A Estupidez Nacionalista

Os recuos e avanços de Trump, uma nova era, a do recuo no livre comércio e pelo encerramento de fronteiras. E de Angola, com uma hipocrisia muito própria, mergulhamos no espanto geral.

Trump trouxe os nacionalismos, condenou o multilateralismo ao papel de finados e assinou o fim da globalização, uma era de esplendor que tinha começado três décadas antes com a derrocada da União Soviética. Três anos depois de tomar posse e lançar uma guerra comercial com a China e fecha um acordo comercial. Significa que perdeu? Não, pelo contrário!

  1. Nos meses subsequentes à queda do Muro de Berlim, perguntaram a Milan Kundera o que achava sobre o fim do império soviético e toda aquela máquina estatal infernal que tinha subjugado e obliterado os países de Leste durante anos a fio. O escritor respondeu com desalento: a estupidez ideológica foi substituída pela estupidez comercial! Referia-se ao consumismo desenfreado, à voragem dos lucros que nos guiou para a crise financeira de 2008 e a uma cupidez que fez brilhar um punhado de novos ricos em detrimento de valores como a cultura ou a educação. Vem isto a propósito de Trump e o acordo fechado com a China, que deixa a economia mundial a respirar de alívio e assenta numa nova estupidez: aquela tem ganho alento por todo o mundo civilizado. A nacionalista.
  2. As duas maiores economias do Mundo assinaram uma primeira fase de acordo que suspende meses de guerra comercial, tarifas, imposições alfandegárias e restrições tecnológicas. Uma fricção mais prejudicial ao crescimento chinês que à dinâmica americana, provam os números. Trump prometera equilibrar a relação com a China, mergulhada num enorme abismo comercial: um défice de 400 mil milhões dólares que na narrativa anti-globalização extinguiu o trabalho e a criatividade de dezenas de milhões de americanos do rust belt. No fundo, toda aquela faixa industrial esquecida, que vai da Virgínia ao Ohio, e que lhe deu a vitória nas eleições: classes médias baixas, pouco qualificadas e impotentes perante a deslocalização dos seus trabalhos e das fábricas onde cresceram para o sueste asiático ou, simplesmente, para o México.
  3. O que significa este acordo? Uma nova paridade e previsibilidade comercial entre os dois gigantes. A China compromete-se a comprar 200 mil milhões de dólares na economia americana e os Estados Unidos retiram a China da lista dos países manipuladores de moeda. Por resolver estão ainda dois aspetos fundamentais: pirataria informática e comercial, com o roubo cibernético de patentes e a utilização de subsídios industriais que têm atribuído competitividade ao tecido empresarial chinês. Mas as tarifas passam a estáveis, com a promessa de não escalar, e o mundo pode descontrair até ao próximo capítulo duma lógica cada vez mais unilateral, marcada pelo recuo no livre comércio e pelo encerramento de fronteiras.
  4. Não por acaso em Davos, tanto como as preocupações ambientais, os receios para o futuro da nata capitalista centra-se nos ataques cibernéticos. A história de Jeff Bezos, o fundador da Amazon, levanta o véu sobre o tipo de riscos que corremos: trocou o número de telefone com o príncipe saudita num jantar de angariação de investidores, em Nova Iorque. O problema é que o jornalista Jamal Khashoggi, desmembrado uns meses depois na embaixada saudita em Istambul, escrevia no Washington Post – propriedade de Bezos – onde apresentava Mohammed Bin Salman como um líder autocrata. Bezos foi pressionado pelas autoridades sauditas, mas resistiu a manter o colunista. Agora, diz ter provas que um inocente vídeo, que lhe foi enviado pelo chefe de estado saudita via whatsapp, desencadeou um massivo assalto no seu celular, numa extração crescente de informação que durou meses. A evidência? Aos tablóides americanos foram entregues mensagens e fotos que comprometiam Bezos numa aventura fora do casamento. O que obrigou o dono da Amazon ao divórcio mais caro da história. Sofisticação e ausência de escrúpulos: bem-vindos ao admirável mundo cibernético.
  5. Fizemos fila para conhecer um general em Angola, daqueles que fosse capaz de abrir portas e fazer fluir o dinheiro. Desfizemo-nos em elogios quanto ao rasgo e à visão empresarial de Isabel dos Santos. Nunca demos muita importância às denúncias que Rafael Marques ou José Eduardo Agualusa foram fazendo anos a fio. De repente, com uma hipocrisia muito própria, mergulhamos no espanto geral, chocados pela certeza de que aquilo que era uma oportunidade para receber capital e tapar desvarios orçamentais ou de gestão muito portugueses, tinha uma génese cleptocrata. No fundo, que o dinheiro que nos salvou na crise financeira era produto de um saque ao povo angolano, feito de forma institucionalizada. Sistematizada. Essa é a parte da história que desprezo. A que me indigna, é como é que reguladores como o Banco de Portugal ou a CMVM permitiram que tudo se passasse sem levantar um dedo, uma suspeita. Reguladores desses não precisamos. Bastam as nossas vistas largas e a nossa coluna flexível.
  • Jornalista. Subdiretor de Informação da TVI

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