Miguel Morgado, professor do Instituto de Estudos Políticos, escreve sobre as especificidades da geopolítica europeia do ponto de vista histórico. O ECO publica um excerto da Introdução ao livro.
- “De facto, o maior determinante dos acontecimentos é o futuro incalculável, que é o elemento mais traiçoeiro de todos e, no entanto, é também o mais proveitoso”. Hermócrates
É comum atribuir-se a Auguste Comte, o fundador do positivismo, a frase “a demografia é destino”. Comte nunca a escreveu, mas a ideia ficou. As dinâmicas demográficas eram o grande determinante da vida colectiva dos seres humanos. Se fosse verdade que a demografia é destino, então poderíamos dizer que a geopolítica é vida e destino.
O que é a geopolítica? Trata-se de uma pergunta mais difícil de responder do que parece. A geopolítica encerra uma dupla possibilidade. Por um lado, é a reflexão que se delicia com a absoluta contingência e confere uma generosa atenção ao puramente casual na sua relação com o permanente. Daí que muitos que se reclamam da reflexão geopolítica pareçam limitar-se a recitar a secção internacional da última edição do jornal. Não é necessariamente uma crítica, embora haja uma tendência mediática para fazer a geopolítica deslizar para o jornalismo internacional.
Com efeito, a geopolítica tem de estar rigorosamente informada pela pura factualidade. Caso contrário, não passa de uma estéril especulação com vocação profética. Mas, ao mesmo tempo, a geopolítica tem de conservar a ambição da grande teoria. Faz sentido que assim seja. A geopolítica pretende partir de um olhar transversal e abrangente sobre o mundo. Em certo sentido, é forçoso que seja um olhar transversal e abrangente sobre o mundo inteiro. Ora, o que quero dizer não é que o discurso geopolítico seja uma acumulação infinita de dados sobre o mundo inteiro. Isso seria um contrassenso. Quero antes dizer que a geopolítica ambiciona, e deve ambicionar, ser uma teoria da política, uma teoria da história e uma teoria da articulação do espaço com a política e com história. Porquanto a geopolítica é espaço, história e política. O que equivale a dizer que é acção, tempo e território (e maritório). É sobretudo a sua articulação.
Daqui resulta um problema, na medida em que os nossos tempos críticos tornaram-se muito desconfortáveis para ambições teóricas excessivas. As grandes teorias não têm hoje vida fácil. Mas podemos perguntar: É possível reflectir sobre a geopolítica sem o socorro permanente da teoria com T maiúsculo? De facto, quantas vezes encontramos nos livros sobre geopolítica restos de teorias políticas e de teorias da história espalhadas pelas páginas sem explicitação e, muitas vezes, sem o autor estar inteiramente consciente delas? Ora, a geopolítica não é sinónimo de diplomacia, nem se limita a relatar factos constantes de relatórios e de notícias jornalísticas. Qualquer um destes factos tem, ou não tem, relevância geopolítica. Todavia, a pergunta “o que é a relevância geopolítica?” pressupõe recursos intelectuais que vão muito além do relato factual. Mas é neste relato que tendemos a refugiar-nos para fugir do fulgor crítico que se reacendeu com a declaração pós-moderna da morte das grandes narrativas. Há cautelas que devemos ter em conta. E há receios que devemos desafiar.
A geopolítica é, no seu modo de análise, inseparável da questão existencial clássica: “Donde viemos? Como viemos aqui parar? Para onde vamos?” E tem de ser a consciência de que estando o futuro radicalmente aberto e indeterminado – o “futuro incalculável” de Hermócrates –, e não sendo o futuro logicamente tematizável, já as possibilidades futuras mais próximas estão sempre condicionadas pelo legado que vem do passado. Mesmo aquelas possibilidades futuras que estão fora de todas as cogitações no presente.
Os múltiplos factores da geopolítica
A reflexão geopolítica é tão antiga quanto a historiografia e a filosofia política. A nossa tendência para analisarmos o mundo político segundo parâmetros geopolíticos é coeva com a consciência política do homem europeu.
