Os portugueses também dão cartas nos podcasts e são cada vez mais os que os ouvem. Descubra quem os faz, o que motiva e porque é que, apesar das audiências, ainda se luta pela atenção dos anunciantes.
Quando Daniel Oliveira aceitou a proposta de lançar um podcast, fê-lo para “testar a possibilidade de um podcast sobreviver e crescer fora de um meio nacional”. “Ao fim destes dois anos, não tenho dúvidas”, remata o comentador político, colunista e anfitrião do Perguntar Não Ofende.
O podcast é um formato que está longe de ser novo. Ainda assim, é novidade para cada vez mais gente. O crescimento das audiências é visível não só no principal mercado, os EUA, como também num país de menor dimensão como Portugal. Desconhece-se quantos podcasts há, até porque a distribuição é descentralizada. Talvez, demasiadamente descentralizada. Mas serão muitos, isso é certo.
Mergulhando neste mar de ideias, descobre-se um meio pejado de particularidades. Alguns podcasts focam-se em nichos — e, talvez por isso, são autênticas comunidades de ouvintes, cimentadas em torno de um interesse comum. Outros são programas de rádio ou TV, gravados e publicados na internet, que atraem para este meio quem prefere escutá-los em diferido. Dizem os mais puristas que não são verdadeiros podcasts. Mas surgem entre eles.
A comédia domina, mas a informação também ocupa um espaço importante. É o caso do podcast de Daniel Oliveira, um “projeto jornalístico independente” e “quase sempre sobre política”. Para entender este meio, importa compreender as ideias dos seus protagonistas. E a de Daniel Oliveira, no início, era só uma: “Quando o criei, não tinha outra função, outra motivação, a não ser fazer entrevistas. Voltar ao meu lado mais jornalístico”, diz o comentador ao ECO.
Uma palavra que repete é “liberdade”. Entre outras coisas, o nome de Daniel Oliveira é conhecido das páginas do Expresso e da antena da SIC Notícias, onde integra o painel de debate político d’O Eixo do Mal. Certamente, não faltariam meios interessados em integrar este podcast. Mas Daniel Oliveira quis que o Perguntar Não Ofende fosse independente de outros títulos. Não por temer que essa liberdade ficasse comprometida, mas porque, de outra forma, acabaria por ter de seguir “os critérios” desse meio.
O caminho seguido levou a uma necessidade: financiamento. Atualmente, o podcast de Daniel Oliveira vive dos contributos de ouvintes, feitos através da plataforma Patreon. Gera um fluxo de cerca de 600 dólares por mês, que “paga o produtor e despesas correspondentes”. “Paga os custos menos eu. Só gasto dinheiro”, assegura o comentador.
O exemplo não é único. Mas, garantidamente, serão poucos os podcasts nativos — isto é, que não são programas de rádio ou TV, mas que são podcasts criados e produzidos como tal — a conseguirem gerar 600 dólares mensais em Portugal. Uma análise do ECO mostra que o Perguntar Não Ofende é, provavelmente, o mais ouvido na categoria de informação, excluindo todos os outros títulos não nativos. Ora, essa dificuldade em monetizar os conteúdos é efeito da ainda pouca maturidade do mercado de podcasts português.
Ranking de podcasts no iTunes – Geral
Quando criei o podcast, não tinha outra função, outra motivação, a não ser fazer entrevistas. Voltar ao meu lado mais jornalístico.
Em ponto rebuçado
“O mercado português não é muito desenvolvido”, reconhece Ruben Martins, produtor de podcasts, voz do P24 do Público. Apaixonado pelo meio, está a desenvolver uma tese de doutoramento sobre este mesmo assunto.
“Ainda existe pouca gente fora do círculo mediático a conseguir fazer produção de forma profissional”, diz, quanto mais a “fazer dinheiro com eles”. Trata-se, ainda assim, de “um dos meios com mais potencial, na medida em que os custos de produção são muito reduzidos e é possível chegar a audiências interessantes”, garante.
Isto parece um contrassenso. Se o podcast é barato de se produzir e chega a “audiências interessantes”, porque é que gera tão pouco dinheiro? A explicação está nos próprios anunciantes deste meio. Que são poucos. Ou mesmo nenhuns.
Ruben Martins fala em “desconhecimento das marcas”. “Sabem o que é, mas acaba por ser uma ‘pescadinha de rabo na boca’. Como não há produção profissional na grande maioria dos formatos, os próprios produtores não dedicam muito tempo à produção desses formatos, porque não fazem dinheiro com eles”, analisa. Dito isto, desabafa: “Faz falta uma plataforma de monetização.”
