O Vicente morreu, e o jornalismo não se sente muito bem

O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana recorda Vicente Jorge Silva, "um amigo, um mestre e um herói", e o estado do jornalismo que se faz, aqui e lá fora.

Tinha dez anos quando a minha vida se cruzou com a do Vicente Jorge Silva. Os meus pais abriram uma loja de discos no Funchal, no rés-de-chão do edifício onde ficava a casa e o estúdio fotográfico da família do Vicente, o mais antigo ateliê de fotografia da Madeira. Era a casa onde o Vicente cresceu, onde viviam os seus pais, e era onde ele ficava quando ia à ilha. Habituei-me a ver passar, de tempos a tempos, aquela figura que me parecia excêntrica, que falava alto e às vezes me fazia caretas (o Vicente nunca se deixou disso). O Funchal era uma cidade pequena, e o Vicente era uma personagem enorme.

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O fascínio tornou-se admiração quando percebi quem ele era. Em minha casa não havia o hábito de ler jornais, mas por alguma razão foi esse o meu caminho – e o Vicente, que fazia coisas importantes “em Lisboa”, tornou-se um herói pessoal.

No final do liceu, já era consumidor de jornais e tinha dois amores – O Independente e o Público. Durante o curso de comunicação social, enquanto aprendia teoria na Nova, estreei-me na prática no Público. Tornei-me colaborador da secção Local, que era um jornal dentro do jornal e bem faz falta hoje, nestes tempos de regresso ao localismo e a um certo espírito comunitário (tanta, tanta coisa em que o Público teve razão antes de tempo, ou forçou o tempo…).

Eu procurava reportagens por Lisboa, escrevia os textos em casa, à mão, e ia à redação passá-los a computador e mostrá-los ao editor (o Francisco Neves, com uma paciência infinita). Havia sempre um momento em que o Vicente irrompia pela redação, e discutia alguma coisa com alguém, e eu ganhava o dia, porque aprendia mais com aquelas discussões do que em muitas horas na Nova.

Só em 2018 o Vicente voltou à redação do jornal que fundou. Foi convidado pelo então diretor, o David Dinis, para ser diretor por um dia nos 28 anos do jornal. Foi também o David (e quem gosta de jornalismo deve-lhe isso, e não é pouco) quem o convidou para voltar a escrever no Público.

Acabei por me tornar jornalista do Público e o Vicente por ser o meu primeiro diretor. Tive a sorte de trabalhar rodeado de gente talentosa e marcante (como o Raul Vaz, a Ângela Silva ou o Torcato Sepúlveda, que se tornaram meus amigos), numa redação cujas características fui, aos poucos, identificando com os traços definidores do Vicente. Não vos maço com pormenores. Fast forward: em 1996, um mês depois de o Vicente sair do Público, saí também, para O Independente. Aí quase não aqueci a cadeira, mas fiz uma reportagem que me valeu o Prémio Gazeta Revelação – e o prémio adicional de o Vicente me ter telefonado a dar os parabéns por isso. Acho que foi nesse telefonema que ficámos amigos.

Só em 2018 o Vicente voltou à redação do jornal que fundou. Foi convidado pelo então diretor, o David Dinis, para ser diretor por um dia nos 28 anos do jornal. Foi também o David (e quem gosta de jornalismo deve-lhe isso, e não é pouco) quem o convidou para voltar a escrever no Público.

Nessa edição comemorativa, o Vicente escreveu este editorial. Retiro desse texto algumas palavras soltas: debate, criatividade, engenho, espírito aberto e democrático, rigor e equilíbrio, sem preconceitos ideológicos e ideias feitas, audácia e imaginação, discordância natural e saudável numa sociedade livre e democrática. Eis boa parte das tais características do Público que eu acabei por reconhecer como ADN do seu primeiro diretor. E que bem podem ser um programa daquilo de que o jornalismo atual mais precisa.