No quadro da geopolítica, a nossa interpretação do mundo político foi dando importância relativa a diferentes factores ao longo do tempo. Se a partir do século a geoeconomia adquiriu um estatuto cimeiro, de que nunca tinha gozado antes, no passado outras considerações tinham sido mais relevantes do que são hoje. As tecnologias militares, de comunicação, de produção e distribuição de recursos vários, sofreram alterações tão profundas que não podiam deixar de se reflectir na política mundial, assim como nas prioridades da análise geopolítica.
A globalização não é outra coisa senão o processo histórico de mutação das manifestações da geopolítica na economia. Globalização significa um certo tipo de geoeconomia. As suas origens não são puramente técnicas. Não são o mero resultado do desenvolvimento de novas tecnologias de informação e de comunicação. São origens fundamentalmente geopolíticas e geoeconómicas. Compreender a política e a história geopolítica que nos trouxe a globalização ajuda-nos até a compreender a ascensão das tecnologias de informação e comunicação que tornaram os fenómenos mais familiares da globalização tecnicamente possíveis.
É inútil negar o predomínio da geoeconomia na geopolítica dos nossos tempos. Veremos que isso já era verdade no século. Mas é um erro supor que a geopolítica se esgota na geoeconomia. É, por isso, muito proveitoso examinar os momentos geopolíticos definidores do nosso mundo que, neste livro, nos levarão a épocas em que a geoeconomia ocupava um lugar secundário.
Secundário não significa nenhum. Se as questões económicas e financeiras hoje ocupam um lugar cimeiro nas considerações geopolíticas, sendo inclusivamente um traço característico da geopolítica dos nossos tempos em contraponto com a de períodos históricos anteriores, não podemos dizer que no passado o problema económico podia ser pura e simplesmente ignorado.
No século V a. C., fazendo uma comparação dos recursos de Atenas com os de Esparta na preparação para a guerra que essas cidades travariam, Péricles, o ateniense, chamava a atenção dos seus ouvintes para o facto de Esparta ser pobre. E, como potência pobre, não seria capaz de fazer uma guerra de longa duração, nem uma guerra ultramarina. Não podia financiar frotas marítimas de guerra, com a sua multidão de marinheiros assalariados, ou mercenários, nem de enviar demoradas expedições por terra. Péricles era um governante que sabia que a guerra prolongada e sofisticada na mobilização de recursos tem de ser financiada.
Seja como for, não há dúvidas de que os factores económicos – a capacidade industrial, o abastecimento de matérias-primas e a operação financeira de sustentação da guerra – adquiriram uma importância decisiva sem precedentes na nossa contemporaneidade.
A Primeira Guerra Mundial foi provavelmente o primeiro grande conflito a demonstrar essa preeminência para além de qualquer dúvida. Ainda que tenha sido a Inglaterra a primeira potência a usar esses três factores para conquistar a primazia geopolítica durante todo o século XIX – com muito voluntarismo talvez se pudesse atribuir a distinção da primeira experiência histórica dessa natureza aos Países Baixos no século XVII –, foi aos EUA que coube mobilizá-los com uma eficácia sem precedentes logo desde os meados da guerra de 1914-1918.2
Todavia, a diversidade de factores na matriz de determinações da geopolítica europeia transcendia largamente a dicotomia factores políticos/factores económicos. Os factores a ponderar numa análise geopolítica figuravam todos, por ordens diversas na sua irredutível pluralidade, nessas reflexões que geraram alguns dos livros mais importantes da civilização europeia. Tucídides, Agostinho, Maquiavel, Montesquieu, Gibbon, incluíam nas suas cogitações o clima, a geografia, a lei e política internas, a sofisticação estratégica, os costumes, a religião, a tecnologia e o treino militar no conjunto das explicações, e inevitavelmente das causas, para o rumo geopolítico que as coisas seguiram.
A Geopolítica e a Geografia
Desde há muitos séculos que a Europa foi pródiga em teses geopolíticas de pendor determinista. Por assim dizer, elas estão connosco desde sempre. Por outras palavras, é de longa data a nossa atracção por teorias que sustentem de um modo ou de outro que os seres humanos são radicalmente condicionados pela sua localização geográfica.
Desde há muitos séculos que a Europa foi pródiga em teses geopolíticas de pendor determinista. Por assim dizer, elas estão connosco desde sempre. Por outras palavras, é de longa data a nossa atracção por teorias que sustentem de um modo ou de outro que os seres humanos são radicalmente condicionados pela sua localização geográfica.
