Paris, Viena e Copenhaga tratam a crise na habitação com mão pesada à especulação e muita construção pública. Apesar de imperfeitos, algumas das suas políticas podem servir de inspiração a Portugal.
Os números falam antes de qualquer tijolo no universo da crise da habitação que assola o mercado nacional há pelo menos uma década. Só no primeiro trimestre deste ano, o preço das casas em Portugal disparou 18,7% – a maior subida em cinco anos – enquanto as rendas dos novos contratos avançaram 10% no mesmo período.
À boleia desta pressão, 98.657 inquilinos assinaram novos arrendamentos em 2024 a uma renda mediana de 7,97 euros por metro quadrado, mais 10,5% do que no ano anterior, levando a que Portugal esteja entre os cinco países da União Europeia com os mais elevados níveis de esforço financeiro das famílias para arrendar casa, segundo dados do Eurostat.
No terreno, a crise na habitação materializou-se recentemente em fenómenos extremos. O recente desmantelamento de barracas no bairro do Talude Militar, em Loures, revelou como o agravamento dos preços já obriga centenas de pessoas a construir casas ilegais ou a recorrer a soluções precárias. Só na Grande Lisboa estima-se existirem quase três dezenas de bairros de barracas, símbolo de uma cidade e de um país que não conseguem dar resposta digna à sua população.
Esta realidade não se limita aos mais desfavorecidos. Cada vez mais jovens, trabalhadores qualificados e até famílias da classe média veem-se empurrados para periferias distantes ou para situações de sobrelotação e insegurança habitacional.
Ao mesmo tempo, assiste-se a uma multiplicação de anúncios por parte de diferentes Governos para tentar resolver a crise na habitação, apesar dos parcos resultados obtidos. Com o aumento galopante dos preços, que acontece a uma velocidade mais elevada do que o aumento dos rendimentos das famílias, ter casa própria tornou-se num luxo fora do alcance para milhares de portugueses.
O diagnóstico da crise na habitação aponta para um mercado que sofre de falta crónica de oferta, habitação pública residual, rendas elevadas face aos rendimentos das famílias e uma sobrecarga financeira que asfixia as famílias.
Do programa “Mais Habitação” ao plano “Construir Portugal: Nova Estratégia para a Habitação”, a soluções de facilitação de acesso ao crédito à habitação como a garantia pública e a isenção do pagamento do IMT e IS para os jovens, sucedem-se as medidas e os debates. Especialistas como Vera Gouveia Barros advertem, porém, que milhares de medidas não fazem uma política eficaz se não forem acompanhadas de escala, clareza nos objetivos e execução rigorosa.
As comparações com modelos seguidos por outros países europeus para resolver a crise na habitação — onde se implementaram quotas municipais de habitação social, tetos de rendas e políticas inovadoras de habitação pública — revelam que Portugal ficou para trás, sobretudo na dimensão da aposta pública e na transparência da ação do Estado.
O diagnóstico aponta para um mercado que sofre de falta crónica de oferta, habitação pública residual, rendas e preços de casas elevadas face aos rendimentos das famílias que levam a uma sobrecarga financeira que asfixia milhares de famílias. A resolução da crise na habitação é complexa e não há uma só solução para corrigir os desequilíbrios no mercado. Muitos dos modelos usados por grandes cidades europeias para combater esta crise, apesar das suas imperfeições, podem ajudar a servir de inspiração.

1. Oferta cronicamente curta
- Modelo alemão e francês: quotas municipais de habitação social e mobilização de solo público
A insuficiência estrutural de oferta habitacional é um dos maiores entraves à resolução da crise da habitação em Portugal. Nos últimos anos, mesmo com algum crescimento, o número de casas novas licenciadas e concluídas tem estado muito aquém das necessidades de uma procura em constante aumento e longe dos números do passado.
Em 2024, por exemplo, o país licenciou 34.637 construções novas para habitação familiar, mais 4,7% face ao ano anterior, mas foi também um valor equivalente a apenas 45% dos mais de 77 mil licenciamentos feitos há 20 anos. Além disso, os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam também que, apesar de terem sido concluídos 28.494 fogos no ano passado, mais 6,8% face do que no ano anterior, trata-se de um número que fica 62% abaixo dos 74.621 fogos construídos em 2004.
