A anatomia de um superavit

Se apenas se consegue equilíbrio nominal e não estrutural, com degradação de serviços públicos e investimento público em mínimos históricos, como vai ser com a economia a arrefecer e sem juros do Bdp?

Como referi na minha primeira análise ao OE2020, o Governo tem uma estimativa de superavit já em 2019, de 0.5% do PIB (se retirarmos as medidas “one-off” de 0.6 pontos percentuais (p.p.), que levam a um défice nominal de 0,1%) e um superavit de 0.6% em 2020 (se retirarmos as medidas “one-off” de 0.4 p.p., que levam a um superavit nominal de 0,2%).

Temos assim que entre 2015 e 2020 este Governo terá feito cerca de 3.6 p.p. do PIB de consolidação orçamental. Isto porque passou de um défice de 3% em 2015 para o superavit referido de 0.6% em 2020.

É positivo que, com esta conjuntura excecionalmente positiva, se atinja um superavit nominal. No entanto, este superavit já deveria ter sido alcançado antes e de uma forma diferente da que foi seguida.

O superavit deveria ter sido alcançado com menos impostos e melhores serviços públicos. Isso implicaria que o Governo tivesse tido a capacidade de fazer a reforma das Finanças Públicas. Que o Governo tivesse avançado com reformas em alguns setores como a Saúde e a Educação. E, mais importante que tudo, que tivesse tido uma política de aumento da competitividade da economia, de atração de investimento e de crescimento das exportações, que gerasse maior crescimento económico.

Mas existem várias provas de como este superavit nominal é conjuntural, frágil e pouco sustentável.

  • A primeira é questionar como foi alcançado este superavit orçamental previsto para 2020? Por um lado, 3/4 deste esforço resultou de dois efeitos: O primeiro efeito foi o aumento da carga fiscal e o segundo efeito foi a política monetária do BCE, que permitiu uma enorme poupança de juros e um aumento muito significativo dos dividendos e IRC do Banco de Portugal. Repara-se na tabela abaixo. Entre carga fiscal, dividendos e juros temos 2.7 p.p. dos tais 3.6 p.p. Adicionalmente, tivemos uma contenção do investimento público, que tem ficado sempre abaixo dos 2.3% PIB que se verificou em 2015 e uma forte degradação dos serviços públicos.

  • A segunda prova, como tenho aqui várias vezes referido, é que a redução do défice estrutural (isto é, o défice nominal sem as medidas “pontuais” e sem o efeito do ciclo económico) de 2 p.p. entre 2015 e 2020 (passou de 2% para um valor próximo de 0%), resulta, como se vê dos números atrás apresentados, dos juros e dos dividendos e IRC do Banco de Portugal.
  • A terceira prova, que aqui também tenho referido, e que para mim até é a mais evidente, é que o saldo primário estrutural (o défice estrutural sem os juros) passou de um superavit de 2.5% em 2015 para um valor de 2.8% em 2020. Ou seja, quando retiramos os juros, a componente estrutural melhora apenas 0.3 p.p. nestes 5 anos. Mais uma vez, o valor dos dividendos e IRC do Banco de Portugal.
  • A quarta prova é o próprio programa económico do PS de 2015, coordenado pelo Doutor Centeno. Nesse programa, previa-se para 2019 um défice de 1%. O Governo irá atingir um superavit, como referi atrás, de 0.5%. Além desta diferença de 1.5 p.p. do PIB, quando comparamos o que está no OE2020 para 2019 com o programa do PS, temos que em 2019 a despesa corrente primária (DCP) (despesa sem investimento e os juros) será superior ao previsto no programa do PS. No programa do PS previa-se, em 2019, uma DCP de 36% PIB e teremos este ano uma DCP de 37.3% (mais 1.3 p.p.).

Tudo somado, temos 2,8 p.p. do PIB de diferença para 2019 entre o programa do PS e a execução deste Governo.

Como foi financiado este efeito de 2.8 p.p.? Ou seja, como é que o governo aumentou a DCP em mais 1.3 p.p. e simultaneamente melhorou o saldo orçamental em 1.5 p.p. do PIB?

A tabela abaixo mostra o que sucedeu. Face ao que o Doutor Centeno tinha previsto, em 2015, para 2019, temos mais 1.2 p.p. do PIB de receita total (incluindo mais 0.3 p.p. de carga fiscal face ao previsto). E teve menos 1.1 p.p. do PIB em juros face à sua estimativa inicial. Bem como menos 0.6 p.p. em investimento.

 

Isto é, como o Doutor Centeno cobrou mais receita que o que tinha previsto, e teve bastante menos despesa com juros e cortou bastante no investimento público, pode aumentar a despesa com a máquina do Estado, ao mesmo tempo que melhorava o saldo orçamental face à sua previsão. Ou seja, em 2019 teríamos tido:

  1. Se o cenário macro e orçamental que foi desenhado em 2015 se tivesse efetivado, o défice hoje seria de 1% (a previsão do programa do PS).
  2. Se a receita, despesa com juros e investimento tivesse sido igual ao do cenário, mas com o aumento da DCP face ao previsto, teríamos um défice de 2.3% (somar ao défice de 1% o aumento da DCP de 1.3 p.p.).
    3. Se os juros não tivessem descido, o governo teria hoje um défice de 0.6% (soma do superavit de 0.5% com a redução de juros de 1.1 p.p.)