No fundo, são puros corolários de formas determinísticas mais gerais, em que as pessoas são determinadas pela sua condição ou como seres biológicos, ou como seres terrestres ou marítimos, como filhos de um determinado clima frio, temperado ou quente, das montanhas ou das planícies, e assim em diante. O modo de vida dos povos, e as suas formas sociais, aparecem, deste modo, estritamente determinados pelas condições materiais e geográficas em que estão situados. Não surpreende, pois, que as relações de vizinhança entre os povos, na amizade, indiferença ou inimizade, sejam, por esta leitura, resultado também das condições geográficas. Mais, são as próprias condições naturais que impõem as fronteiras – as chamadas “fronteiras naturais” – de separação entre esses povos e que se tornam constitutivas das relações que poderão estabelecer entre eles.
O que dizer de teses desse género? Parafraseando o grande filósofo espanhol Ortega y Gasset, os povos são de facto eles e as suas circunstâncias, o que inclui inevitavelmente as suas circunstâncias geográficas. Ao contrário das ideologias que despontaram nos últimos anos, não devemos supor que os seres humanos são criaturas incorpóreas, insusceptíveis de condicionamento material.
Talvez um dia haja seres (humanos?) que gozem de uma existência inteiramente virtual, inteiramente desligada do corpo e da matéria. Mas hoje, e em todo o nosso passado, a corporeidade é, e foi, determinante da nossa existência, incluindo da vida espiritual. Acedemos ao mundo através dos sentidos, experimentamos dor e prazer corporal, caminhamos, corremos, nadamos em superfícies a que estamos agarrados por forças físicas que o corpo não consegue, por si, transcender.
Temos necessidades alimentares e de descanso. Sentimos frio e calor. Apreciamos formas de disposição material das coisas, na ordem, na cor, na coerência e regularidade, e desaprovamos o contrário. Somos corpos que nascem, crescem, adoecem e morrem. O horizonte da mortalidade, constitutivo de toda a nossa existência nas suas múltiplas dimensões, assim como o facto da natalidade, que remete para muito mais do que o simples fenómeno da reprodução biológica da espécie e da sua sobrevivência no tempo, remetem para a diversidade e transformação incessante do mundo humano, para a sua abertura natural à novidade, ao que não tem precedentes, e para a indeterminação do futuro desse mundo. Nascimento e morte são as consequências mais fundamentais da nossa corporeidade.
Somos corpos situados num mundo material. Disso não podemos fugir. Pelo menos, no futuro previsível. Aqui reside a raiz filosófica dos equívocos de muitas consciências que, sobretudo nos anos 1990, analisaram a globalização como se a geografia tivesse deixado de contar. O embaraço provocado por esses equívocos deve sempre servir de alerta para quando escutamos as teses que desprezam a distância, a geografia e os constrangimentos físico-naturais nas discussões sobre a política e sobre a economia.
Por outro lado, somos seres corpóreos de um tipo muito particular. Hoje, na discussão dos temas da geopolítica, já ninguém se sente autorizado a invocar a alma. Foi esse o recurso central tanto na Antiguidade clássica, como no cristianismo, no judaísmo ou no islamismo, para identificar uma dimensão da existência humana que não podia ser simplesmente associada à corporeidade. A vida especificamente humana obedecia a um princípio de movimento próprio, isto é, de um movimento cuja origem era interna a cada pessoa. A alma não era mais do que a sede desse movimento vital, que ia além dos movimentos do corpo – a respiração, a circulação sanguínea, a digestão, o nascimento, crescimento e morte das células e tecidos que nos formam, e assim em diante –, onde podíamos conceptualmente situar o desejo, a aversão, a vontade, a disposição, a razão, a inteligência.
Ora, a referência à alma assim entendida tem uma razão de ser. Na verdade, os homens e as mulheres, seres incontornavelmente corpóreos, são também capazes de desafiar a sua localização geográfica, a sua existência material e até a consciência formada por essas condições materiais. A geopolítica, tal como o ser humano, é, por conseguinte, corpo e alma.