Este desequilíbrio temporal na oferta esbate num forte crescimento da procura, que é visível na realização de 156.325 transações de alojamentos familiares no ano passado, mais 14,5% relativamente a 2023, e pelo aumento de 3,6% do stock de crédito à habitação no final do ano passado, que se acentuou já este ano, com o montante de empréstimos à habitação a alcançar 106,1 mil milhões de euros em maio, mais 6,8% face a maio de 2024 e o valor mais elevado desde novembro de 2013.
A Comissão Europeia recomenda a implementação urgente de “metas legais e vinculativas para a construção de habitação social”, a aceleração dos licenciamentos, a mobilização de terrenos públicos e o reforço do financiamento às Câmaras e às cooperativas.
O “buraco” entre oferta e procura no mercado da habitação é salientado pela Comissão Europeia num relatório publicado em junho, que alerta para “uma oferta insuficiente de habitação a preços acessíveis, sobretudo nas grandes cidades e zonas turísticas”, destacando que, apesar de Lisboa e Porto serem epicentros da dinamização urbana e económica, são também palco dos maiores aumentos de preços e da maior tensão habitacional.
Na análise de Bruxelas, é crucial que o Estado mobilize terrenos públicos de forma sistemática para projetos habitacionais, simplifique e digitalize procedimentos de licenciamento e reforce o financiamento estrutural às autarquias, cooperativas e promotores sem fins lucrativos. Estas ações devem ser acompanhadas de mecanismos rigorosos de monitorização e sanções automáticas para municípios que não cumpram objetivos mínimos de nova oferta. É dada prioridade também à reabilitação do edificado devoluto nos centros urbanos, para aumentar rapidamente o stock acessível.
- O caso francês ilustra o impacto destas medidas: através da Lei de Solidariedade e Renovação Urbana (SRU), desde 2000, que todos os municípios com mais de 3.500 habitantes estão obrigados a garantir pelo menos 25% de habitação social até 2025. O incumprimento implica sanções financeiras pesadas e, no limite, intervenção direta do Estado. Esta abordagem permitiu a Paris e região duplicar o ritmo de construção social (mais de 70 mil casas por ano) e mobilizar terrenos públicos de forma prioritária. O caso francês assenta na combinação de incentivos financeiros, penalizações automáticas e transparência: resultados são divulgados anualmente e sujeitos a escrutínio político e social.
- Na Alemanha, o governo implementou um sistema robusto de incentivos fiscais direcionados especificamente para estimular o setor privado a construir mais habitação acessível. O programa permite aos investidores privados deduzir quase um terço dos custos de construção ao longo de quatro anos, desde que os novos apartamentos sejam arrendados por pelo menos uma década. Para evitar apoiar a construção de habitações de luxo, o incentivo fiscal limita-se a apartamentos com custos de construção inferiores a 3.000 euros por metro quadrado, com deduções máximas de 2.000 euros por metro quadrado. Este programa custou ao Estado cerca de 235 milhões de euros anuais mas gerou um impulso significativo na construção privada de habitação acessível.
Diante deste panorama, o relatório da Comissão Europeia recomenda ainda a adoção de mecanismos automáticos de penalização para concelhos que não cumpram objetivos mínimos de nova oferta acessível, replicando o modelo de accountability municipal ensaiado noutras capitais europeias.
2. Habitação pública: a eterna peça em falta
- Modelo austríaco e neerlandês: modelo não lucrativo e o papel interventivo de fundações
Portugal apresenta uma das percentagens mais baixas de habitação pública e social da Europa, com menos de 2% do parque habitacional dedicado a este fim, muito longe da média europeia, que ronda os 9%, segundo dados de um relatório da OCDE, e ainda mais longe da taxa de 20% observada na Dinamarca, Países Baixos e Áustria.
Esta fragilidade estrutural é refletida nos números do investimento: em 2024, por exemplo, apesar do reforço anunciado no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o setor público continua a disponibilizar uma oferta residual, com execução lenta das novas unidades anunciadas e resultados aquém das necessidades.
