga às células humanas – e por isso parece ter a capacidade de se “agarrar” mais e mais facilmente às células. Esse parece ser o padrão das variantes mais resistentes, que podem combinar cerca de duas dezenas de mutações, e não apenas uma ou duas mudanças genéticas, como vinha acontecendo nas outras variantes identificadas ao longo do ano passado. É fácil de perceber: se o vírus reúne mais mutações, muda de comportamento de forma mais robusta.

A variante britânica (B.1.1.7), identificada em setembro, tornou-se notícia mundial em dezembro, devido ao seu crescimento impressionante. A sua transmissibilidade é entre 50% a 70% maior, e tornou-se a variante mais importante em boa parte do Reino Unido; em dezembro já era responsável por dois terços dos novos casos em Londres, um dos territórios mais afetados pela pandemia em todo o país – no gráfico abaixo pode ver-se a evolução da prevalência desta variante nos testes feitos num grande laboratório da capital britânica.

A preocupação estende-se aos mais de 50 países onde já está presente, dos quais 25 são países europeus. O diretor da OMS para a Europa, Hans Kluge, reconhece que “há dúvidas legítimas” sobre a eficácia das vacinas já disponíveis no combate às novas variantes – isto, apesar de ter sublinhado que “não há provas” de que não protejam contra as novas variantes.

Esta semana, na reunião dos ministros da saúde da UE, presidida por Marta Temido, a variante inglesa foi um dos focos de atenção. “Já estamos a ver um impacto significativo em vários países europeus”, confirmou a comissária Stella Kyriakides.

Abdool Karim nota que, nos estudos desenvolvidos na África do Sul, os anticorpos de pessoas que contraíram a covid naturalmente e recuperaram mostraram-se menos eficazes contra a nova variante sul-africana – porém, o investigador acrescenta que “não se pode extrapolar da imunidade natural para a imunidade da vacina”, pois a imunidade conferida pela vacina funciona de forma diferente sobre as células.

A variante da África do Sul já foi detetada em 20 países, e tornou-se rapidamente dominante no seu país de origem (representa 60% a 75% dos casos positivos naquele país), tendo substituído as linhagens do vírus que circulavam durante a primeira vaga. Apesar de estar a receber menos atenção mediática do que a B.1.1.7, os primeiros dados indicam que a variante sul-africana é igualmente mais contagiosa do que as variantes conhecidas até agora mas, para além disso, parece resistir melhor às vacinas já aprovadas.

Razão: uma mutação específica (E484K) faz com que os anticorpos tenham mais dificuldade em detetar o vírus – podem ser até dez vezes menos sensíveis à presença do vírus, em particular em doentes idosos. “Neste momento, pensamos que a vacina pode ser um pouco menos eficaz”, admite um dos investigadores da 501Y.V2, Tulio de Oliveira.

Contudo, “entre tanta variedade de vacinas que estão a chegar ao mercado, acreditamos que algumas serão muito eficazes”, atalha Abdool Karim. Em breve haverá mais certezas, diz o investigador: “Teremos uma resposta [sobre a eficácia das vacinas em relação à variante sul-africana] nas próximas duas semanas.”

A variante brasileira, oriunda do estado do Amazonas, é conhecida desde julho, mas só agora captou a atenção internacional, depois de ter sido detetada no Japão. O Libération de quinta-feira dedicava a manchete (“Os invasores”) às variantes da covid-19, incluindo a da Amazónia, sobre a qual cita o instituto brasileiro Fiocruz: “Os resultados sugerem que a mutação detetada na variante B.1.1.28 é um fenómeno recente, que ocorreu provavelmente entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021”. Esta variante ainda não está sequenciada, mas há suspeitas de que também seja capaz de grande resistência, tendo em conta que é oriunda de um território onde a população deveria estar no limiar da imunidade de grupo.