Na consciência tardo-moderna, a linhagem destas considerações remonta ao agora célebre artigo de um estudioso inglês chamado Halford J. Mackinder, e que chegou a ser deputado na Câmara dos Comuns durante a segunda década do século XX. Em 1904, Mackinder assinaria um artigo sugestivamente intitulado “The Geographical Pivot of History” no Geographical Journal de Londres. O artigo, que fora na verdade um discurso lido a 25 de Janeiro de 1904, na Royal Geographical Society, em Londres, acabaria por ser particularmente marcante para os teóricos europeus que se apaixonaram irremediavelmente pelas teses dos grandes espaços.
A geopolítica inclui obviamente a geografia na sua reflexão. Afinal de contas, a relação dos agrupamentos humanos com o território, e as suas mutações, é, sem dúvida, um dos motores da história. Mas não se reduz à geografia. Uma latitude, uma cadeia montanhosa, um oceano, uma bacia hidrográfica, um planalto, uma floresta, o clima, a fertilidade do solo – são elementos físico-naturais que sempre condicionaram fortemente a vida humana. Muitas das fronteiras que dividiram e dividem os povos e as comunidades foram desenhadas por factos físico-naturais e pela sua invencibilidade.
No mesmo sentido, quando as comunidades não viviam em espaços caracterizados por factos físico-naturais tão invencíveis, quando viviam em espaços planos e relativamente indiferenciados, as fronteiras tornavam-se mais ténues e permeáveis. Na existência pré-tecnológica da humanidade podemos dizer que todos esses elementos físico-naturais determinaram radicalmente a vida dos seres humanos. Mas a História da Humanidade nos últimos 2500 anos – o plano histórico-cronológico deste livro – foi escrita pela resposta dos seres humanos aos elementos físico-naturais a que estavam expostos. Uma resposta sempre condicionada, é certo, mas com graus de liberdade inconfundíveis. E à medida que foi crescendo o poder tecnológico adquirido pelos povos do mundo, esses graus de liberdade foram aumentando. Dito de outra maneira, os graus de liberdade foram permitindo respostas mais e mais criativas – e, nesse sentido, mais livres – das comunidades humanas à necessidade imposta pelos elementos físico-naturais.
Os povos nunca se emancipam por completo da sua condição terrestre, definida em parte pelos elementos físico-naturais de que falo, mas vão-se permitindo adaptações e superações desse contexto natural historicamente mais inesperadas. Para o humano, e falando como os nossos antepassados, o espírito não é independente da matéria e a matéria não é independente do espírito. Até que ponto é que as alterações dos ecossistemas planetários farão regressar os elementos físico-naturais à primazia ancestral e, portanto, farão regredir a geopolítica à geografia, talvez ninguém saiba dizê-lo com confiança. Podemos, sim, concordar que se trataria de uma catástrofe humana inigualável.
A geopolítica não é apenas geografia. Não depende estritamente do seu prefixo geo, que no grego original (γῆ) significaria apenas terra, insuficiência declarada já que o mar é um elemento igualmente decisivo na geopolítica. Pior, a possibilidade tecnológica que se abriu à humanidade de viajar pelo ar e no espaço exterior, de apropriá-los e de politizá-los, alterou a nossa relação política com a terra e com o mar, assim como alterou a relação entre a terra e o mar.
Pelo que acabámos de ver, a geopolítica é também cronopolítica, que tem como elemento determinante o tempo – o tempo histórico, o tempo humano, a acção e a meditação humanas.
A geopolítica é sempre o nosso ponto num processo, entre o devir e o porvir da história humana, onde espírito e matéria se relacionam, condicionam e colidem. Mesmo que se diga que a geopolítica é, no fundo, geografia porque esta inclui o ambiente externo natural e humano, o que vale por dizer “o ambiente externo enfrentado por cada Estado quando determina a sua própria estratégia”, sendo esse “ambiente externo” formado “pela presença de outros Estados que também lutam pela sobrevivência e pelo proveito próprio” – mesmo com esta definição ficaríamos com um entendimento deficiente de geopolítica. E nem a síntese “a geopolítica é a influência da geografia sobre as divisões humanas” a pode reparar. Deixaria de ser geopolítica para passar a ser outra análise de estruturas.