Em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, o Vicente recebeu o Prémio Gazeta de Mérito. É importante ler o curto discurso que então fez. Está aqui o que é importante perceber nestes tempos em que o futuro do jornalismo é ensombrado por ameaças externas e males autoinflingidos. Reproduzo uma parte:

“Num tempo propício à ansiedade, à angústia e à desorientação, como ainda agora vimos nos Estados Unidos, é preciso que o jornalismo desperte da sua letargia auto-satisfeita ou da complacência com os instintos rudimentares do populismo.

A pedagogia da verdade dos factos, a objectividade possível para além das fixações ideológicas, a paixão do civismo que faz os homens melhores e as sociedades mais esclarecidas, a libertação das garras do baixo comércio das vulgaridades, tudo isso é essencial para o jornalismo encontrar novas razões urgentes de existir neste planeta tão perturbado.”

Infeliz século novo

A morte do Vicente Jorge Silva, para além da perda de um amigo, um mestre e um herói, representou para mim o fim simbólico de um tempo. Mas também a oportunidade de reapreciar a herança do Vicente (ler esta sua conversa biográfica com a Isabel Lucas ajuda) e reconhecer aquilo em que ele tinha razão há décadas e continua a ter hoje.

Há anos que se fala na crise do jornalismo, porque há anos que o jornalismo está em crise. São muitas crises juntas, que nalguns casos se foram alimentando, e em muitos casos foram provocadas por erros da indústria jornalística – no essencial, está em causa a implosão do modelo de negócio tradicional, e um novo ecossistema comunicacional que trouxe novos atores, novas práticas e muita desorientação sobre o papel dos media tradicionais: o que fazem, como fazem, e que consequências isso tem na sua credibilidade e confiabilidade, e na sua capacidade de continuar a ditar o que é e o que não é notícia.

Nas últimas duas décadas abateu-se sobre as redações nada menos do que uma tempestade perfeita. Há dias, no podcast Atlantic Talks, da FLAD, falei sobre tudo isso com a Catarina Carvalho, e recomendo essa conversa sobre como o jornalismo se meteu entre a espada e a parede. A Catarina foi até abril diretora-executiva do DN, é das pessoas que melhor pensa sobre o jornalismo que temos e o que devíamos ter. Sem surpresa, atualmente não tem lugar em qualquer grande redação portuguesa. Vai em breve para Oxford como visiting fellow do Reuters Institute.

Se a situação já era má antes da Covid, tornou-se pior. Não há ainda muita informação sobre encerramentos de títulos e despedimento de jornalistas em Portugal, em parte graças ao balão de oxigénio do lay-off e de outras medidas que permitiram adiar compromissos. No final do ano, conforme acabem as moratórias e vão caindo os impedimentos a despedir nas empresas que tiveram lay-off, essas consequências ficarão mais claras.

Para já, um inquérito ao impacto do estado de emergência no jornalismo indica 17% de novos desempregados, 11% em situação de lay-off e um agravamento da precariedade do trabalho dos jornalistas portugueses.

Portugal: jornais mais pobres, rádios mais evangélicas

Pelo menos 50 jornais entraram em regime de lay-off, incluindo grupos como a Global Media (dona do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF), e Impala (Nova Gente, TV7 Dias, etc.). Na imprensa local, cerca de 30 jornais “deixaram de imprimir” – alguns transitaram apenas para o digital.

As rádios locais, que na sua maioria já viviam com a corda na garganta, viram o baraço apertar-se. Para muitas, a “salvação” tem chegado do reino dos céus, salvo seja: tem crescido a quantidade de rádios locais adquiridas por seitas religiosas e igrejas evangélicas. Eis um movimento que está a passar por debaixo dos radares. A tendência segue o que se passou noutros países, como o Brasil (e tamabém Angola). E sabemos bem como a presença desses protagonistas no espaço mediático abriu terreno para as correntes políticas ultra-conservadoras que levaram Bolsonaro ao poder. É fundamental estar atento, para mais tendo em conta a ligação entre a nova extrema-direita populista e essas seitas, como tem reportado o Miguel Carvalho na Visão.