A maioria dos projetos encontra-se dispersa, sem metas vinculativas robustas nem instrumentos de monitorização centralizada, salientam vários especialistas, o que dificulta acelerar uma resposta à altura da emergência habitacional sentida sobretudo por famílias jovens, trabalhadores com salários baixos, idosos e imigrantes.
Até março, das 26 mil casas que o Governo anterior prometeu disponibilizar até 2026, apenas cerca de 2 mil (7,7%) tinham sido entregues às famílias.
A Comissão Europeia, no seu mais recente relatório, alerta que “o atual stock de habitação social e acessível é manifestamente insuficiente” — e salienta que a percentagem investida por Portugal em novas casas públicas está muito aquém das exigências do mercado nacional, especialmente nas áreas metropolitanas e insulares. Embora o Plano Nacional da Habitação preveja aumentar a oferta, os avanços continuam limitados. Até março, das 26 mil casas que o Governo anterior prometeu disponibilizar até 2026, apenas cerca de 2 mil (7,7%) tinham sido entregues às famílias, e das restantes 33 mil prometidas pelo atual Governo até 2030 (que estão fora do PRR), não havia sequer contratos fechados.
Olhando para exemplos europeus, a Áustria e os Países Baixos destacam-se por terem sistemas sólidos e inovadores no domínio da habitação pública:
- Áustria (Viena): Mais de 40% dos residentes de Viena vivem em casas “de custos controlados”, que abrangem habitação municipal e cooperativas sem fins lucrativos. O modelo assenta na fixação de rendas em função do custo real de construção e manutenção, financiamento público a longo prazo e regras rígidas que proíbem a especulação. Esta abordagem, que levou o The New York Times a classificar Viena como “uma utopia do arrendamento”, garantiu estabilidade de preços, misturas sociais consistentes e baixos níveis de exclusão habitacional. Em Viena, as listas de espera permaneceram estáveis, e as famílias beneficiárias apresentam, em média, uma taxa de esforço inferior à dos países concorrentes.
- Países Baixos: Cerca de 28% do parque habitacional pertence a “housing corporations”, fundações privadas supervisionadas pelo Estado. Estes organismos, financiados por obrigações com garantia pública e impostos sobre rendas privadas, investem continuamente na renovação e na construção de novas casas. Na última década, mais de 100 mil casas acessíveis foram construídas nestes moldes, assegurando diversidade social e reduzindo a pressão sobre o mercado privado. A regulação estatal impede a conversão deste património para outros fins e garante qualidade e manutenção.
Ambos os modelos partilham princípios de escala, sustentabilidade financeira, gestão profissionalizada e forte compromisso público. Os resultados traduzem-se em menor sobrecarga das famílias, maior inclusão social e uma oferta estável mesmo em contextos de procura crescente. Se Portugal replicasse parte desta ambição — investindo massivamente, definindo metas vinculativas e apostando em parcerias com o setor cooperativo e entidades sem fins lucrativos — seria possível inverter algum do défice estrutural de habitação pública, um dos principais nós do atual mercado imobiliário nacional.

3. Mercado dominado pela propriedade individual
- Modelo dinamarquês: cooperativas de habitação e co-housing “chave na mão”
A esmagadora maioria das famílias portuguesas vive em casa própria — cerca de 75% — o que deixa pouco espaço para tipos alternativos de acesso à habitação, como arrendamento ou propriedade coletiva. Este predomínio resulta de uma história marcada por incentivos fiscais à compra, escassez de habitação pública ou cooperativa e ausência de tradição cooperativista no setor residencial.
Esta realidade torna o sistema pouco resiliente em momentos de crise, dificulta a mobilidade das famílias e mantém a pressão sobre os preços de aquisição, já que o arrendamento permanece residual e pouco competitivo. Mas o problema não se reduz à limitação das opções de escolha.
A atual configuração do mercado potencia fenómenos de especulação imobiliária, dificulta o acesso dos jovens a uma habitação digna e perpetua disparidades entre proprietários e não proprietários. A elevada percentagem de casas ocupadas pelos próprios proprietários — uma das mais altas na Europa — não reflete necessariamente segurança ou estabilidade, mas frequentemente o sintoma de ausência de alternativas sustentáveis, especialmente para quem começa a vida adulta ou pretende mudar de cidade em busca de emprego.