Digamos, então, numa formulação alternativa, e que colida menos com o prefixo geo na geopolítica, que este prefixo recupera o sentido antigo da geografia. Geographia é uma palavra grega, bem se vê. O verbo geographein era usado recorrentemente para designar o acto de descrever o mundo com palavras ou com outro tipo de representação gráfica, desenhando mapas, por exemplo. A prática desta ciência no mundo grego e romano da Antiguidade revela bem o sentido de geografia que é preciso recuperar para obter um entendimento mais amplo da geopolítica que aqui será tratada. Vemos nas obras dos grandes “geógrafos” antigos – Eratóstenes, Estrabão, Ptolomeu, Plínio, Possidónio, Anaximandro, Hecateu, o próprio Heródoto de quem me irei ocupar no último capítulo deste livro – que o que hoje compartimentamos na filosofia, na etnografia, na antropologia, para nada dizer da cosmologia, eram naturalmente abrangidos pelo seu esforço de compreensão.
Na consciência tardo-moderna, a linhagem destas considerações remonta ao agora célebre artigo de um estudioso inglês chamado Halford J. Mackinder, e que chegou a ser deputado na Câmara dos Comuns durante a segunda década do século XX. Em 1904, Mackinder assinaria um artigo sugestivamente intitulado “The Geographical Pivot of History” no Geographical Journal de Londres. O artigo, que fora na verdade um discurso lido a 25 de Janeiro de 1904, na Royal Geographical Society, em Londres, acabaria por ser particularmente marcante para os teóricos europeus que se apaixonaram irremediavelmente pelas teses dos grandes espaços. Muitos eram politicamente sinistros, engrossando as fileiras nacional-socialistas alemãs, como o influente jurista Carl Schmitt8 ou como o major-general Karl Haushofer, a quem Rudolf Hess apresentou Hitler, e que estava obcecado com o Lebensraum, termo que apropriara de Friedrich Ratzel, um geógrafo alemão do século XIX.
Na equipa dos discípulos politicamente sinistros de Mackinder temos de contar aqueles que se juntaram aos eurasianistas russos (comunistas ou não), como Lev Gumilev, filho da poetisa Anna Akhmátova, que passou catorze anos no inferno do Gulag, e se tornou o pai intelectual da recém-descoberta civilização russo-eurasiática e da sua missão espiritual no mundo, que continua a inspirar os que desde a invasão da Ucrânia em 2022 mais têm vociferado contra a existência da Ucrânia como Estado político independente.
Hoje, tornou-se convencional atribuir ao artigo de Mackinder a paternidade da geopolítica e da geoestratégia. Sucede que é frequente os filhos desviarem-se do caminho que os pais planeiam para eles. Daí que valha a pena examinar brevemente os planos de Mackinder. Escrevendo em 1904, o ponto de partida para o geógrafo era compreensível.
Depois das viagens de expansão marítima, e na crista de uma vaga sem precedentes de colonização europeia dos vários continentes, os limites e contornos do mundo eram finalmente conhecidos. A política teria de se ajustar a este facto histórico novo: já não havia mundo por conhecer. O mundo estava, por assim dizer, fechado. Isto tinha consequências políticas profundíssimas, porque pela primeira vez depois de muito tempo as forças de desordem e de excesso já não encontrariam espaço de escoamento. As pressões acumular-se-iam, e rebentariam, sem o escape imperial. Assim, todos os grandes conflitos jogar-se-iam no plano mundial. Mas, do ponto de vista intelectual, o momento era igualmente disruptivo. Permitia finalmente que se estabelecesse “uma correlação” entre “as grandes generalizações geográficas e históricas”. Mackinder não fazia por menos. Esta era a janela de oportunidade para se consagrar a “causalidade geográfica” na História Universal – na cultura, na política, na religião, e por aí adiante.
À volta da Eurásia, e como destino dessas migrações, tínhamos quatro grandes áreas que corresponderam a quatro grandes religiões: o budismo, o bramanismo, o islamismo e o cristianismo. Em suma, a massa continental da Eurásia era a “região-pivô” da política internacional. Daqui resultava, por exemplo, que a Rússia seria sempre uma potência terrestre e a Grã-Bretanha uma potência marítima – factos que nenhuma “revolução social” alteraria.
Segundo Mackinder, era preciso regressar à consideração dos elementos físico-naturais (“as características físicas do mundo”) que tinham sido sempre “coercivíssimos da acção humana”. Advertia que não era sua intenção deslizar para um “materialismo excessivo”. Mas a verdade é que, “em grande medida”, a “natureza” “controla[va]” as “iniciativas” do homem. Era uma fonte de desconcentração atermo-nos à “concepção literária da história”, isto é, às “ideias” e à “civilização que é o seu resultado”. Por outras palavras, a geografia era lei e os conteúdos espirituais pareciam ser mais ou menos irrelevantes.