A Impresa (dona do Expresso e da SIC) já assumiu que os lucros afundaram 95% no primeiro semestre. A Cofina (dona do Correio de Manhã e CMTV) revelou esta semana que, no mesmo período, passou de lucros para prejuízos de €1,3 milhões – mas, neste caso, ao impacto da pandemia soma-se a desastrosa operação de compra da Media Capital, e posterior desistência. Se em Portugal o impacto da crise dos media é menos evidente, também se deve às movimentações dos últimos meses em torno da propriedade da TVI.

O choque, para já, atinge sobretudo os media locais, e em particular a imprensa. As dificuldades atingem, também, o negócio de distribuição, onde a pandemia agravou problemas já existentes. E os jornais locais, dependentes dos correios, ressentem-se daquilo que qualquer cidadão pode constatar ao recorrer aos CTT: a degradação do serviço de distribuição de correspondência.

A grande “carnificina”

Noutros países, o tsunami está mais à vista. Pelo menos 38 mil pessoas perderam o seu emprego ou aceitaram cortes salariais no jornalismo norte-americano, entre março e junho. É mais de um terço dos 88 mil que trabalhavam nas redações americanas no ano passado. O Financial Times chama-lhe uma “carnificina”, que atinge desde os velhos jornais locais às novas startups apoiadas por capital de risco.

A NewsCorp, o conglomerado da família Murdoch, que integra a Fox News e grandes jornais na Austrália e no Reino Unido, reportou perdas de 1,5 mil milhões de dólares só nestes dois países. No segundo trimestre deste ano, as receitas caíram 31% na Austrália e 22% no Reino Unido. Também no Reino Unido, a DMGT, proprietária do Daily Mail, o diário mais vendido do país, anunciou cortes severos de pessoal e reestruturação.

Em Espanha, os primeiros dados pós pandemia indicam uma quebra de vendas dos seis principais diários nacionais superior a 13%. Alguns grupos editoriais apontam recuos de vendas até 20%. A publicidade, essa, deu um trambolhão maior: nos jornais, caiu para metade. Para muitos, o recurso foi o lay-off e esperar ajudas do Estado.

Estamos perante a súbita aceleração de duas tendências globais que se prolongam pelo menos desde o início do século XXI: a quebra de vendas e a quebra de publicidade, as duas fontes de receitas do modelo de negócio tradicional do jornalismo.

Já falaremos mais disso, mas antes retenha esta informação: nos Estados Unidos, onde se vêem primeiro muitas das tendências que acabam por contaminar a Europa, metade dos jornalistas de imprensa desapareceram entre 2008 e 2019. Depois de um pequeno crescimento na transição inicial para o digital, não parou o emagrecimento forçado das redações, sobretudo nos jornais. O mesmo estudo do Pew Research Centre assinala algum crescimento nos recursos humanos nas televisões generalistas e sobretudo nos meios digitais nativos. Mas o saldo final é desolador: as redações norte-americanas empregavam em 2019 menos 23% do que em 2008.

A queda da imprensa

Os últimos dados sobre venda de jornais e revistas dão conta do trambolhão imposto pela pandemia. Os dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT) mostram uma quebra de quase 29% nas vendas em banca no segundo trimestre de 2020. Entre abril e junho, em comparação ao mesmo período em 2019, venderam-se menos 290.309 exemplares das publicações auditadas pela APCT. No primeiro trimestre, já com reflexos do confinamento na segunda metade de março, as vendas em banca caíram 20% em termos homólogos, ou seja, menos 288 mil edições vendidas em apenas três meses.

Números que vieram acelerar uma tendência de queda da venda de informação impressa, que se mantém constante desde o início deste século em Portugal. De acordo com os dados da Pordata, entre 1999, último ano em que a venda de jornais e revistas em banca cresceu, e 2018, o total de exemplares vendidos caiu de uma média de 486 mil por dia para 171 mil.

Nada de muito português. Mas há países onde o declínio da imprensa se prolonga há mais tempo. Nos Estados Unidos, é um plano inclinado desde os anos 50.

Em contrapartida, o volume de assinaturas digitais tem crescido – e deu o maior salto de sempre neste último trimestre. Cá e lá fora. Em relação ao período homólogo de 2019, a circulação digital paga registou uma subida de 50%, e o peso do digital no total de vendas praticamente duplicou, estando agora nos 13,35%. Há jornais para os quais o digital já vale mais do que o papel: Jornal Económico (90,08% das receitas vêm do digital), Público, Negócios e Diário de Notícias.