O estado do Amazonas, e a capital, Manaus, foram dos mais fustigados pela pandemia num país duramente atingido pela covid-19, e voltou a ser notícia por estes dias devido à enorme mortalidade por não haver oxigénio para os doentes ventilados. Ora, segundo um estudo da revista Science, publicado em dezembro, 76% da população de Manaus tem anticorpos contra a Covid – o que, de acordo com os epidemiologistas, já permite falar em imunidade de grupo (o limiar são os 66%). Apesar dessa suposta imunidade comunitária, foi aí que surgiu a variante brasileira (os casos detetados no Japão foram com viajantes oriundos do estado do Amazonas). Daí a suspeita de que esta nova variante é menos sensível às defesas imunitárias já adquiridas durante a pandemia.

Apesar da rapidez com que o SARS-Cov2 se está a adaptar, nada indica que se esteja a tornar mais mortífero. A expectativa é, aliás, a contrária: de acordo com um estudo publicado esta terça-feira na Science, a evolução do SARS-Cov2 deverá torná-lo num vírus “endémico” menos agressivo, à semelhança de outros coronavírus com que convivemos, com sintomas suaves ou moderados. Ou seja, uma espécie de vírus da gripe. “Estamos em território desconhecido, mas… os indicadores imunológicos sugerem que as taxas de mortalidade e a necessidade crítica de vacinação em larga escala podem diminuir no curto prazo. Portanto, o máximo esforço deve ser feito para superar esta pandemia”, diz Ottar Bjornstad, um dos responsáveis pelo modelo da previsão publicada na Science.

Entretanto, a variante brasileira já significou uma má notícia para Portugal: para travar a sua entrada no Reino Unido, o governo de Boris Johnson proibiu voos de dezasseis países, quase todos da América Latina… mais Portugal, único país europeu visado nesta medida, devido à ligação estreita entre o nosso país e o Brasil. Isto, apesar de não haver ainda evidência da presença desta variante no território português.

Milagre com pés de barro

Será uma questão de tempo. Até porque o desempenho de Portugal a travar o vírus está longe dos tempos em que Marcelo Rebelo de Sousa louvava o “milagre português”. É certo que não somos os únicos a afundar-nos na terceira vaga, depois de um brilharete no primeiro impacto da pandemia. Aliás, alguns dos outros países “exemplares” na primeira vaga, como a República Checa ou a Alemanha, estão mal na fotografia, numa Europa que, em geral, mostra índices de contágio e de mortalidade alarmantes.

Este gráfico do Financial Times (retirado daqui) ilustra bem o peso do Velho Continente nos números globais da evolução da pandemia. A grande mancha a azul escuro no canto superior direito refere-se à União Europeia: veja como se alarga a partir de novembro; tem uma quebra antes do natal, e volta a disparar a partir de janeiro, após as festividades. Logo abaixo, a azul mais claro, tem o Reino Unido e o resto da Europa – no geral, o continente tem pouco de que se orgulhar.

Este outro gráfico traduz bem outra dimensão do desaire europeu: a mancha azul no topo é a parte europeia no total mundial das vítimas mortais de covid-19.

Também fora da Europa houve países que passaram num ápice de desempenho exemplar para alerta vermelho – o exemplo mais evidente será o Japão, que ainda em dezembro era apontado pela The Economist como um caso de estudo. Tóquio e outras grandes cidades, como Quioto e Osaka, estão sob estado de emergência, e o Japão voltou a fechar fronteiras. Mas, à escala, estamos em muito pior lençóis do que os nipónicos: este semana, no pior dia de sempre no Japão, houve 7.863 novos casos; nesse dia, Portugal teve mais de 10 mil – e o Japão tem quase 13 vezes a nossa população.