De tudo isto, Mackinder deduzia que os movimentos nómadas obedeciam às possibilidades criadas e limitadas pelo ambiente físico. A partir da grande estepe da Eurásia escorreram os movimentos mais ou menos violentos que formaram a História da Europa, da China, da Índia, da Ásia Central.
Consultando os mapas, podíamos ver que a grande massa continental da Eurásia, a mais perfeita para a mobilidade de tribos e populações, a cavalo ou a camelo, e sem rios que desaguassem no oceano, controlava esses movimentos. A permeabilidade destes espaços às movimentações asiáticas, bem como a necessidade de reacção a essas movimentações, constituíam o grosso da história de todos estes espaços, povos e culturas.
À volta da Eurásia, e como destino dessas migrações, tínhamos quatro grandes áreas que corresponderam a quatro grandes religiões: o budismo, o bramanismo, o islamismo e o cristianismo. Em suma, a massa continental da Eurásia era a “região-pivô” da política internacional. Daqui resultava, por exemplo, que a Rússia seria sempre uma potência terrestre e a Grã-Bretanha uma potência marítima – factos que nenhuma “revolução social” alteraria.
No final, Mackinder reconhecia que os elementos espirituais também pesavam, e muito, na equação da política internacional. Mas a geopolítica, entendida como a política determinada pela geografia, tinha a vantagem de todos os materialismos: a de poder ser cientificamente contada, quantificada, medida e calculada. A ciência moderna podia depender da constância, regularidade e materialidade dos elementos geográficos. Ora, o humano tinha o condão de resistir a toda esta disciplina da metodologia científica moderna. Era a prioridade dos cientistas, e não tanto a natureza da realidade, que propunha o entendimento materialista de geopolítica.
Porém, tudo o que sucederia nos cem anos seguintes, em que as conquistas do espírito tornaram muito mais complexa a interacção com a matéria – a geografia –, encarregar-se-ia de nos convidar a transcender uma visão tão restrita da geopolítica. Pior do que isso. Na explicação de Mackinder, a Europa era um produto da sua geografia, do emaranhado de rios, montanhas, e por aí adiante, reagindo às invasões asiáticas. A civilização europeia tinha assim um estatuto duplamente subordinado. Primeiro, subordinado à sua geografia, que proporcionou resistências às incursões dos povos asiáticos. E, segundo, subordinado à história asiática.
A Geopolítica da Liberdade
A geopolítica é o palco de todo o tipo de dilemas. Não apenas os que envolvem a estratégia militar ou política. Os dilemas que assombram e engrandecem a geopolítica são de ordem moral e espiritual, económica e material. De um lado, as escolhas morais forçosas entre dois bens, ou mais frequentemente entre dois males. Do outro, a confrontação com a escassez material e as escolhas por vezes proveitosas, por vezes destrutivas, que ela implica. Escolhas também forçadas pela condição temporal da existência humana – individual e colectiva. Escolhas entre o passado e o futuro, entre o curto prazo e o longo prazo. Muitas das escolhas são, na verdade, produto da necessidade pura e dura. Mas a agência humana ainda permite respostas mais ou menos criativas ao império da necessidade.
Além destas, há escolhas verdadeiramente livres quando se abrem possibilidades indeterminadas e incertas. Em ambos os tipos de escolhas revelam-se a grandeza humana ou a mesquinhez. São escolhas feitas por seres humanos que se recusaram a ser meros joguetes da contingência. Por vezes foram chamados a pagar um preço elevadíssimo por elas – eles e os povos que governavam ou dirigiam ou inspiravam. Noutras ocasiões cobriram-se provisoriamente de glória e conseguiram proteger os povos pelos quais se responsabilizaram. Noutras ainda cometeram crimes indizíveis e trouxeram a violência e o sofrimento em grande escala.
