A banca não vai largar as garantias pessoais

Até que enfim alguém com peso institucional diz o óbvio.

Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, afirmou ontem que, relativamente à concessão de crédito bancário, é necessária “[uma] grande alteração da cultura em matéria de avaliação do risco”, sublinhando que onde hoje existe um sistema que está sobretudo “[assente] nas garantias patrimoniais ou garantias pessoais” dever-se-ia evoluir para um outro que valorizasse “o modelo de negócio, o business plan e quais os objectivos da empresa”. Aleluia. Até que enfim alguém com peso institucional diz o óbvio.

Não é que não tenha havido quem já o tivesse afirmado antes. Eu certamente já o afirmei em diversas ocasiões, e outros antes e depois de mim fizeram igual. Mas dito pelo governador do Banco de Portugal, o principal regulador da banca no nosso País, a coisa ganha outro impacto e outra relevância. Mais: fica na agenda. Porém, do mesmo modo que só posso aplaudir a constatação oficial do óbvio, não posso deixar de questionar outra coisa igualmente óbvia: não será o Banco de Portugal a entidade que melhor poderá contribuir para alterar este estado de coisas? Na minha opinião, é sim. A colocação do problema na agenda pública foi, sem dúvida, um passo importante, mas foi ainda um pequeno e tímido passo. E se as palavras do governador não forem agora acompanhadas de acção, as suas palavras não terão passado de mera retórica. De palavras inconsequentes. Logo veremos.

Segundo dados do mais recente boletim estatístico do Banco de Portugal (p.145), do total de empréstimos bancários realizados a sociedades não financeiras em Portugal, 35% dos empréstimos estão associados a dois ou mais tipos de garantias e 41,5% estão associados a uma só garantia. No caso dos empréstimos protegidos por duas ou mais garantias, em mais de 70% dos casos coexistem nas operações de crédito garantias reais e garantias pessoais. Já nos empréstimos protegidos por uma só garantia, as garantias reais representam 32% das situações, enquanto que as garantias pessoais respondem por 53,5% das operações. Em ambas as modalidades, duas ou mais garantias ou uma só garantia, as garantias financeiras são as menos utilizadas. Ao invés, as garantias pessoais são aquelas que globalmente são mais utilizadas. Quanto à duração dos empréstimos, a informação do boletim estatístico não permite apurar a sua maturidade média. Porém, o mesmo boletim indica-nos que, de um total de 76 mil milhões de euros de crédito concedido a sociedades não financeiras, quase 70% do total tem maturidade compreendida entre 1 e 20 anos, mas apenas 11% daquele total vencerá dentro de um ano. Ou seja, os dados parecem sugerir uma maturidade média relativamente longa.

Há algum tempo que tento coligir dados sobre a difusão e utilização de garantias pessoais em operações de crédito a empresas. Não é fácil porque os dados são esparsos. Mas da evidência recolhida até agora, que também agradeço a outros colegas economistas por agora anónimos, a utilização de garantias pessoais em empréstimos a empresas parece ser mais intensa em Portugal do que em Espanha ou na Irlanda – para citar dois exemplos. Trata-se, creio eu, de uma análise importantíssima, pois dela decorrem várias consequências para a economia de um país. Em primeiro lugar, o incentivo dado à capitalização das empresas. Porque se eu souber que, independentemente do projecto a financiar e do nível de capital exibido pela empresa, o banco me irá pedir uma garantia pessoal, estará criado o incentivo para que eu restrinja a autonomia financeira da minha empresa ao mínimo possível. Este incentivo é duplamente negativo, na medida em que as possibilidades de investimento e, por conseguinte, de crescimento da empresa ficam prejudicadas logo à partida. Em segundo lugar, a perversão do aval pessoal tem como resultado principal a improbabilidade de reorientar capital de sectores menos produtivos para outros mais promissores. Isto decorre do facto de que, uma vez dado um aval pessoal sobre um crédito empresarial, o desinvestimento e as perdas de capital decorrentes de um eventual insucesso empresarial deixam de estar limitadas à insolvência da empresa; a insolvência pessoal passa a ser a verdadeira fronteira. Quando isto sucede, a experiência indica que o empresário tenderá a ficar fora de jogo e para sempre – todos perdem, ninguém ganha e o insucesso passa a ser estigmatizado. É bom de ver que neste ambiente cultural, não há cultura de empreendedorismo que resista.

A prática da garantia pessoal está hoje institucionalizada em Portugal. É prática corrente dos bancos. De todos os bancos, ao que julgo saber. Há quem defenda que sem garantias pessoais a concessão de crédito às empresas cairia dramaticamente. A verdade é que essa lógica subverte a lógica natural do financiamento; este justifica-se pelo valor económico dos projectos a financiar, pelos fluxos de caixa que são libertados a fim de servir o custo da dívida e remunerar os demais “stakeholders”, mas não devido à valia patrimonial e pessoal dos sócios promotores. Na realidade, a exigência de garantias pessoais, sobretudo quando associadas a créditos de médio e longo prazo, impede a assunção de um adequado nível de risco empresarial pela simples razão de que poucos promotores quererão correr o risco de tudo perder caso o negócio da empresa corra mal. E como as estatísticas atestam todos os negócios têm ciclos. Todavia, sem uma adequada assunção de risco (e de investimento) também não se gera o retorno que permita justificar o prémio de risco associado à actividade empresarial (excluindo, naturalmente, o caso dos negócios batoteiros e rentistas). Assim, ao restringir-se o potencial de crescimento das empresas, restringe-se também o potencial de crescimento da economia.

Este efeito é tanto maior no caso de países como Portugal, onde a atomização empresarial e a difusão de microempresas constituem, em si mesmas, obstáculos ao desenvolvimento económico. E, de facto, a evidência de outros países sugere que é precisamente ao ganharem dimensão, sobretudo na transição para a média dimensão (50 trabalhadores ou mais), que as empresas se libertam do jugo da garantia pessoal.

Para terminar, quero deixar bem claro que não há da minha parte qualquer oposição à exigência de uma garantia real a constituir sobre o activo empresarial que se está a financiar. Bem pelo contrário – a garantia real faz todo o sentido e mal do banco que dela abdique. Porém, o mesmo não se aplica às garantias pessoais, relativamente às quais a prática vigente é perversa. Mas infelizmente, do que vou observando, não acredito que o “modus operandi” dos bancos se altere sem uma mudança clara dos incentivos, a começar na regulação dos chamados “risk weighted assets”. Desta forma, na ausência de um regulador que penalize severamente os bancos que condicionem o financiamento às empresas à prestação de garantias pessoais, só resta a bomba atómica: proibir a utilização de avales pessoais em operações de crédito a sociedades de responsabilidade limitada.

De resto, é de sublinhar que foi precisamente para limitar a responsabilidade do empresário ao capital da empresa que se fizeram as sociedades de responsabilidade limitada. Que o Banco de Portugal, embora tardiamente, tenha despertado para esta problemática só pode ser apontado como positivo. Resta agora saber o que fará o senhor governador a fim de tornar consequentes as suas palavras. Cá estaremos para ver.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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