Frente a este desafio, países como a Dinamarca têm apostado de forma expressiva no modelo cooperativo. Estima-se que cerca de 7% da população dinamarquesa viva num regime de habitação cooperativa (andelsbolig), e em Copenhaga esta percentagem sobe para quase um terço dos residentes. Nestes modelos, os moradores são simultaneamente coproprietários das unidades e gestores do empreendimento, beneficiando do controle no preço de transação (a venda é feita ao valor contabilístico) e partilha de serviços comuns (lavandarias, painéis solares, zonas verdes partilhadas).
Nos últimos anos, o governo dinamarquês e promotores privados passaram a apoiar o desenvolvimento de novas cooperativas “chave na mão”, o que permitiu encurtar prazos de espera e ampliar a oferta em zonas urbanas centrais.
As cooperativas garantem acesso a habitações de qualidade a preços competitivos, reduzem a especulação e promovem coesão social entre vizinhos. Nos últimos anos, o governo dinamarquês e promotores privados passaram a apoiar o desenvolvimento de novas cooperativas “chave na mão”, o que permitiu encurtar prazos de espera e ampliar a oferta em zonas urbanas centrais. Os resultados são visíveis: estabilidade nos preços, reduzida taxa de exclusão habitacional, melhor integração intergeracional e diversidade social nos bairros cooperativos. O modelo dinamarquês criou um ecossistema em que a habitação não é apenas mercadoria, mas instrumento de política social e urbana.
A Comissão Europeia tem vindo a recomendar, no contexto português, a criação de alternativas fortes à propriedade individual e ao arrendamento clássico, defendendo explicitamente a promoção de cooperativas de habitação em articulação com municípios e setor financeiro, a implementação de linhas de crédito bonificadas para projetos sem fins lucrativos e a revisão das práticas de planeamento urbano para reservar solo para estas iniciativas.
Em Portugal, experiências-piloto de co-housing, habitação partilhada e cooperativas vão surgindo, mas enfrentam dificuldades de escala, financiamento e falta de enquadramento normativo adequado.
4. Rendas em espiral e mercado pouco competitivo
- Modelo espanhol e francês: tetos dinâmicos e referência pública de preços
O mercado de arrendamento em Portugal vive num ambiente marcado pelo aumento dos preços e pela falta de competitividade, que impacta de forma crescente os orçamentos familiares. Em 2024, a renda mediana dos novos contratos atingiu 7,97 euros por metro quadrado, com Lisboa e Porto a ultrapassarem largamente esta média — na capital supera já os 15 euros por metro quadrado.
Apesar de uma ligeira desaceleração no ritmo de subida desde o início de 2025, as rendas continuam pressionadas pela escassez de oferta e pela forte procura, agravada por fenómenos como o alojamento local em zonas urbanas e turísticas.
A Comissão Europeia recomenda que Portugal avalie medidas “duradouras” para conter o aumento das rendas, incluindo a possibilidade de um controlo moderado e circunscrito de valores em zonas de maior pressão.
As alternativas, como o arrendamento acessível, têm expressão marginal e o mercado apresenta baixa diversidade tipológica, grande concentração dos proprietários institucionais e ausência de referência pública fiável de preços por zona, o que debilita o poder negocial dos inquilinos e deixa muitos vulneráveis a aumentos súbitos ou despejos.
- Em França, estes desafios foram enfrentados em 2019 com um mecanismo de controlo dinâmico de rendas (“Encadrement des Loyers”) em cidades de elevada pressão como Paris, Lyon e Lille. Este modelo fixa tetos máximos (e mínimos) por zona, tipologia e ano de construção, baseando-se numa recolha e publicitação anual de valores de referência. Proprietários que ultrapassem estes limites enfrentam coimas substanciais (até 5 mil euros por infração, atualmente). Os resultados deste programa revelam que entre 2020 e 2023 as rendas nestas cidades cresceram em média quase três pontos percentuais abaixo do valor nacional, sem verificar-se quebra significativa da oferta nem desencadeamento de fenómenos especulativos relevantes. O modelo, contudo, depende de atualização e fiscalização rigorosas, e está circunscrito a zonas de elevada pressão, de modo a não distorcer o resto do mercado.
