A economia da empatia

Assim como a principal vantagem das máquinas é não serem pessoas – não se fatigam, não erram, não se irritam, não reivindicam - , a principal vantagem das pessoas é não serem máquinas.

Ao cabo das três primeiras revoluções industriais, as máquinas foram-se substituindo aos humanos na execução de um espectro cada vez mais alargado de tarefas. Primeiro, as que requeriam maior dispêndio de força bruta, mais tarde, aquelas que exigiam destreza manual e, recentemente, as relacionadas com atividades de cariz cognitivo. O padrão é claro: a passagem do tempo traz tecnologias capazes de replicar valências humanas cada vez mais sofisticadas.

Acontece que a cada instância em que o Homem foi substituído pela máquina as economias tornaram-se mais eficientes e a prosperidade das sociedades aumentou. Ainda que os custos e os benefícios de cada revolução industrial não se tenham distribuído de forma homogénea pela população, é inegável o seu efeito potenciador na qualidade de vida de todos os estratos sociais.
Mas eis que entra a quarta revolução industrial, com tecnologias como a inteligência artificial, e imediatamente sobrevém a questão de saber se sobrará alguma coisa para as pessoas fazerem no futuro.

As tarefas que as máquinas começam a estar habilitadas a desempenhar invadem já os domínios da análise e interpretação da informação e, crucialmente, da resolução de problemas. Acresce que, num radical rompimento com o passado, as máquinas já não precisam que os humanos lhes forneçam a informação, pois as primeiras já veem, ouvem e aprendem melhor e mais rápido do que os segundos.

Aplicações como o Facebook têm a capacidade de reconhecer os contornos faciais milhares de milhões de pessoas, enquanto os dispositivos que equipam os veículos autónomos não só monitoram em tempo real o espaço circundante, como também conseguem “ver” o que se passa em localizações remotas consideradas relevantes na otimização da rota para o destino pretendido.

Os assistentes digitais da Google (Google Home), Amazon (Alexa) ou Apple (Siri) exibem uma elevada capacidade de reconhecimento de discurso, que alavancam com as imensas bases de dados existentes no ciberespaço para melhor compreender e satisfazer as necessidades dos seus interlocutores humanos.

Mas a transformação mais determinante consiste no extraordinário potencial de aprendizagem das máquinas, que dotadas de “vontade própria” incutida por mecanismos de incentivo e de um enorme poder de processamento, levam a cabo buscas incessantes – porque não se cansam nem frustram – às respostas certas para os variados problemas. O exemplo paradigmático deste fenómeno é a história do programa de inteligência artificial para jogar xadrez da Google: AlphaZero.

Este algoritmo, que de xadrez só sabia as regras básicas, após jogar milhões de vezes contra si próprio e aprender a partir dos seus próprios erros, em apenas 4 horas, autoeducou-se com a proficiência suficiente para bater o então campeão absoluto de xadrez (outro algoritmo), o qual tinha na sua base de dados todas as posições e sequências jogadas pelos campeões anteriores (humanos e digitais).

Esta história, que pode parecer trivial, na verdade é reveladora de uma radical alteração paradigmática. Isto porque, enquanto o algoritmo vencido detinha toda a informação relevante sobre xadrez, o AlphaZero não detinha nenhuma, mas isso não o impediu de, em escassas horas, gerar conhecimento que facilmente superou o que os humanos tinham acumulado ao longo de séculos.

A disseminação universal destas tecnologias começa agora a dar os primeiros passos, porém, o seu impacto já é notório em quadrantes da atividade económica outrora reservados a certas elites profissionais.

No mundo financeiro, grande parte dos volumes transacionados nos mercados bolsistas e cambial é efetuado por computadores e no domínio dos serviços bancários, as fintechs e as bigtechs já dam cartas. Na medicina assiste-se a uma crescente prevalência da robotização de procedimentos cirúrgicos, bem como ao aumento da fiabilidade dos diagnósticos feitos por algoritmos. Evolução semelhante se passa ao nível do aconselhamento jurídico, o que poderá ajudar a explicar o facto do número de advogados nos EUA estar a estagnar, interrompendo uma tendência secular de forte crescimento.

Neste novíssimo contexto, o que podemos esperar do futuro?

As máquinas conquistaram a primazia na resolução de problemas, mas são as pessoas que definem as tarefas a executar e os desafios a resolver. E esses serão tantos quantos permitir a imaginação, que (ainda?) é uma faculdade fora do alcance das máquinas.

O exclusivo humano no uso da imaginação permite conceber toda uma panóplia de atividades que consubstanciarão as profissões do futuro. Esta é a tese exposta por Andy Haldane, economista-chefe do Banco de Inglaterra, num discurso sobre a economia criativa. Para Haldane, a revolução tecnológica em curso não será diferente das que lhe precederam, em que a destruição, por obsolescência, de certo tipo de ofícios dá lugar a outros, que com custos limitados de transição, se vão articulando harmoniosamente com o paradigma tecnológico emergente.

Tal visão, que não é de todo original, contempla um mundo futuro pródigo em profissões ligadas a atividades criativas, como a conceção de algoritmos, o design industrial ou as artes. Porém, se é bem provável que o número de pessoas com este tipo de ocupações aumente, considerar que a grande maioria dos indivíduos exercerá atividades desta índole soa algo otimista, senão mesmo utópico.

Por contraposição, Yuval Noah Harari, o célebre historiador israelita, tem uma visão distópica do futuro, que apresenta num artigo intitulado Why technology favors tyranny. O seu argumento assenta na previsão de que um dia as tecnologias de inteligência artificial irão superar as capacidades cognitivas das pessoas, votando-as a uma inexorável irrelevância económica, que a prazo se transformará em política. Daí à morte da democracia será, segundo Harari, um pequeno passo.

Neste cenário, o poder cairia nas mãos das elites detentoras das máquinas e do software que as alimenta. Os direitos políticos diluir-se-iam. A liberdade sucumbiria.

Mas o destino não tem que ser assim e provavelmente assim não será. Por muito que as máquinas consigam vir a fazer, nunca serão seres humanos, pelo que não conseguirão satisfazer a mais incontornável das necessidades do Homem, que é a interação entre as pessoas.

O diagnóstico das doenças pode vir a ser feito exclusivamente por algoritmos, mas os doentes quererão continuar a queixar-se a um especialista humano, do mesmo modo que uma vítima de violência desejará ser ouvida por um advogado de carne e osso, ainda que toda a tramitação processual seja executada por um computador. O mesmo se passará com muitas outras atividades económicas, o que garantirá empregos abundantes mesmo em setores em que a inteligência artificial se revele produtiva.

Por outro lado, o extraordinário aumento da produtividade que a quarta revolução industrial aportará, designadamente por via dos desenvolvimentos nos campos da robótica e da impressão 3-D, permitirá a redução dramática do custo dos bens. Essa circunstância deverá gerar uma explosão da procura por serviços de interação individual, relacionados com o corpo e com a mente, em que a empatia será o ingrediente fundamental. O potencial empregador que estas atividades encerram é vasto.

Da forma como encaro este tema, a questão fundamental é a seguinte. Assim como a principal vantagem das máquinas é não serem pessoas – não se fatigam, não erram, não se irritam, não reivindicam – a principal vantagem das pessoas é não serem máquinas.

Ninguém pode adivinhar o futuro, mas a trivialização da produção dos bens materiais que a crescente sofisticação tecnológica possibilita, favorece:

  • A deslocação do enfoque da ação humana das coisas para as pessoas e…
  • …a movimentação do centro gravítico da economia da produtividade para a empatia.

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