Guerra, Império e Democracia defende que a geopolítica europeia nasce de um momento de resistência a uma “invasão” de um “potentado”, ou de um império, “asiático”. Falo da resistência de Atenas ao império dos Persas no início do século V a. C. Não será, então, uma confirmação inadvertida das teses de Mackinder e dos seus discípulos? Isto é, não confirmo eu o que quero desmentir, a saber, que a geopolítica não é redutível à geografia? Julgo que não.
Podemos colher a sabedoria de que precisamos acompanhando os momentos destas escolhas, as ponderações que foram feitas, os bens e os males concretos que estavam em causa, os horizontes políticos morais em que essas escolhas se desenhavam, os recursos espirituais e materiais que forneciam os meios das escolhas, e por aí adiante. Com essa aprendizagem acedemos a uma dimensão mais profunda da análise geopolítica e dos grandes momentos definidores da geopolítica do passado e do presente. A gravidade e a grandeza desses momentos nunca são efectivamente discernidas sem todas estas considerações.
O discurso sobre a geopolítica, as interpretações dos acontecimentos, das mudanças, dos perigos, das oportunidades, têm repercussões sobre a própria realidade histórica, na medida em que informam, justificam e condenam as escolhas, as reacções, as esperanças, as aspirações e a articulação dos “interesses” de todos os actores. O logos da geopolítica interage sobre a realidade geopolítica. O que faz com que o discurso sobre a geopolítica seja um factor geopolítico de primeira ordem. Sobretudo os europeus devem conceder que “os grandes pensamentos são os grandes acontecimentos”.
Ora, Guerra, Império e Democracia procura resistir às inclinações deterministas. A sequência histórica dos acontecimentos geopoliticamente decisivos que aqui apresento não deve ser lida à luz de nenhuma inexorabilidade. Muitos destes momentos assinalam escolhas radicalmente livres dos seus protagonistas, assim como restrições inamovíveis impostas pelas circunstâncias e pelo passado.
A contingência não deixou de ter a sua quota-parte na governação do mundo humano. Por outro lado, não se pode dizer em retrospectiva que a formação deste ponto de vista geopolítico europeu foi pura e simplesmente arbitrária, nem que o seu predomínio nos séculos XIX e XX resultou de puros acasos históricos ou de puras reacções mecânicas e não-criativas à ditadura de circunstâncias essencialmente dadas. Podemos dizer em contradição com as teses da essencial arbitrariedade do retrato que formamos hoje do mundo geopolítico, e das teses de que esse retrato corresponde apenas e exclusivamente à vontade crua de poder, que o momento do nascimento do ponto de vista geopolítico europeu consiste numa escolha política livre – e muito contestada pelos seus contemporâneos – de um homem, de um ateniense, chamado Temístocles.
Guerra, Império e Democracia defende que a geopolítica europeia nasce de um momento de resistência a uma “invasão” de um “potentado”, ou de um império, “asiático”. Falo da resistência de Atenas ao império dos Persas no início do século V a. C. Não será, então, uma confirmação inadvertida das teses de Mackinder e dos seus discípulos? Isto é, não confirmo eu o que quero desmentir, a saber, que a geopolítica não é redutível à geografia? Julgo que não. Podemos conceber muitas teses, mas convenhamos que é muitíssimo difícil aceitar que foi a geografia ática que decidiu Salamina. Não foi nenhum fatalismo que nos deu Temístocles.
A Política da Geopolítica
Na Democracia na América, Tocqueville pronunciou-se longamen- te sobre a influência da condição democrática na alma humana. E desta sobre as ciências da sociedade que são praticadas em tempos democráticos. Nos historiadores da época democrática, Tocqueville viu, em contraste com os historiadores das épocas aristocráticas, a inclinação para atribuir “quase nenhuma influência” do indivíduo sobre o destino da “espécie” ou do “cidadão” sobre o seu “povo”.