- Espanha avançou este ano com uma nova Lei do Direito à Habitação que vai mais além, prevendo um teto para a atualização anual das rendas (3% em 2024) e permitindo, em zonas consideradas “tensionadas”, o congelamento total das rendas e a introdução de preços de referência obrigatórios para grandes proprietários. A lei inclui ainda penalizações fiscais para imóveis devolutos, o que visa aumentar a oferta no arrendamento. Se, por um lado, esta abordagem oferece alívio imediato aos inquilinos, os resultados preliminares sugerem impacto desigual. Em algumas regiões a pressão baixou, mas a eficácia plena depende da mobilização de oferta complementar e de apoios dirigidos à reabilitação de imóveis. O Governo espanhol reconhece que o controlo de rendas, isoladamente, não substitui a necessidade de fortalecer a habitação pública e acessível.
A Comissão Europeia recomenda que Portugal avalie medidas “duradouras” para conter o aumento das rendas, incluindo a possibilidade de um controlo moderado e circunscrito de valores em zonas de maior pressão, bem como limites mais rígidos ao alojamento local, defesa de mecanismos públicos de referência de preços por zona e incentivos à mobilização de imóveis devolutos. Sublinha que políticas isoladas não resolvem: regulação eficaz deve ser combinada com investimento em habitação pública e incentivos à reabilitação.
Em Portugal, os especialistas alertam para a importância de conciliar medidas de regulação de rendas com incentivos à mobilização da oferta, recomendando a criação de um índice público de rendas, a fiscalização ativa e a combinação de tetos regionais com políticas robustas de construção e reabilitação. A experiência internacional aponta para que só uma estratégia integrada pode travar a espiral de aumentos no arrendamento e criar um mercado mais equilibrado e competitivo, sem desincentivar a oferta nem penalizar os mais vulneráveis.
5. Sobrecarga financeira das famílias
- Modelo alemão e francês: subsídios dirigidos ao inquilino, não ao senhorio
O elevado peso do custo da habitação nos orçamentos familiares é um dos aspetos mais críticos da crise habitacional em Portugal. Em 2024, cerca de um em cada três arrendatários portugueses enfrenta uma taxa de esforço superior a 40%, tornando Portugal o quinto país da União Europeia com maior sobrecarga financeira no arrendamento.
Este indicador reflete o desajuste entre rendimentos e preços de mercado: a subida das rendas (crescimento anual de cerca de 10% em novos contratos) e o aumento anual de 18,7% dos preços das casas no primeiro trimestre limitam drasticamente a margem financeira dos agregados, sobretudo dos jovens, famílias monoparentais, trabalhadores precários e imigrantes recém-chegados. Além disso, o impacto desta sobrecarga vai além do esforço mensal, potenciando uma retração do consumo, impede a acumulação de poupança, adia decisões familiares e agrava situações de risco habitacional.
A resposta pública a este dilema permanece limitada. O sistema de apoios ao arrendamento acessível cobre apenas uma pequena fração dos inquilinos, com critérios pouco ajustados à heterogeneidade dos rendimentos, e os subsídios diretos à habitação não acompanham o ritmo de valorização do mercado.
Na Alemanha, uma das respostas centrais à sobrecarga do orçamento das famílias com a habitação foi o reforço e a atualização do Wohngeld Plus, um subsídio ao arrendamento canalizado diretamente para os inquilinos com dificuldades financeiras.
Além disso, a eficácia das transferências sociais (excluindo pensões) na redução do risco de pobreza em Portugal está substancialmente abaixo da média europeia — apenas 22% contra 34,4% na União Europeia — como observa a Comissão Europeia. O resultado é uma taxa de sobrecarga financeira cronicamente elevada, agravada pela escassez de habitação pública e pela insuficiência de políticas ativas de apoio ao inquilino.
- Na Alemanha, uma das respostas centrais à sobrecarga do orçamento das famílias com a habitação foi o reforço e a atualização do Wohngeld Plus, um subsídio ao arrendamento canalizado diretamente para os inquilinos com dificuldades financeiras. Em 2024, o apoio foi ampliado, cobre até 30% da renda e é ajustado à categoria do agregado e ao valor de mercado local. A reforma da medida permitiu triplicar o número de beneficiários para 1,4 milhões de lares. Dados oficiais apontam para uma redução considerável da taxa de sobrecarga, sobretudo nas cidades de município intermédio e nas regiões com pressão moderada. O sistema é digitalizado, o que garante rapidez na atribuição e revisão automática do montante com base nas variações de rendimentos ou rendas.