No mês passado, o jornal mais influente do mundo, o New York Times, assistiu ao momento histórico em que a receita das assinaturas digitais superou a da edição em papel. O jornal norte-americano atingiu 6,5 milhões de assinantes em todo o mundo, e pode agradecer a boleia da pandemia: entre abril e junho foram mais 669 mil assinaturas digitais, coincidindo com o período em que a Covid-19 provocou uma enorme procura de informação fidedigna, ao mesmo tempo que o confinamento tornava mais difícil ir à rua comprar o jornal em papel.

Por cá aconteceu parecido: quase todos os jornais caíram em papel, mas houve crescimentos robustos na subscrição das edições online. Em inglês chamam-lhe o “corona bump” (o empurrão do corona), que atingiu o seu pico na Europa a meio de março. Entretanto, o ritmo de subscrições digitais caiu, mas mantém-se a um nível mais alto do que nos tempos pré-pandemia.

Problema: a subida no online não compensa a quebra no papel nem em volume, nem em valor.

A pandemia trouxe maior procura de jornais online – os dados de visitas e pageviews dizem-no em todo o mundo. Perante o medo e a incerteza generalizados, a procura de informação fidedigna cresceu, e muitos órgãos de comunicação social assumiram uma responsabilidade social ao permitirem acesso livre a informação que por regra seria paga. Porém, a taxa de retenção de leitores disponíveis para passar a pagar assinaturas ainda é muito baixa, apesar de as assinaturas digitais serem mais baratas do que comprar os jornais em papel. A imprensa continua a pagar o erro cometido no final do século passado, quando disponibilizou gratuitamente nos sites aquilo que antes era pago. A ingenuidade perante a novidade da internet saiu caro. Uma destruição de valor que ainda hoje faz com que muita gente recuse pagar pela informação.

A agravar tudo, as receitas de publicidade caíram a pique.

O precipício da publicidade

É simples: numa economia parada e ameaçada por uma recessão global, quem investe em publicidade? Poucos. Eis o gráfico (retirado daqui) que mostra como em todo o mundo os orçamentos dos departamentos de marketing se afundaram:

Em Portugal, um inquérito da Entidade Reguladora para a Comunicação aponta para uma quebra das receitas de publicidade entre 61% e 80% em um terço das empresas de media. O caso é particularmente grave nos órgãos locais e regionais.

Curiosamente, estudos desenvolvidos em vários países indicam que desde a chegada da Covid-19 houve uma maior procura de informação local e regional – a noção do impacto comunitário do vírus e a limitação de movimentos no território criou uma nova apetência por informação local… logo quando esses órgãos de informação têm menos meios, pois recebem menos investimento por parte dos anunciantes locais.

A contradição entre audiências e publicidade não fica por aí. Verifica-se também na televisão. Com os países fechados em casa, as audiências dispararam. A nível global, poucos players terão beneficiado tanto como a Netflix, que ganhou 15 milhões de utilizadores no primeiro trimestre, e outros 10 milhões no segundo.

Em Portugal o consumo de televisão chegou a subir 40%durante o estado de emergência, e os programas de informação ganharam espaço nas grelhas de programação. Mas, em simultâneo, o tempo de publicidade médio diário chegou a recuar mais de quatro horas.

Os dados internacionais indicam que todos os setores cortaram na publicidade, com quebras maiores nas viagens e turismo, entretenimento, serviços financeiros e retalho. Esta quebra atinge mais os media tradicionais (sobretudo jornais e revistas, mas também televisão e rádio), e tem sido menos notória nas novas plataformas online e redes sociais.

Nada de novo, apenas uma versão exacerbada do que aconteceu nos últimos anos: a publicidade a procurar as grandes plataformas, motores de busca e redes sociais, como a Google, o Facebook ou o Alibaba, e a fugir dos media tradicionais, em particular da imprensa (mas também da rádio e tv). Bastam dois números para perceber a dimensão da mudança: em 2000, metade da publicidade mundial era feita em jornais e revistas – agora, é menos de 10%.