É um problema também patente no caso de Daniel Oliveira. Questionado se aceitaria que uma marca patrocinasse diretamente o Perguntar Não Ofende, o comentador não diz que não. “Depende da marca. Estaria aberto e é uma possibilidade”, revela. E desdobra-se, igualmente, em críticas as marcas: “Tenho a sensação de que o nosso mercado publicitário está no século XX há muito tempo.” Qual é, afinal, o problema? “O problema é que [anunciar no formato de podcast] exige outro tipo de trabalho, que é conhecer os produtos”, refere.
Para José Miguel Cerdeira, cofundador da produtora de podcasts Bruá, o problema é outro. Afirmando, desde logo, que “o mercado ainda está num ponto não muito maduro”, o produtor explica que “ainda não se provou que existe capacidade para monetizar projetos de podcast sem ser no contexto de celebridades que já têm apoios, quer fizessem podcasts ou outra coisa”.
Por isso, diagnostica a questão de outra forma: “Por um lado, é uma coisa recente e entende-se perfeitamente que as marcas queiram ver uma coisa que seja fácil” — por exemplo, um primeiro projeto “em que não se está a sacrificar muito”. Por outro lado, ainda não houve nenhum podcast verdadeiramente viral no país. E isso, para já, é um problema.
Ranking de podcasts no iTunes – Informação
Ainda não se provou que existe capacidade para monetizar projetos de podcast sem ser no contexto de celebridades que já têm apoios.
À espera de um Serial
Chegados aqui, exige-se contexto. Nos EUA, é comum atribuir-se o boom do formato à popularidade de Serial, um podcast de investigação lançado pelo This American Life, outro podcast. A primeira temporada arrancou em outubro de 2014 e assentou numa investigação em torno do desaparecimento de Hae Min Lee. A história era totalmente factual. E foi um sucesso de audiências
Em fevereiro de 2015, os episódios de Serial já tinham sido descarregados mais de 68 milhões de vezes. Um ano depois, alcançava os 80 milhões de downloads, já incluindo a segunda temporada, que investigou como Bowe Bergdahl, um soldado norte-americano no Afeganistão, desertou a meio da noite e foi capturado pelos Talibã. Nunca antes um podcast tinha alcançado este nível de popularidade, nem se acreditava que tal fosse possível. Entretanto, o podcast conheceu já uma terceira temporada. A 22 de julho, foi adquirido pelo The New York Times.
Mas se Portugal ainda não teve um Serial, a menor popularidade do formato é também uma questão cultural. Filipe Carrera, coordenador da pós-graduação em marketing digital do IPAM, recorda que a rádio portuguesa dá mais música do que voz. “As rádios nos EUA têm mais conteúdo, talk shows, documentários, do que na Europa. No caso português, essa diferença ainda é maior”, diz. Por cá, fazendo zapping no rádio, “é música-música-falar”. “Se atravessarmos a fronteira, é falar-falar-música”, exemplifica.
“Isso faz a diferença. Não temos esta mecanização de olharmos para o áudio como algo que podemos utilizar em qualquer momento e em qualquer local”, sinaliza o especialista em marketing digital. Ainda assim, há esperança numa mudança: “Está a alterar-se um pouco. Começa a haver muito podcast que tem conteúdos de interesse formativo e informativo.” Com a generalidade dos portugueses a ter já um smartphone no bolso, e com a crescente aposta do Spotify neste meio, “começa-se a ter muito mais acesso facilitado a este tipo de conteúdos”, indica o professor.
De resto, nos EUA, o formato do podcast continua galgar barreiras. Este ano, um episódio do This American Life, intitulado The Out Crowd, tornou-se o primeiro trabalho jornalístico em podcast a conquistar um prémio Pulitzer, atribuído na categoria de “reportagem em áudio”. Os conceituados prémios Pulitzer distinguem trabalhos jornalísticos de excelência nos EUA.
“O meio do podcast é, para muita gente ainda, um meio em que é: ‘eia, bem, descobri isto dos podcasts’. Num certo sentido, vai haver, a dada altura, um podcast tão engraçado que viraliza e que vai atrair as pessoas não tão techie, ou tão embrenhadas, levando o público mainstream a descobrir isto. Não sei se o Spotify não vai dar a pedrada no charco. Não existe um meio simples em que se vá promover podcasts para o público” mais generalista, frisa o produtor José Miguel Cerdeira.
Não temos esta mecanização de olharmos para o áudio como algo que podemos utilizar em qualquer momento e em qualquer local.
Um podcast, dezenas de plataformas
Provavelmente por ser um meio intrínseco ao mundo digital, o podcast nasceu e cresceu descentralizado. Para chegar a todos os potenciais ouvintes, um produtor deve disponibilizar o seu podcast em diversas plataformas, todas elas distintas, das quais é exemplo o iTunes, o Google Podcasts, o SoundCloud e, mais recentemente, a aplicação de streaming de música Spotify. Esta última, contudo, tem vindo a ganhar grande destaque pelos investimentos que está a fazer no formato.