- Em França, o Aide Personnalisée au Logement (APL), com um orçamento de cerca de 17 mil milhões de euros para este ano, apoia cerca de 6,5 milhões de arrendatários e de compradores de primeira habitação com rendimentos baixos e médios. O montante varia consoante a renda de mercado, composição familiar e localização. Este sistema, que é um dos maiores programas de apoio à habitação da Europa, contribuiu para que, atualmente, apenas 20% dos inquilinos franceses tenham uma taxa de esforço excessiva, cerca de 10 pontos percentuais abaixo do valor registado em Portugal. O APL é reconhecido por evitar a erosão da classe média nas cidades com maior pressão, mitigando o risco de exclusão habitacional. Segundo um trabalho académico desenvolvido por Mariona Segú, este imposto sobre as casas desocupadas foi responsável por uma redução de 13% nas taxas de desocupação de imóveis nos primeiros anos de aplicação, sendo que esse impacto foi especialmente concentrado nas casas vagas de longa duração, e que maioria dos imóveis vagos foi transformado em residências primárias.
Para Portugal, a Comissão Europeia recomenda que Portugal introduza mecanismos permanentes de apoio direto ao inquilino, indexados aos rendimentos e aos preços de mercado, substituindo os modelos pontuais ou de subsídio fixo. Sugere ainda a digitalização dos processos e o cruzamento automático de dados fiscais, garantindo maior alcance, eficácia e justiça na atribuição dos apoios.

6. Casas vazias: a sombra do lado da oferta
- Modelo belga e irlandês: impostos agressivos e inventário público
Apesar do défice de casas acessíveis, há uma quantidade significativa de imóveis desocupados em Portugal. Estima-se que hajam mais 720 mil casas vazias em Portugal, a maioria com condições de habitabilidade. Segundo uma investigação de Alda Botelho Azevedo, uma em cada quatro casas construídas nos últimos 18 anos está vazia, enquanto a taxa de habitação devoluta se aproxima dos 12% do total nacional — valores particularmente expressivos em centros urbanos e zonas de emigração, mas também em cidades turísticas e litorais.
Este fenómeno reflete problemas transversais, como seja especulação à espera de mais-valias, contextos sucessórios sem desfecho, legislação permissiva e, não menos importante, falta de instrumentos eficazes para penalizar a manutenção prolongada do vazio habitacional.
A Comissão Europeia, no seu mais recente relatório sobre habitação para Portugal, salienta que o regresso ao mercado de fogos devolutos pode ser uma das vias mais imediatas para aumentar a oferta acessível e aliviar a pressão sobre os preços, defendendo “a combinação de inventário público rigoroso, penalizações fiscais automáticas e prioridade de aquisição para municípios ou entidades sociais em leilões de imóveis penalizados”.
A análise comparativa das soluções europeias para os desafios habitacionais revela que a crise portuguesa não é um fenómeno isolado, mas parte de uma pressão transversal que afeta praticamente toda a União Europeia.
Bruxelas recomenda ainda um reforço das bases de dados nacionais sobre imóveis vazios, a implementação de taxas progressivas e mecanismos de denúncia e fiscalização acessíveis ao cidadão. O contexto nacional contrasta com o avanço de países como Bélgica, Irlanda e França nesta matéria, que adotaram políticas agressivas para combater este fenómeno:
- Bélgica: O modelo belga articula penalizações fiscais municipais e regionais, incluindo taxas anuais que podem atingir 3.750 euros por casa desocupada em cidades como Leuven, aumentando automaticamente com o tempo de inatividade. Além disso, o cadastro devoluto é público, e permite que os municípios expropriem imóveis persistentes no vazio, colocando-os no mercado social.