Este é o ano em que se cumpre a profecia: pela primeira vez o mercado digital de publicidade vale mais, a nível planetário, do que a publicidade nos meios tradicionais. Mesmo descontando os anúncios online nos sites de media tradicionais, o marketing digital nos gigantes da Big Tech já vale mais de metade dos 530 mil milhões de dólares da indústria global de publicidade. A recessão deverá ter um impacto negativo de 2,4% nas campanhas digitais, mas o corte nos media tradicionais deverá ser superior a 20%.

Gigantes como a Google e o Facebook, cujos canais são em boa medida alimentados pelos media tradicionais cujas receitas estão a desviar, tornaram-se ainda mais apetecíveis no pós-pandemia: não só porque uma parte do consumo se transferiu para o e-commerce, mas porque, com recursos mais limitados, os anunciantes têm de fazer mais escolhas. E apostam nos suportes com mais alcance e mais certeiros e eficazes na seleção do alvo.

Taxas sobre os gigantes, pequenos apoios do Estado

A reação dos media tradicionais está em marcha, mas deverá demorar a ter resultados. Uma taxa sobre as grandes tecnológicas, que compense os produtores dos conteúdos que esses canais usam sem pagar – seja uma taxa a nível europeu, ou nacional – está na agenda da Comissão Europeia, mas demorará a concretizar-se.

Entretanto, há pouco mais do que panaceias. Os operadores de tv por cabo querem introduzir anúncios nas gravações automáticas da box, para que os espetadores que vêem os programas em diferido não “saltem” os anúncios. Os representantes da imprensa querem impedir que redes sociais como o Telegram sirvam para que milhares de pessoas partilhem ilegalmente edições em PDF dos jornais.

E em vários países os Governos ponderam hipóteses para atirar uma bóia salva-vidas que assegure a sobrevivência de jornalismo de qualidade, independente e diversificado. Em Portugal, o recurso de emergência foi o já célebre apoio aos media que consistiu em 15 milhões de euros de adiantamento de compra de publicidade. Passados meses sobre o anúncio dessa medida de urgência, ainda nem um cêntimo chegou às empresas de comunicação social. A expetativa, ao que sei, é que os primeiros apoios cheguem até ao fim deste mês – se algum órgão de comunicação social dependesse dele para sobreviver, já estaria morto.

O Governo está a estudar outros cenários de ajuda aos media, desde benefícios para quem compra jornais ou investe em empresas de jornalismo, ou comparticipação do Estado no custo das publicações, ou a hipótese de bolsas para projetos jornalísticos, atribuídas por um júri independente. Tudo menos a injeção direta de subsídios. Como se viu pela reação de Rui Rio, é fácil e populista bater no apoio público aos media.

Convém notar que não há nada de muito original no apoio indireto do Estado aos media por via da compra publicidade. Quase todos os países europeus o fazem. Até no Reino Unido, onde a relação entre o antigo jornalista Boris Johnson e os media é tão tempestuosa que houve planos para asfixiar financeiramente a BBC, o Estado viu-se subitamente como o maior investidor em publicidade. Não era, mas a contração dos anunciantes privados entre março e junho fez com que os serviços de saúde pública britânicos fossem, durante esse período, o ventilador que salvou as contas dos media britânicos.

A tentação de tomar partido

Se está à espera do momento em que o Vicente Jorge Silva volta a entrar em cena, é agora. Porque, como escrevi no início, a crise do jornalismo tem uma componente de modelo de negócio, e outra sobre opções editoriais, que têm a ver com escolhas próprias, mas também com circunstâncias externas. O Vicente deu respostas a ambas as frentes do problema.

A internet não pressiona o jornalismo apenas porque desvia publicidade e canibaliza conteúdos. Pressiona-o como um rolo compressor de atualização permanente, instantânea, 24 horas por dia – a net democratizou para todo o jornalismo a lógica das notícias non-stop criada pela CNN, e copiada por inúmeros outros canais de cabo, com a obrigação de manter as audiências interessadas o tempo todo, mesmo que para isso seja preciso empolar factos, dramatizar acontecimentos, e transformar as maiores banalidade em explosivas breaking news.

