Gestores da Teleperformance, Intelcia e Webhelp apontam oportunidades e ameaças ao nearshoring em Portugal, evitando erros que fizeram a capital da Catalunha perder posição na área de contact centers.
Mais de metade dos contact centers que operam em Portugal estão atualmente a trabalhar para outros países, atendendo clientes em dezenas de línguas, com esses serviços internacionais a serem prestados por empresas nacionais e grupos estrangeiros instalados no país. O chamado nearshoring já absorve perto de 56 mil pessoas, de um total de 104 mil que trabalham neste setor que já vale 3.000 milhões de euros. Porém, o acesso ao talento, a rigidez laboral, a burocracia na contratação ou a indiferenciação no valor dos serviços são riscos identificados (e a não repetir) por quem viu Barcelona definhar nesta indústria em apenas uma década.
Dos salários e línguas à fuga dos centros urbanos, passando pelo teletrabalho e pela especialização em área mais complexas, os líderes de três dos maiores operadores de contact centers em Portugal – Carlos Moreira (Webhelp), Carla Marques (Intelcia) e João Santos Tavares (Teleperformance) – falam sobre as oportunidades e as ameaças à evolução do nearshoring em Portugal. Editado em discurso direto pelo ECO, a partir das intervenções num debate moderado pelo presidente da associação do setor (APCC), Pedro Miranda, na conferência anual realizada num hotel do Porto.
Carlos Moreira, CEO da Webhelp
Estamos desde 2015 em Portugal, onde temos atualmente perto de 2.600 pessoas. Assisti à massificação do negócio de nearshoring em Portugal e é impressionante ver como este setor se transformou. Não há muitos setores que, numa década, tenham criado 50 mil postos de trabalho. Alguns viviam cá, outros vieram de fora. Temos mais de 50 clientes no nearshoring e multilingues. As perspetivas são as melhores.
Mudou muita coisa no mercado de trabalho nos últimos anos. Isso traz mais desafios aos gestores. O mercado era muito Lisboa, que saturou, e depois passou para o Porto. Em 2017 houve um grande executivo de uma das maiores empresas a nível mundial, americana, a quem perguntei porque não abria em Lisboa. Dizia que estava too hot. Perdeu seis anos porque não investiu na altura. Hoje temos cerca de mil pessoas no Norte de Portugal, maioritariamente em Braga. Não podemos concentrar só nos grandes centros urbanos. O futuro passará muito por isso – e com digitalização é mais fácil ter mais gente a trabalhar a partir de casa ou noutros escritórios.
O nearshore surgiu da necessidade de clientes de reduzirem custos. Na altura tínhamos uma estrutura de custos diferente e tínhamos pessoas aqui em Portugal que dominavam o francês, segundas e terceiras gerações de emigrantes. Foi uma questão de custo, sobretudo. No início muito ligado com telecomunicações e serviços mais maduros na externalização de serviços. Temos vindo agora a subir na cadeia de valor. Há uma década, esta indústria era incipiente. Pegámos nos gestores que tinham experiência no BPO (Business Process Outsourcing, terceirização de processos de negócios) para o mercado português, mas é mais complexo quando temos de gerir clientes de outras nacionalidades e culturas, com serviços em diferentes línguas.
Temos de decidir o que queremos fazer no futuro porque estamos a ver no espelho do carro o que Barcelona era há uns anos. Era multilingue e tem vindo a perder posição na Europa por causa de custos e questões laborais – e porque não se conseguiu reinventar nos serviços. Não queremos ser a próxima Barcelona.
Temos crescido na cadeia de valor. Nesta indústria não há nada a nível mundial que Portugal não possa fazer. Pelo contrário, somos um trendsetter. Temos de decidir o que queremos fazer no futuro porque estamos a ver no espelho do carro o que Barcelona era há uns anos. Era multilingue e tem vindo a perder posição na Europa por causa de custos e questões laborais – e porque não se conseguiu reinventar nos serviços. Não queremos ser a próxima Barcelona.
Em Portugal estão a entrar muitos centros de serviços partilhados, como o da Airbus ou o da francesa Natixis, que nos fazem crescer na cadeia. Já não é só customer service, mas suporte técnico, coisas mais complexas na área financeira. E assim podemos pedir um preço mais alto aos nossos clientes. É a garantia que no futuro podemos continuar a ter este negócio em Portugal. É preciso pensar estrategicamente o que será Portugal nesta indústria nos próximos dez anos.
Para hoje termos 50 mil pessoas neste segmento de atividade, teremos de ter contratados quase 300 mil pessoas porque este é um setor de alta rotatividade. É uma pressão enorme para quem trabalha em recursos humanos. Felizmente, as organizações têm conseguido continuar com a máquina a funcionar para repor as pessoas perdidas pelo caminho e ter crescimento líquido.