- Irlanda: A 1 de novembro de 2022 foi lançado o Vacant Homes Tax (VHT) para casas que permanecem desocupadas por mais de 12 meses, assumindo uma taxa equivalente a três vezes a taxa predial local — atualmente o VHT, que é renovável todos os anos, assume um valor de cinco vezes a taxa local. Ainda que os resultados iniciais sejam limitados, o governo prepara-se para apertar a legislação, visando dar resposta à crítica de que o âmbito de incidência é ainda demasiado estreito.
- França: O país mantém desde 1999 uma taxa especial sobre imóveis devolutos em cidades com mais de 50 mil habitantes, agravada em zonas de maior pressão, que pode chegar a 34% do valor da renda do imóvel após vários anos desocupado. Recentemente, o imposto foi reforçado, alargando-se a mais municípios e integrando mecanismos de denúncia fácil por vizinhos ou juntas de freguesia. As receitas destas taxas financiam programas municipais de aquisição e reabilitação habitacional. Segundo um trabalho académico desenvolvido por Mariona Segú, este imposto sobre as casas desocupadas foi responsável por uma redução de 13% nas taxas de desocupação de imóveis nos primeiros anos de aplicação, sendo que esse impacto foi especialmente concentrado em casas vagas de longa duração, e que maioria desses imóveis foi foram transformado em residências primárias.
Em Portugal, a sobretaxa de IMI para imóveis devolutos ronda apenas 25% do valor base, ficando muito aquém do impacto dissuasor desejado — segundo o Código do IMI (artigo 112.º), a penalização para prédios urbanos devolutos corresponde a um aumento de 12,5 vezes a taxa de IMI fixada pelo município, o que normalmente resulta numa sobretaxa de 25% do valor base, considerando a taxa média nacional de IMI (que ronda 0,4%) e a forma de cálculo adotada.
Além disso, a inexistência de um registo nacional atualizado e de políticas consistentes de aquisição para reabilitação entrava uma resposta eficaz à crise da oferta. A experiência internacional e as recomendações da Comissão Europeia sugerem três prioridades: subir substancialmente a penalização fiscal sobre os imóveis vazios, garantir transparência através de inventários públicos e criar mecanismos automáticos de transição para uso social das casas penalizadas.
A análise comparativa das soluções europeias para os desafios habitacionais revela que a crise portuguesa não é um fenómeno isolado, mas parte de uma pressão transversal que afeta praticamente toda a União Europeia. Contudo, os modelos de resposta adotados por outros países oferecem pistas valiosas sobre os caminhos que Portugal poderá trilhar nos próximos anos.
Portugal consegue capitalizar o financiamento do da “bazuca” europeia para criar as bases de uma política habitacional estruturante, ou arrisca-se a perpetuar um ciclo de medidas pontuais que não conseguem dar resposta à crise na habitação.
A eficácia dessas experiências internacionais contrasta com a atual fragmentação das políticas nacionais, que, apesar de numerosas, carecem ainda de escala, coerência e rigor na execução. O panorama nacional está marcado por uma tensão evidente entre a ambição das medidas anunciadas e os resultados obtidos no terreno. O Programa 1.º Direito, gerido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e focado na reabilitação de edifícios e no arrendamento, tem apresentado recorrentemente uma taxa de execução baixa.
Este desempenho coloca em questão não só a capacidade institucional do país, mas também a adequação dos instrumentos criados às necessidades reais da população. Simultaneamente, a Comissão Europeia já sinalizou que está a preparar o primeiro plano europeu para a habitação acessível até à primavera de 2026, o que poderá representar uma oportunidade de realinhamento das políticas nacionais com as melhores práticas internacionais, mas também uma pressão adicional para demonstrar resultados concretos.
A experiência internacional sugere que a sustentabilidade das soluções habitacionais depende fundamentalmente da capacidade de articulação entre diferentes níveis de governação, do reforço do investimento público de longo prazo e da criação de instrumentos que efetivamente mobilizem a oferta.
Portugal encontra-se assim num ponto em que consegue capitalizar o financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência para criar as bases de uma política habitacional estruturante, ou arrisca-se a perpetuar um ciclo de medidas pontuais que não conseguem dar resposta à magnitude dos problemas identificados que têm mergulhado numa crise na habitação cada vez mais profunda.
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Seis soluções europeias para desamarrar os nós da crise na habitação em Portugal
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