A China, que no ano passado cantou vitória contra a Covid, também voltou a impor quarentena a parte do território, perante novos casos de transmissão comunitária. A maior preocupação está na província de Hebei, perto de Pequim, e nem a proximidade das celebrações do Ano Novo Lunar travou a imposição de medidas draconianas a (para já) 20 milhões de pessoas. O que fez soar os alarmes das autoridades chinesas? Um dia com 85 casos e outro com 42 nessa região, conta o Wall Street Journal. Nesses mesmos dias (segunda e terça-feira da semana passada), Portugal registou, respetivamente, 5.604 e 7.259 novos casos…

Só para se perceber a enorme diferença de escala de que estamos a falar, veja a comparação, ajustada à população, entre a evolução de novos casos e de mortos em Portugal e nos dois países asiáticos (é fácil de perceber: somos a linha que está mais alta).

A OMS já tinha avisado que a situação poderia descarrilar após as festas do Natal e Ano Novo, mas em Portugal foi particularmente mau. Aí está o segundo confinamento a confirmá-lo. Não farei uma longa análise, sistematizo apenas alguns indicadores:

  • No arranque do ano, entre 3 e 10 de janeiro, Portugal teve a terceira maior subida da UE no número de novos casos por habitante, de acordo com dados do Centro Europeu de Controlo de Doenças (ECDC) trabalhados pelo Expresso.
  • Ainda segundo os dados do ECDC, só quatro países tiveram mais novos casos de infeção do que Portugal na média ponderada por cem mil habitantes nas últimas duas semanas: República Checa, Irlanda, Eslovénia e Lituânia.

  • Também na mortalidade por Covid, Portugal galgou vários lugares na tabela europeia: na última semana registou a quarta taxa de mortalidade mais alta da UE, no cálculo ajustado à população feito pelo Expresso.
  • Nos dados da ECDC, a mortalidade em Portugal ainda não é tão alta, pois não contabilizam os últimos dias. Como foi na última semana que a mortalidade atingiu os níveis mais dramáticos, acima das cem vítimas por dia, o cálculo feito até dia 10 ainda não espelha esses valores. Ainda assim, o nosso país fica em décimo nessa tabela.

Portugal a vacinar com (quase) tudo o que tem

Há uma estimativa em que Portugal compara menos mal com os parceiros europeus: a vacinação. Estamos na média europeia ao nível de inoculação da população, e bem melhor do que países mais ricos como Suécia, Holanda, Áustria ou Bélgica. Para nem referir a França, onde este processo tem sido um drama.

Segundo dados do Ministério da Saúde, até esta sexta-feira, Portugal tinha administrado 106 mil doses, ou seja, cerca de 1% da população já recebeu a primeira dose. Não é impressionante, mas coloca-nos ligeiramente acima da média da UE, que segundo a Bloomberg está nos 0,95 por cada cem pessoas.

Tendo em conta a quantidade de vacinas que já chegaram a Portugal, o país tem um bom desempenho no rácio entre doses recebidas e doses administradas. Até ontem, recebemos quase 240 mil vacinas da Pfizer e 8.400 da Moderna – 106 mil vacinas inoculadas representa 43% deste total. Mas, como estas vacinas obrigam a duas tomas, o Governo decidiu que por cada dose administrada fica uma de reserva (os primeiros vacinados recebem o reforço já a partir da semana que vem). Seguindo este critério, Portugal administrou 85% das vacinas que podia administrar.

Apesar disso, o presidente da Assembleia da República deu voz esta semana às críticas sobre o ritmo de vacinação em Portugal. Na entrevista que lhe fiz para o podcast Política com Palavra, Ferro Rodrigues disse que “é preciso compreender porque é que o ritmo de vacinação não é bastante mais forte do que aquele que é neste momento”. Uma crítica que apanhou o Governo de surpresa.

António Costa respondeu na TVI: “Acelerar o processo como, se não há mais vacinas? Todas as vacinas que têm chegado têm vindo a ser imediatamente distribuídas e aplicadas”, explicou o primeiro-ministro. Só estão por aplicar “as que temos de manter de reserva para a segunda dose”. O Governo não só vai cumprir o prazo indicado pela Pfizer de três semanas de intervalo (outros países estão a arriscar um intervalo maior – já lá vamos…) como decidiu não correr riscos em relação a esse reforço.