Preferiam apontar para “grandes causas gerais” e ignorar a vontade e a liberdade que fazem uns actores optar por esta possibilidade e não por aquela. Os historiadores das épocas aristocráticas exageravam em atribuir a indivíduos heroicos a omnipotência sobre a história dos seus povos. Já os historiadores democráticos eram vítimas da percepção democrática de que os indivíduos eram “independentes” uns dos outros, e que só a “massa” era poderosa e a pessoa singular impotente. No julgamento de Tocqueville, o exagero dos historiadores democráticos era apenas um sintoma da sua mediocridade. Causas “gerais” – hoje chamaríamos estruturais – e causas individuais concorrem na formação do acontecimento. Abolir umas para benefício das outras é um erro. Mas a inclinação dos historiadores democráticos era “mais perigosa”. Tornava flagrante a contradição entre a liberdade do indivíduo que a democracia queria promover, por um lado, e, por outro lado, a negação na historiografia da liberdade do ser humano como agente histórico. Fazia crer que os movimentos históricos nada tinham de voluntário. Que a acção histórica era comandada por forças externas e impessoais. Que os povos democráticos eram joguetes de uma “providência inflexível” ou de uma “fatalidade cega”. A maior vítima dessa contradição não era a veracidade da interpretação histórica. Era a própria liberdade. Deste impasse intelectual formado pelo tempo democrático saía um certo tipo de interpretação geo- política. A expressão é minha, evidentemente. Mas a citação de Tocqueville permite perceber que não estou a abusar dos meus privilégios de comentador: (…) cada nação está invencivelmente amarrada pela sua posição, pela sua origem, pelos seus antecedentes, pelo seu meio ambiente, a um certo destino que nem todos os seus esforços conseguiriam mudar.
É um erro desligar a reflexão geopolítica da questão do regime político e da forma política em geral. Há quem o faça, como se os regimes políticos ou as formas políticas fossem irrelevantes, como se as justificações, racionalizações, refutações políticas dos povos fossem epifenómenos inconsequentes. Os regimes políticos são, pelo contrário, elementos primordiais na análise geopolítica. Não são meras derivações de estruturas mais fundamentais como a geografia, os alegados “interesses” intemporais dos povos, a economia e a técnica.
Há, no entanto, um aspecto do artigo de Mackinder, precisamente aquele aspecto que não era original dele, que vale a pena tomar em conta no apuramento da ideia de geopolítica. Falo do fechamento do mundo geográfico e do subsequente fechamento do mundo político.
Num certo sentido, o primeiro fechamento determinava que houvesse apenas um único “sistema político” no mundo. Tentando resgatar o propósito de Mackinder, poderíamos dizer que a geopolítica seria o estudo dessa unidade. Estando o mundo fechado, os actos, movimentos, iniciativas numa parte dele afectam, de uma maneira ou de outra, as restantes partes e, porventura, induzem nelas uma reacção. Todas as partes estão relacionadas entre si. O sistema político torna-se global. Assim, ponderando tudo isto, podemos dizer que a geopolítica é a política internacional e as suas circunstâncias – a totalidade das suas circunstâncias.
É um erro desligar a reflexão geopolítica da questão do regime político e da forma política em geral. Há quem o faça, como se os regimes políticos ou as formas políticas fossem irrelevantes, como se as justificações, racionalizações, refutações políticas dos povos fossem epifenómenos inconsequentes. Os regimes políticos são, pelo contrário, elementos primordiais na análise geopolítica. Não são meras derivações de estruturas mais fundamentais como a geografia, os alegados “interesses” intemporais dos povos, a economia e a técnica.
Em conformidade, as questões geopolíticas, em particular a conceptualização da geopolítica europeia, serão aqui articuladas sem omitir o regime político. É por isso que falarei muito de império e de democracia. A geopolítica europeia é pura e simplesmente incompreensível sem estudar seriamente essas duas formas políticas, os conflitos em que se envolveram e, em termos gerais, a relação dialéctica em que se deixaram envolver. É, sem dúvida, umas das chaves mais versáteis para a interpretação da geopolítica europeia.
Nota: Este texto é parte integrante da Introdução do livro “Guerra, Império e Democracia. A ascensão da geopolítica europeia“, escrito por Miguel Morgado, e editado pela Dom Quixote.
Nota 1. Miguel Morgado (1974) é licenciado em Economia e Mestre e Doutor em Ciência Política. Leciona atualmente no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Foi Professor Convidado da Universidade de Toronto e ensinou em várias universidades norte-americanas e brasileiras. Entre 2011 e 2015, foi assessor político do primeiro‑ministro, e de 2015 até 2019 deputado à Assembleia da República. É autor de vários livros, entre os quais “Soberania” e “Dos Seus Usos e Abusos na Vida Política” (Dom Quixote, 2021).
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Guerra, Império e Democracia. A ascensão da geopolítica europeia
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