Simplificando: com a receita que arrecadou a mais (que é quase toda conjuntural e cíclica) pagou o aumento da despesa com o Estado (que é rígida e estrutural). Com a redução dos juros, os dividendos do Banco de Portugal e o corte no investimento fez a consolidação orçamental dos últimos 4 anos.

Não deixa de ser curioso comparar também com o Programa de Estabilidade apresentado em abril de 2015. Nesse documento, o Governo PSD/CDS, previa para 2019 um superavit de 0.2%. Ou seja, apesar de tudo, menos 0.3 p.p. que o que se prevê alcançar este ano. Mas, também aí a previsão da despesa com juros era mais alta e não se previa este volume de dividendos e IRC do Banco de Portugal. Se considerarmos esses efeitos, o superavit seria de quase 1%. Ou se quiserem, haveria um superavit de 0.5% sem aumento da carga fiscal e com mais investimento público.

A última prova é que os serviços públicos atingiram um nível de degradação muito elevado e que o investimento público teve de reduzir-se a nível historicamente baixos.

Se, nesta conjuntura muito favorável, apenas se consegue equilíbrio nominal e não estrutural, e para isso é preciso degradar os serviços públicos e colocar o investimento público em mínimos históricos, como vai ser quando a economia arrefecer e os efeitos sobre os juros e o Banco de Portugal desaparecerem?

Post-scriptums sobre o OE2020

[1] De 2019 para 2020 o Governo prevê assim, sem medidas “one-off”, uma melhoria do saldo em 0.1 (passa de um superavit de 0.5% para 0.6%). Mas só em redução dos juros e aumento da carga fiscal tem 0.4 p.p. Ou seja, a “margem” orçamental de 2020 é apenas em 1/4 usada para a consolidação orçamental. Há ainda quem ache que é demasiado…

[2] Este é mais um OE de muitas promessas de investimento público. No OE/2016 o governo tinha para o investimento público 2% PIB (executou 1.5%). Depois no OE/2017 prometeu 2.1% (executou 1.8%). No OE/2018 colocou a previsão de 2.2% (executou 1.9). NO OE/2019 tinha 2.3% e irá executar em torno de 1.8%. Sempre uma diferença de 600 a 800 M€. Ao todo, quase 3 mil M€ a menos nestes 4 anos. Quem acreditar que é agora, daqui a um ano não se (volte) a queixar que foi enganado.

[3] Na saúde o Governo anunciou um aumento de 900 M€ para 2020. Feitas as contas, são apenas mais 520 M€ face ao executado em 2019. Mas atenção que isto é em contabilidade pública (caixa), porque em contas nacionais não se vê praticamente nada de aumento. Ou seja, esta verba adicional é para pagar dívidas a fornecedores. É positivo, mas curto e muito longe do que foi anunciado.

[4] O Governo pediu a Bruxelas (ao comité do IVA) autorização para colocar uma taxa de IVA de 6% até um determinado nível de consumo doméstico de eletricidade, mantendo os 23% no consumo acima desse nível. Imagino que o governo espera uma resposta favorável de Bruxelas. Se assim for, o OE2020 já foi desenhado para acomodar essa medida? Se sim, então não haverá problema. Se não, o governo tem de explicar o motivo (não acredita que o seu pedido seja aceite? Quais os motivos?)

[5] Seja quem for que critique o Doutor Centeno (UTAO, CFP, FMI, Comissão Europeia ou analistas e partidos da oposição) é alvo da sua ira e desdém. Só o Doutor Centeno é que percebe de economia e de finanças públicas. Só que o que disse na entrevista ao Expresso não corresponde à verdade. Já o ano passado a UTAO o tinha referido (e levou com um comentário deselegante, dizendo o ministro que os “expertos” da UTAO são tão sabedores de contabilidade pública e de contabilidade nacional e que não sabiam isto. E depois terminou de forma pior: “mas no local próprio trataremos desse assunto”). Não é verdade que haja sempre uma discrepância entre o saldo em contabilidade pública que o Parlamento aprova e o valor que é usado para a passagem da contabilidade pública para a contabilidade nacional.

Só no OE2019 e agora no OE2020 isso sucedeu, como é visível nesta tabela. Em ambos os anos o valor é igual (590 M€). E não, não é a dotação previsional (uma dotação do Ministério das Finanças para fazer face a despesa inesperada – por exemplo, se os aumentos para a função pública forem maiores que o previsto no OE, dado que são negociados posteriormente), que para 2020 é de 330 M€ e que está nos mapas da Lei.

Dir-me-ão que é despesa que esperam não executar, evitando assim um orçamento retificativo. Se a justificação é esta, então é grave, porque o governo não cumpre a Lei de Enquadramento Orçamental. É também grave, porque quer dizer que além das cativações previstas na Lei, há mais 590 M€ de despesa cativada pelo Ministro das Finanças de acordo com a sua discricionariedade. Mas se essa despesa for executada, das duas uma: ou há receita que a compense (o leilão do 5G, que deveria ser usado para abater dívida pública vai ser usado para financiar despesa corrente?) ou então ao invés de um superavit de 0.2% teremos um défice de 0.1% em 2020.

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