Europeus arrancaram com motor gripado

Com poucas vacinas disponíveis, nenhum país da UE faz grande figura no panorama global da vacinação anti-covid. A Dinamarca é o membro da UE que mais se destaca, com 118 mil vacinas administradas, cobrindo 2% da população. Não é brilhante, mas permite-lhe um honroso sexto lugar no ranking mundial.

Israel lidera, a grande distância, o campeonato da vacinação. Já inoculou quase um quarto da população (23,8%), mas não incluiu nesse processo a população palestiniana que vive no país, num exemplo gritante de apartheid. A seguir surgem dois pequenos estados do Golfo – Emiratos Árabes Unidos (14,2%) e Bahrein (7,3%) -, seguindo-se Reino Unido (5%) e Estados Unidos (3,6%).

A Bloomberg acompanha diariamente a evolução das vacinas administradas a nível global. Pode ver aqui, embora alguns dados estejam desatualizados, nomeadamente em relação a Portugal, o que condiciona as posições relativas dos vários países. Em todo o caso, apresenta informação mais atualizada do que outros sites que acompanham a mesma contagem.

De acordo com os dados de ontem, já foram administradas mais de 35 milhões de doses em todo o mundo, e este é o estado da arte:

Por que razão o desempenho da Europa é ainda tão fraco? A primeira razão é a escassez de vacinas. A segunda é que vários países falharam na componente nacional de planeamento e logística.

O caso mais evidente é o da Holanda, que apostou que a primeira vacina seria a da Astrazeneca/Oxford. Quando a Pfizer tomou a dianteira, o governo de Mark Rutte (que se demitiu ontem, por outras razões) foi apanhado desprevenido, sem a rede de congeladores de ultrafrio necessária para a distribuição dessa vacina. Resultado: a Holanda foi o último país da UE a arrancar com a vacinação.

A Bélgica só começou um dia antes da Holanda, também por problemas logísticos e de planeamento. A Itália foi mais célere, mas praticamente travou o processo durante as festividades, por falta de pessoal. Em Espanha, que tem bons indicadores de vacinação, o problema são as assimetrias regionais – o El País noticiou, há uns dias, que as Astúrias já tinham administrado 81% das doses disponíveis, enquanto a Cantabria se ficava pelos 5% e Madrid pelos 6%. Estas diferenças continuam, embora mais mitigadas (Espanha optou por não reservar as vacinas da segunda dose, e a nível nacional já aplicou 60% de 1,3 milhões de doses já recebidas).

Mas o caso mais evidente de falha no arranque da vacinação foi a França. O Le Monde descreve “seis semanas de flutuação que atrasaram a campanha de vacinação” que pareciam “um pesadelo interminável em que, mal um fogo era controlado, outro irrompia”: o governo mudou de estratégia, falhou na comunicação e enredou-se numa burocracia tipicamente francesa.

O auge dessa burocracia foi o procedimento definido para vacinar os idosos dos lares, um dos grupos prioritários: cada idoso devia ter uma consulta com um médico, para dar consentimento à vacinação, e só cinco dias depois receberia a inoculação. O resultado foi “um desastre que humilhou a França”, nas palavras de um deputado da oposição ao Governo Macron. Quando o governo decidiu “simplificar os procedimentos”, tinha outro problema para resolver: faltaram agulhas.

UE pode vacinar a sua população e os vizinhos

Apesar das falhas nacionais, e das dificuldades de entrega por parte dos produtores, muitas críticas têm sido dirigidas à Comissão Europeia, por supostamente estar a falhar no programa de compra conjunta para todos os estados-membros. A Alemanha foi o país onde essas críticas foram mais audíveis. Mas não é por falta de contratos de compra que a UE está a receber poucas vacinas. “As dificuldades, de momento, não se devem ao volume de encomendas, mas à insuficiência à escala mundial da capacidade de produção”, justifica a comissária europeia da Saúde.