A estratégia da empresa sueca passa por destronar o iTunes da Apple e sagrar-se campeã dos podcasts a nível mundial. Terá começado em 2019, quando o Spotify oficializou a decisão de separar a popular aplicação em duas grandes áreas — de um lado, a música; do outro, os episódios.
Este ano, em plena pandemia, a empresa financiou a produção e lançamento de Wind of Change, um podcast jornalístico que investiga se foram os serviços secretos norte-americanos que escreveram a conhecida música com o mesmo nome, da banda alemã Scorpions. Wind of Change foi disponibilizado em todas as plataformas. Mas, naturalmente, saiu primeiro no Spotify.
Já em maio, o Spotify anunciou um acordo com Joe Rogan para ficar com a exclusividade do podcast The Joe Rogan Experience, conhecido pelas entrevistas a figuras públicas, incluindo uma entrevista a Elon Musk que envolveu consumo de drogas ligeiras “em direto” e que acabou por colocar o gestor da Tesla em sarilhos. O acordo terá feito de Joe Rogan o broadcaster mais bem pago em todo o mundo.
“O crescimento do Spotify como a grande plataforma de podcast é o acontecimento mais relevante. Ultrapassou completamente a Apple, porque está a ditar as regras de mercado”, defende Ruben Martins. “Era uma plataforma já conhecida das pessoas. Esta capacidade de termos conteúdos diferenciados da música leva a que os podcasts se possam afirmar”, considera o produtor e jornalista. Assim, “se o Spotify abrir portas à monetização de conteúdos, da mesma forma que a música”, estaremos perante uma alteração importante às condições deste mercado, defende.
Medição de audiências, o eterno problema
Por fim, não é possível falar de podcasts sem lembrar o principal drama deste formato: a medição exata de audiências. Não há um padrão. E como tudo funciona de forma descentralizada, também não há forma de saber, exatamente, quantas pessoas estiveram do lado de lá a ouvir. Nem se ouviram o episódio até ao fim. Muito menos quem são.
“Não há um standard. Na Bruá, demorámos mais de meio ano até chegarmos a um standard [interno] que considerássemos fidedigno”, aponta José Miguel Cerdeira. Rapidamente fica claro que esse é outro dos travões ao entusiasmo dos anunciantes pelo meio, ou a falta dele. “Sabemos que quando vamos tentar ter publicidade, é uma questão que temos de falar. A reação até agora é a de aceitar, mas estranhar”, confessa o responsável.
Embora mesmo com a dificuldade na medição das audiências, o professor Filipe Carrera vê um interesse crescente das marcas neste formato em Portugal, apesar de ainda “estarmos muito nos primórdios”. “Do ponto de vista das agências e marcas, começa a ter interesse, na lógica dos influenciadores, ter ali uma presença”, garante. “A tendência vai ser cada vez mais o podcast ser feito ‘com o patrocínio de’, numa lógica de responsabilidade social. Como marca, apoiar um podcast que, por exemplo, trata de como na nossa vida diária podemos utilizar melhor a água, ou a energia. Ser como a minha própria responsabilidade social”, aponta o especialista, que assinala ainda: “Cada vez mais se consegue medir [melhor] o impacto deste tipo de meios.”
Daniel Oliveira também terá o seu standard para apurar quantos ouvintes estiveram do lado de lá. “Não consigo dizer as audiências que tenho”, sublinha. Mas aponta para um “mínimo de 5.000 a 6.000” e um máximo de “80 mil ou 90 mil”. “Diria que o normal é andar entre 15 mil e 20 mil por cada episódio. É muito falível, até acho que é falível para mais“, explica. “É muito. Quando pensas em quantas pessoas ouvem um anúncio de uma rádio, provavelmente são menos e é público menos fidelizado.”
O crescimento do Spotify como a grande plataforma de podcast é o acontecimento mais relevante. Ultrapassou completamente a Apple, porque está a ditar as regras de mercado.
Este é um retrato genérico do podcast em Portugal. Um meio em ascensão, mas que ainda sobrevive da paixão de quem se coloca atrás do microfone. Dados recolhidos por Ruben Martins por via de um inquérito, gentilmente cedidos ao ECO para este artigo, permitem traçar um perfil com bem mais detalhe.
Três em cada quatro podcasters são homens. Quase quatro em cada dez podcasters fez rádio antes de lançar o podcast. Quase metade diz que já participou em mais do que um. Sete em cada dez viveria do formato se pudesse. A idade média dos anfitriões ronda os 30 anos e 44% têm uma licenciatura. Quanto aos ouvintes, são predominantemente urbanos, com formação superior e ouvem podcasts através do telemóvel.
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De ondas de rádio a bits na internet. Raio-X ao Portugal dos podcasts
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