Os serviços públicos, para quem decide trabalhar em Portugal, têm de melhorar. Temos uma rotatividade inicial por questões menores, burocráticas. Outra dificuldade é o alojamento. Não só pelas taxas de juros e pelos preços das rendas, não há mesmo casas disponíveis. Em Lisboa é um drama total. O modelo de negócio de Lisboa é muito assente em trazer alemães e holandeses para vir viver para Lisboa. Vens viver para a cidade, tens surf e sol. Ok, mas vais ter de ir morar para os arredores e isso vai matar um bocado o crescimento. Como conseguir que essas pessoas aceitem ficar alojadas fora da cidade? Vai demorar uma década, pelo menos, a melhorar. É um obstáculo ao crescimento de dois dígitos que estas empresas estão a ter.
Quantos ao custo, vamos continuar a ter uma diferença de preço de cerca de 15% face a Espanha e de 30% a 40% em relação a países como a Holanda, Alemanha ou França. E vamos continuar a ser competitivos porque os outros países também estão a aumentar o salário mínimo, até mais do que nós. E os clientes olham aos custos para tomar decisões.
Por outro lado, a afinidade cultural também é importante no nosso negócio. As segundas e terceiras gerações [de emigrantes] já nasceram na França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo. Têm essa afinidade cultural, que é difícil de se replicar. Polónia e Roménia são ameaças a Portugal, mas o cliente tem de tomar uma decisão. Porque na Roménia não vai ter franceses, mas romenos a falar francês. E quando tiverem uma chamada de um francês aos berros por causa de uma fatura, a experiência é diferente. Os clientes vão perceber essa diferença e terão de ver o que estão dispostos a pagar.
Carla Marques, CEO da Intelcia Portugal
Estamos há quatro anos no mercado português, onde temos atualmente mais de 7.000 pessoas, e o negócio nearshore representa já 35% da atividade. Queremos que pese 60%, não só pelo potencial no mercado, mas por ser de elevado valor acrescentado. O grande desafio foi a implementação num país extremamente maduro, com vários players fortes estabelecidos no mercado. Diferenciamo-nos pela tecnologia e pelo investimento na componente humana.
Atuamos na área dos call centers e BPO. Recentemente, o nosso grupo comprou uma empresa [E-voluciona] especializada em data analytics, robôs virtuais, metaverso, que vamos implementar também em Portugal. Todas as nossas pessoas estão a experienciar o metaverso. Temos de balancear a componente humana que será diferenciadora, sem deixar de investir na plataforma tecnológica.
Iniciámos o nearshore em atividades de menor valor acrescentado, que era o que os clientes esperavam de Portugal. Foi o caminho da Irlanda, que começou assim e se especializou em atividades de grande valor. O desafio em Portugal foi encontrar perfis de gestão que se adaptassem a novos desafios e às culturas de outros países. Gerir uma operação em Portugal apenas com portugueses é muito mais fácil do que com outras nacionalidades, em que há backgrounds e estilos diferentes de viver e trabalhar.
Quando criámos o nearhore em Portugal foi por uma questão de competitividade de custos – não gostamos de dizer baixo custo. Por atividades mais transacionais e de menor valor. Hoje tentamos posicionar-nos em coisas mais complexas, por exemplo na área da banca e dos seguros. Aprendemos muito. Fizemos muitas asneiras na gestão de pessoas, os líderes tiveram de ser preparados para essas diferentes culturas.
Até aqui, a atração do talento foi relativamente fácil. O processo de aprendizagem iniciou-se pelas grandes cidades, que têm maior atratividade para os estrangeiros, a quem temos de pagar um apartamento – e Lisboa e Porto são mais fancies. O desafio nos últimos dois anos foi começar a expandir para outras regiões do país, em zonas não esperadas para o desenvolvimento de customer service e em que não havia tanto esta indústria de serviços. Hoje, temos de contactar, em média, 15 pessoas para contratar uma, pelo baixo desemprego e falta de mão-de-obra disponível. É um rácio de ineficiência brutal, implica um esforço grande.
Olhando à evolução dos salários, conseguimos traduzir valor para que as equipas tenham melhores condições de remuneração, para se sentirem comprometidas com os projetos. Houve uma evolução enorme a nível salarial. Temos uma imagem muito precária, mas na realidade há um grande investimento nas competências de gestão. O nearshore deu competitividade ao mercado português, fez subir os salários e melhorou a atratividade para os candidatos nos mercados estrangeiros. Todos sabemos o que há uns anos se pagava a um assistente de call center; hoje a ambição é chegar aos 900 euros. O nearshore desafia o mercado português a pagar melhor.
A competitividade no custo atrai os clientes internacionais. E há trabalho a fazer em termos de pricing, de como conseguimos continuar a ser competitivos face a concorrentes de outros países
Em termos de línguas, estamos bem posicionados no inglês, no francês e no espanhol. Depois vem o alemão, no holandês temos dificuldade e competimos com países como a Roménia ou a Polónia, que têm maior densidade destas línguas. Mas têm um sotaque que os clientes identificam e não se traduz em qualidade de serviço. Portugal tem uma comunidade emigrante que está a regressar porque o custo de vida em França ou na Alemanha está a aumentar imenso, e aqui têm mais apoio da rede familiar.