Os memorandos já assinados pela Comissão com as várias farmacêuticas ascendem a 2,3 mil milhões de doses, para vacinar uma população de 448 milhões de pessoas. Mesmo tendo em conta que a maioria das vacinas implicará duas doses, daria para vacinar em dobro cada cidadão da UE. Por isso Von der Leyen tem dito que as doses negociadas “são mais do que suficientes para a população europeia e a sua vizinhança”.

Eis uma coisa de países ricos: comprar muito mais doses do que as que precisam – em prejuízo dos países pobres. O Reino Unido, por exemplo, tem encomendas que dariam para vacinar a sua população três vezes. O Canadá também (mas nem por isso está a fazer boa figura na vacinação, como pode ler aqui).

Este é o mapa dos contratos já feitos, de acordo com a Bloomberg:

Pelas contas da Bloomberg, já há contratos para a compra de mais de oito mil milhões de vacinas. A AstraZeneca é a farmacêutica com mais doses pré-negociadas, mais do que duplicando os negócios feitos por qualquer concorrente. As doses já negociadas dariam para inocular metade da população mundial, se a distribuição fosse equitativa. Porém, a acumulação por parte dos países mais ricos (incluindo a UE) terá como consequência que muitas partes do mundo só terão acesso à vacina a partir de 2022.

Produzir mais e fazer render

No final do ano passado a Pfizer reduziu em 20% a previsão de produção de vacinas no primeiro trimestre deste ano. Ontem, outro recuo da farmacêutica norte-americana, que anunciou uma redução temporária das suas entregas na Europa, a partir da próxima semana, para poder aumentar a sua capacidade de produção. Segundo o Instituto de Saúde Pública norueguês “não é conhecido, de momento, o tempo que poderá levar até a Pfizer regressar à capacidade máxima de produção, que será aumentada de 1,3 para dois mil milhões de doses” este ano.

Em Lisboa, onde se reuniu com António Costa, Von der Leyen garantiu que, apesar deste contratempo, “estão garantidas as doses que estavam previstas para o primeiro trimestre”. “Sempre dissemos que os grandes números [de doses de vacinas] chegarão em abril”, acrescentou a presidente da Comissão.

Apesar do atraso, o aumento da capacidade de produção da Pfizer em 700 milhões de doses ao longo deste ano é uma excelente notícia. Também a Moderna reviu em alta as previsões de produção para 2021: a nova estimativa aponta para, pelo menos, 600 milhões de doses, mais 100 milhões do que a previsão anterior.

Uma das maiores dificuldades com que os fabricantes se estão a defrontar é a escassez de mão de obra, noticiou esta semana o WSJ. O problema é comum à Pfizer, à AstraZeneca e à Moderna. O jornal concluiu que apenas nas dez maiores companhias que foram subcontratadas para produzir vacinas contra a Covid, há mais de 5 mil vagas por preencher. Há falta de pessoal em todos os níveis, nomeadamente na gestão de produção e controlo de qualidade, havendo também inúmeras vagas para cargos que exigem anos de experiência na produção de produtos farmacêuticos ou formação superior relacionada com biotecnologia.

Mesmo na perspetiva de construir novas linhas de produção, é necessária mão de obra para gerir essas unidades. “A pandemia acelerou a luta para contratar talento. Isso é crítico neste momento, e a competição é grande”, diz Lorna Larsson, a diretora de recursos humanos da Avid Bioservices, uma empresa californiana.

Mas também há dificuldades paralelas à produção das vacinas propriamente ditas — uma delas tem a ver com a capacidade limitada de produção dos frascos de vidro onde as vacinas são acondicionadas. Outro caso em que a oferta não está a acompanhar a procura.

Para além do aumento da capacidade de produção, tem havido soluções imaginativas para fazer esticar a oferta que existente. Uma delas foi a autorização para extrair seis doses de cada embalagem da Pfizer, em vez de apenas cinco, como estava inicialmente previsto. Antes de ser administrada, esta vacina tem de ser diluída em soro, e apesar de cada frasquinho chegar para seis doses, apenas estava autorizada a preparação de cinco – o restante era deitado fora. Já não é.

