A Caixa é do povo, não é de Washington nem de Moscovo

As “guerras” da CGD são apenas ideológicas e políticas, à procura do “sound bite”. Se houvesse genuina preocupação com o acesso das populações a serviços bancários já alguma coisa tinha sido feita.

Se fosse um dos cerca de 1.300 habitantes da vila de Almeida provavelmente também protestaria contra o encerramento do balcão local da Caixa Geral de Depósitos.

E não se trata sequer da lógica — compreensível mas insustentável — de cada um de nós gostar de ter na sua rua todos os serviços básicos: uma estação dos correios, uma repartição de Finanças, um hospital muito bem equipado, um tribunal, escolas dos vários ciclos, paragem de autocarro e, claro, o balcão de um banco.

A questão é que nos últimos meses os habitantes de Almeida, de cada vez que ligavam a televisão ou viam notícias online, ouviam uns senhores em Lisboa a falar da importância de ter a Caixa como banco público e de como isso faz diferença nos serviços que se prestam aos clientes. E agora, depois de toda essa conversa, encerram o balcão do banco a quem confiam as poupanças, através do qual recebem as reformas, as transferências dos familiares emigrados, fazem os pagamentos da água e da luz e, não menos importante, pagam os seus impostos.

Eles, os que mandam, até fizeram um peditório compulsivo de 5 mil milhões de euros a todos os contribuintes para manterem a Caixa a funcionar devidamente e decidiram ir à concorrência contratar novos gestores pagos a preços de mercado. Tudo para garantir que o banco do Estado sobrevive e pode desempenhar devidamente a sua função.

A sua função? Mas que função? Este é o surrealismo de tudo isto. Além da titularidade do capital, não se conhece o que distingue a Caixa dos restantes bancos. O seu carácter supostamente distintivo de “banco público” ou de “banco do Estado” não tem qualquer expressão nos serviços que são prestados pela Caixa. Não há nada que a Caixa faça que a concorrência não faça também em condições e preços semelhantes.

Minto. Durante algum tempo, na década passada, nos consulados que incluíram Armando Vara e Francisco Bandeira, a Caixa tinha um sistema “Via Verde” para empréstimos e participações em empresas e projectos amigos do regime, muitos deles ruinosos. Não há responsáveis indiciados mas sabe-se que a conta ascende a alguns milhares de milhões. Mas para além desta nobre missão, que se espera tenha ficado bem enterrada no passado, não se conhece outra que distinga a Caixa dos seus pares.

Claro que o cidadão contribuinte a quem acabaram de ir ao bolso para pagar o “buraco” da Caixa no meio de juras sobre a diferença que é ter um banco público só pode irritar-se com a hipocrisia de quem, logo a seguir, permite que se feche o balcão da terra.

É óbvio que a forma como são prestados os serviços bancários e os clientes a eles acedem está em profunda e rápida mudança e que a necessidade de redes de balcões mais capilares é hoje muito menor do que há 20 ou 30 anos. E também é verdade que, ao longo dos últimos anos, a própria Caixa foi fechando dezenas de balcões em todo o país, tal como a generalidade dos bancos. Nada disso levantou polémica, não houve protestos de populações — o que não significa que esses encerramentos não tenham transtornado a vida a muitos clientes. Pois claro que não: o assunto não se discutiu na Assembleia da República e não houve políticos a utilizar a Caixa como “bandeira” ideológica. Basicamente, não se fez demagogia com o assunto. E a demagogia é, muitas vezes, mais irritante do que as decisões duras quando estas são assumidas com frontalidade.

A questão dos serviços bancários é importante e, numa população envelhecida como a nossa, não podemos exigir que a partir de amanhã toda a população passe a aceder à sua conta através do netbanco e das apps dos smartphones.

Se as “guerras” em torno da Caixa não fossem apenas isso, “guerras” ideológicas e políticas para tentar marcar pontos com o “sound bite” que as televisões hão-de passar à exaustão, e se a generalidade dos responsáveis políticos estivesse, de facto, preocupada com o acesso das populações a serviços mínimos, de certo que já alguma coisa teria sido feita.

É que, nos longos milénios que leva de existência, a humanidade já conseguiu desenvolver mecanismos que são utilizados para acautelar serviços de interesse público como este.

É o que acontece, por exemplo, no fornecimento de energia e de telecomunicações. Os legisladores definiram padrões de serviço mínimo universal a que qualquer cidadão pode aceder. E há empresas que têm a obrigação contratualizada de o prestar de forma obrigatória.

Há uma aldeia com cinco famílias num vale recondido da Serra do Açor? O grupo EDP tem a obrigação de levar lá a electricidade e mantê-la a funcionar.

Quer um telefone fixo em casa? A NOS é a empresa obrigada a prestar esse serviço universal.

Os decisores políticos consideram — e bem — essencial que continue a haver uma rede pública de cabines telefónicas e de serviços de lista telefónica? A MEO é a empresa com quem o Estado contratualizou esse serviço.

Não é necessário reinventar a roda pela enésima vez. Basta definir um padrão de serviços bancários mínimos universais — onde deve haver agências que numa lógica estritamente financeira de cada banco não se justifiquem? Que serviços devem prestar essas agências? — e contratualizá-los com um banco. Com a Caixa, se preferirem. Ou então abrir um concurso público, como mandam as boas práticas, para ver quem o pode prestar de forma mais eficiente. O Estado paga por esse serviço e garante que, dentro dos mínimos decididos pelo legislador, ninguém fica sem acesso a um balcão bancário. E o Banco de Portugal pode até ficar responsável por assegurar que isto funciona, como acontece nos outros mercados em que a questão é vigiada pelo regulador.

É claro que esta forma de resolver o assunto é menos vistosa para o espectáculo político. Deixa de haver polémicas estéreis, deixa de haver populações em protesto, deixam de poder ser esgrimidos argumentos que depois nunca têm uma consequência prática. E, sobretudo, deixa de haver falta de transparência e de arbitrariedade nas decisões. Parece que Almeida vai ter um posto móvel da Caixa porque houve protestos. Provavelmente, outros locais até precisavam mais — Almeida, mesmo sem a Caixa, continuará a ter balcões de outros bancos — mas os protestos não foram audíveis. A ambiguidade e falta de regras são más para toda a gente, a começar pelas administrações da Caixa, só servem a pequena política.

Se queremos mesmo resolver os problemas reais do povo há mecanismos para isso. Se preferirmos continuar a rasgar as vestes só para um combate ideológico que, no fim do dia, não resolve os problemas das populações, é deixar ficar tudo como está.

Sim, a Caixa é do Estado. Para quê concretamente, alguém sabe responder?

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