Tal como Portugal vai aumentar o salário mínimo e isso vai impactar no negócio português e multilingue, obrigando a rever a grelha salarial e o plano de carreira das equipas, outros países, como França, já aumentaram mais vezes. Não há budget que resista para os meus colegas franceses, por exemplo. A competitividade no custo atrai os clientes internacionais. E há trabalho a fazer em termos de pricing, de como conseguimos continuar a ser competitivos face a concorrentes de outros países.
Finalmente, temos 50% das pessoas em regimes de trabalho remoto, mas temos clientes que querem operações no local e isso não é coincidente com o que o mercado de trabalho pede. A primeira pergunta que os candidatos fazem é se podem trabalhar remotamente. Há ainda esse esforço a fazer com os clientes.
João Santos Tavares, diretor de recursos humanos da Teleperformance Portugal
O nearshore representa atualmente 90% do nosso negócio. Temos 13.500 colaboradores de 108 nacionalidades e operamos em 36 línguas. Há várias complexidades. Desde logo, o nosso setor vai servir várias gerações. Há a geração do telefone, a do WhatsApp, a do Fortnite. A grande preocupação neste último ano tem sido começar a criar sustentabilidade para este tema do metaverso. Fizemos investimento forte na área do gaming também, bebendo dessa comunidade, para conseguir endereçar a nova camada de clientes que vão chegar. Temos de atender pessoas com perfis e necessidades diferentes.
O objetivo é termos um rácio de 60% de pessoas no escritório ou em regime híbrido e 40% totalmente remotos. Para quem está 100% remoto temos de nos reinventar e ter outras ofertas, que podem não ser em Lisboa, Porto ou Braga. É onde a pessoa queira porque é isso que vai manter as pessoas cá. No que toca ao recrutamento, a língua mais difícil é o holandês. O alemão foi um desafio há uns meses porque procuravam trabalho remoto, mas hoje para nós isso é confortável. Há uma nova complexidade: os serviços de língua única hoje são língua única, mais inglês. E depois temos outro nível de complexidade nas línguas fora do espaço Schengen. Há pouco tempo testámos esse recrutamento e se uma pessoa do Cazaquistão quisesse vir para Portugal teria de ir a Moscovo presencialmente.
E há depois a parte burocrática aqui. Tratamos de tudo para os nossos colaboradores e, por força do volume, há coisas que se tornam mais fáceis. Todas as semanas temos uma equipa que trata [das burocracias] com as Finanças. Mas há Câmaras que requerem a presença física do colaborador e implica custos e explicar às pessoas que as temos de levar pela mãozinha a um guichet para tratar de um certificado de residência, por exemplo. Para isto poder funcionar, temos de ajudar as pessoas neste tipo de serviços e têm de ser mais ágeis. É como o cartão de saúde europeu: era tão complexo, que decidimos há dois anos que todos têm seguro de saúde, ponto.
Começam a existir países como a Roménia, a Polónia e a Albânia com crescimento no nearshore, com custos mais baixos. Temos de estar atentos porque, como há dez anos começámos a crescer, outros países começam a crescer agora. (…) Barcelona já caiu e, se não tivermos cuidado, daqui a três ou quatro anos podemos estar no mesmo panorama.
Um dos grandes desafios da descentralização é que temos serviços em Lisboa, Porto e Braga, que noutras cidades não é a mesma coisa. Tem de estar conscientes que ao tomarem essas opções, como irem trabalhar para o Ericeira, o nível de serviços é diferente. Em Portugal ainda não se nota tanto, mas noutros países em que operamos nota-se que é diferente contratar para escritório ou para posições remotas. Tínhamos clientes que nos diziam que todos deviam estar no escritório, mas já aprenderam e flexibilizaram essa posição. No nosso negócio significa um risco obrigar as pessoas a vir para o escritório.
Não é só o salário, é o custo de vida. Remoto implica gastarem menos dinheiro, é uma forma de melhorar as condições salariais das pessoas. O negócio evolui para um balanceamento entre a remuneração fixa e variável que, se calhar, tem de ser revisto. Não dá para concorrer desta maneira. O modelo remuneratório tem de ser atualizado. E depois temos perfis cada vez mais distintos e a remuneração tem de ser adaptada. Temos gerido a coisa através dos variáveis, mas talvez não seja a melhor maneira.
Portugal tem uma combinação em que só a Grécia se compara: tem qualidade de vida e multiculturalidade. Começam a existir países como a Roménia, a Polónia e a Albânia com crescimento no nearshore, com custos mais baixos. Temos de estar atentos porque, como há dez anos começámos a crescer, outros países começam a crescer agora. Não num panorama tão diverso de línguas, mas no grupo das línguas principais, como o alemão ou o italiano, há países que começam a ser competitivos. Barcelona já caiu e, se não tivermos cuidado, daqui a três ou quatro anos podemos estar no mesmo panorama. E temos de olhar para os próximos perfis que temos de trabalhar para nos diferenciarmos – e será mais complexo porque será um target diferente do que temos agora.
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Portugal foge da “atração fatal” de Barcelona na indústria dos call centers
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