Um improviso que pode custar caro

Mais arriscada é outra ideia que começou a ser posta em prática pelos britânicos e está a fazer escola (Alemanha, Bélgica, Estados Unidos e Canadá vão seguir o exemplo): alargar o intervalo entre a administração das duas doses das vacinas da Pfizer e da Moderna.

A regra, definida pelas farmacêuticas, com base nos ensaios laboratoriais, aponta para um intervalo entre a primeira e segunda doses de 21 a 28 dias – ou seja, entre três e quatro semanas. Essa é a margem segura, reiterou a OMS. Mas, tendo em conta a falta de vacinas, os peritos da OMS admitiram que esse prazo possa ser alargado até às seis semanas – não mais. A Agência Europeia do Medicamento também validou a hipótese de esticar os prazos, até um intervalo máximo de 42 dias.

Os ingleses foram bastante mais longe: decidiram adiar a segunda dose por três meses. Das três/quatro semanas iniciais, o intervalo passou para doze semanas.

Problema: a imunidade conferida por apenas uma dose será bastante inferior aos 95% permitidos pelas duas doses das vacinas da Pfizer e da Moderna, por exemplo. E há dados contraditórios sobre qual a efetiva proteção conferida pela toma de apenas uma dose. No caso da vacina da AstraZeneca, o processo de ensaios foi algo atribulado, havendo dúvidas sobre qual o nível de proteção acrescida conferido pela segunda dose.

A resposta da indústria foi clara: apenas garante aquilo que os ensaios laboratoriais já demonstraram. Numa declaração conjunta divulgada esta semana, as farmacêuticas alertam que a dosagem deve seguir aquilo que foi demonstrado pela ciência, e avisam que qualquer alteração deve ser testada e validada pela comunidade científica.

Mas, em simultâneo, a AstraZeneca fugiu ao tom, assegurando que o alargamento do prazo não só é seguro, como pode ser benéfico, e aumentar a eficácia da vacina. O vice-presidente da companhia disse que a primeira dose da sua vacina confere uma imunidade de 70%, e que há “indícios de que oito a 12 semanas [de espaçamento entre cada dose] pode ser ainda melhor” em termos de eficácia.

A comunidade científica está dividida, como se lê neste artigo da Nature. Para além de tornar menos previsível todo o processo, esta alteração pode abrir uma caixa de Pandora: e se a vacinação com apenas uma dose, para além de conferir uma imunidade mais baixa, permitir ao vírus adaptar-se e tornar-se mais resistente?

O risco é real: a primeira dose de uma vacina de RNAm produz níveis relativamente baixos de anticorpos, e há quem tema que, quanto mais tempo decorrer até à segunda dose, maior seja o risco de surgirem variantes do vírus mais resistentes à vacina. “Neste momento, eu não correria esse risco”, disse o imunologista Florian Krammer à revista Nature. “Se um país fizer essa jogada arriscada e estiver errado, isso terá consequências sobre todas as vacinas”.

Para além das muitas dúvidas sobre eficácia e sobre consequências virológicas não intencionais, colocam-se outras questões:

  • É ético vacinar uma pessoa com a expectativa de uma segunda dose daí a poucas semanas, e mudar o protocolo com o processo já a decorrer?
  • Havendo já tantas dúvidas sobre a rapidez com que estas vacinas foram criadas, devem os governos mudar a narrativa com o processo já em andamento?
  • Num momento em que os movimentos anti-vacina se voltam a mobilizar em força, o que acontecerá à confiança nas vacinas se a autoridade da ciência for posta de lado pelas decisões dos políticos?
  • Pior ainda: quem voltará a confiar nas vacinas se esta mudança de protocolo, imposta pela necessidade e não pela ciência, tiver resultados desastrosos?

Desde o início da pandemia tornou-se claro que a Covid-19 seria um teste decisivo para o futuro da vacinação. Depois de tanto caminho feito em tão pouco tempo, valerá mesmo a pena correr tantos riscos?

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