Seguiram-se as redes sociais, igualmente instantâneas, e com outro tipo de democratização: qualquer um pode ser produtor de conteúdos, tornando fluidos os papéis de audiência e comunicador. Nas redes sociais qualquer pessoa partilha qualquer informação, mesmo falsa ou não confirmada, e isso pressiona os media tradicionais. A pressa de reagir, por parte dos meios de comunicação social, não pode atropelar as regras do jornalismo.

Com a internet, e depois os blogs, e a seguir as redes, os media perderam o monopólio da definição do que é notícia e do que entra na agenda. Os políticos e outros atores públicos perceberam isso – os media “são uma entre muitas opções” que os governos têm para comunicar, como dizia um analista britânico.

Ninguém percebeu isso melhor do que Trump. O presidente norte-americano, o homem que mais acicata a desconfiança e o ataque aos media, que rotula o jornalismo como “inimigo do povo”, é, por si, um teste de stress para se perceber como pode o jornalismo recuperar a centralidade e a credibilidade que teve no passado, sem trair a sua missão.

Perante fenómenos como Trump, a tentação de tomar um lado, qualquer que ele seja, é enorme. Tanto por convicção como por audiência – seja falando para a sua falange de apoiantes, seja assumindo a linha da frente da resistência. As sociedades estão cada vez mais polarizadas e, nesse processo, os media, em vez de se manterem em terreno neutro, para falar à maior maioria possível sem alienar público potencial – foi essa a origem da ideia de neutralidade dos jornais: fazer mais negócio -, têm um incentivo económico para constituírem uma base fiel, mobilizada e polarizada. Quer uma prova? As audiências das convenções democrata e republicana, em agosto, nos EUA, partiram o público de acordo com linhas de identificação partidária e ideológica. O material de base era o mesmo, mas o jornalismo não.

Se queremos jornalismo mais focado em fazer jornalismo do que em fidelizar apoiantes, isso pode ter um custo económico. Ora, se o público pagante é pouco, e os anunciantes são cada vez menos, resta o apoio do Estado ou a generosidade dos mecenas. O apoio do Estado, já se sabe, levanta demasiados problemas para poder ser uma solução.

“É oficial: o jornalismo torna-se não rentável”

A forma como o jornalismo se posiciona no meio desta revolução ditará o seu futuro. Mas acredito que só terá futuro se for um jornalismo como aquele de que falava o Vicente.

Espero poder escrever outro Novo Normal sobre jornalismo. Sobre novos formatos e novas maneiras de fazer, menos dependentes das grandes redações tradicionais, com espaço para projetos mais pequenos, mais flexíveis, mais locais, mais focados em jornalistas e menos em marcas, com mais independência e menos custos. Um jornalismo coral, em que várias vozes dialogam, consciente de que o público diversifica cada vez mais a origem da informação que consome – menos de um terço acede às notícias diretamente pelos órgãos de comunicação social que as produzem.

Mas sempre um jornalismo com a curiosidade, a seriedade, a abertura, a liberdade, a disponibilidade para discutir e ouvir, a irreverência, o rigor, o profissionalismo e a exigência que o Vicente defendeu ao lançar a revista do Expresso e, depois, ao criar o Público.

Até no modelo de financiamento podemos aprender com o Público: um empresário disponível para perder dinheiro com um projeto que acrescenta à cidadania. Belmiro de Azevedo fê-lo mais de vinte anos antes de Jeff Bezoscomprar o Washington Post. Esse é cada vez mais o caminho: sociedade civil, fundos, fundações, mecenato.

Antes da pandemia, o Financial Times escrevia num título: “Journalism officially goes non-profit”. É um caminho ainda mais difícil num país com poucos recursos, e empresários sem tradição de responsabilidade social e envolvimento em causas de cidadania? É. Mais: Belmiro de Azevedo só houve um. Sim. Vicente também, acrescento. Mas os princípios editoriais e o modelo de financiamento estavam certo há trinta anos e são necessários agora.

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