A fleuma e a “canalha”

Numa semana em que os dois países foram a eleições, enquanto no “Reino Unido do Brexit” prevaleceu a fleuma e a moderação, na “França da UE” foi a “canalha” que venceu.

O contraste entre as eleições britânicas e as francesas mostrou que continuamos a não querer aprender com a História e que falsas ilusões continuam a manipular as sociedades europeias. Numa semana em que os dois países foram a eleições, enquanto no “Reino Unido do Brexit” prevaleceu a fleuma e a moderação, na “França da UE” foi a “canalha” que venceu.

Como Tocqueville explicou, enquanto em Inglaterra os teóricos e os decisores do Iluminismo estiveram próximos e cooperaram entre si em prol da estabilidade e da moderação, em França os teóricos e os governantes estavam em polos opostos, e a consequência foi que os princípios gerais com que os “philosophes” franceses quiseram condicionar a acção governativa tinham pouca ligação com a realidade prática das necessidades de cada momento e resultaram numa catástrofe que ainda hoje tem consequências.

A fleuma e a moderação

Os britânicos votaram e houve uma transicção pacifica entre governos e entre partidos no poder. Independentemente do que possamos pensar sobre as políticas que o novo governo britânico vai implementar, e eu não sou certamente dos mais optimistas a esse respeito, o novo governo tem uma maioria estável para poder decidir durante os próximos 5 anos.

É verdade que os trabalhistas alcançaram uma grande maioria com 64% dos deputados e apenas 34% dos votos, menos votantes do que os recebido com o radical Corbyn e a menor maioria verificada no Reino Unido desde 1800. Por isso a vitória não foi por mérito próprio, mas pela divisão do voto conservador e pela recusa de um novo governo “tory” (que somados ao Reform totalizaram 38% dos votos). Mas não deixa de ser um resultado notável, especialmente se pensarmos que em 2019 os trabalhistas tinham tido o pior resultado desde 1935.

"O que é de destacar é que o “labour” ganhou com um discurso moderado e depois de ter afastado os mais radicais da sua direcção. E o primeiro-ministro britânico vai continuar a ir semanalmente ao parlamento e os deputados à sua jurisdição prestar contas ao povo que os elegeu e não a quaisquer “bem pensantes” (de Londres ou do resto da Europa).”

O que é de destacar é que o “labour” ganhou com um discurso moderado e depois de ter afastado os mais radicais da sua direcção. E o primeiro-ministro britânico vai continuar a ir semanalmente ao parlamento e os deputados à sua jurisdição prestar contas ao povo que os elegeu e não a quaisquer “bem pensantes” (de Londres ou do resto da Europa).

O contraste com França não poderia ser maior. Enquanto o iluminismo britânico assumiu as imperfeições humanas para juntar a democracia e a liberdade ao conhecimento científico e à compaixão social, enquadrados por um sistema eleitoral que contém os extremismos na acção governativa, os filósofos franceses buscaram princípios abstractos para atingir a perfeição, a receita ideal para promover e justificar o fanatismo extremado da “canaille” (a forma como os “philosophes” – Voltaire, Diderot, d’Alembert e outros – se referiam ao povo francês).

A vitória da “canalha”

Os resultados das eleições em França mostram a vitória da “canalha”. A extrema-esquerda e a extrema-direita somadas elegeram 57% dos deputados e foram os dois agrupamentos mais votados. A leitura imediata – sabendo que em França é o presidente quem tem mais poder – é que seriam da “canalha” os dois candidatos numa segunda volta de eleições presidenciais.

Esta situação não é nova em França e recorda a herança deixada pelo Iluminismo. Os princípios abstractos que naquele país serviram de referência para a “liberdade, igualdade e fraternidade” distinguiram-se especialmente por três características pouco abonatórias: na fraternidade, o anti-religioso, designadamente o anti-cristianismo e, mais ainda, o anti-semitismo; na liberdade, a desvalorização da pessoa e o elogio da suposta liberdade colectiva assente na razão de um déspota iluminado e da “vontade geral”; e na igualdade, o pedantismo e a arrogância dos “philosophes”, que se achavam superiores a toda a “canalha”.

"Os princípios abstractos que naquele país serviram de referência para a “liberdade, igualdade e fraternidade” distinguiram-se especialmente por três características pouco abonatórias: na fraternidade, o anti-religioso, designadamente o anti-cristianismo e, mais ainda, o anti-semitismo; na liberdade, a desvalorização da pessoa e o elogio da suposta liberdade colectiva assente na razão de um déspota iluminado e da “vontade geral”; e na igualdade, o pedantismo e a arrogância dos “philosophes”, que se achavam superiores a toda a “canalha”.”

Os princípios abstractos “nasceram” na “Encyclopédie” de d’Alembert e Diderot, que reuniu textos de várias dezenas de autores e cujo pretensiosismo ficou registado na sua ambição de “… reunir todos os conhecimentos dispersos pelo mundo; expor o seu sistema geral aos homens com quem vivemos e transmiti-lo aos homens que virão depois de nós; que … tornando-se mais instruídos, se tornem ao mesmo tempo mais virtuosos e mais felizes, e que não morramos sem ter merecido o bem do género humano”.

Os “philosophes” viam-se como deuses que pretendiam substituir a religião, o seu grande inimigo, pela razão. O anti-cristianismo estava presente em todos eles e a razão era o meio para o atingir e para o substituir como um novo dogma. Não era apenas a Igreja Católica, era a religião em si mesma que deveria ser abolida. Para Diderot, a moralidade era independente da religião, pelo que a razão tornaria as crenças religiosas desnecessárias.

O seu radicalismo incluía os judeus que, segundo Voltaire, eram “materialistas, gananciosos, incivilizados e … usurários”, tendo por isso merecido a expulsão de Espanha. “Eu não ficaria minimamente surpreendido se este povo não viesse um dia a tornar-se uma ameaça para a raça humana… Vós ultrapassastes todas as nações em fábulas impertinentes, em má conduta e em barbarismo. Merecem ser castigados, pois é esse o vosso destino”.

Esta dupla visão utópica e rancorosa, que foi a que na noite das eleições se manifestou em França, era a base do seu desprezo pelo povo: “desconfiai do juízo da multidão em matéria de raciocínio …; a sua voz é a da maldade, da estupidez, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito… a multidão é ignorante … desconfiai dela em matéria de moral”, escreveu Diderot. “Imbecis” em assuntos de religião “demasiado idiotas – bestiais – demasiado miseráveis” para se esclarecerem. Nunca mudariam: “a quantidade de ‘canaille’ é … sempre a mesma”.

Era também esta dupla visão que os “philosophes” usaram para justificar a liberdade, um princípio abstracto que se aplicava essencialmente à religião. Os filósofos franceses menosprezaram as instituições que permitiam a liberdade pessoal com o argumento de que não constituíam um princípio geral. Por isso recusaram e criticaram a separação de poderes no “Espírito das Leis” de Montesquieu, que não por acaso foi desenvolvida pela influência de Locke e da democracia britânica durante a sua estadia no Reino Unido.

Em vez disso, o Iluminismo francês caracterizou-se pelo elogio ao “déspota iluminado” absolutista (Luís XIV) porque dominou a aristocracia que poderia colocar limites ao seu poder, e à “vontade geral” que ele representava e que se impunha à liberdade pessoal. Os limites aceitáveis eram apenas os que condicionavam a liberdade da “canalha” e da sua ignorância, e esse era o único papel (temporariamente) aceitável para a religião.

O pedantismo filosófico e o sentimento de superioridade intelectual francês não poderiam ser mais contrastantes com a humildade dos pensadores britânicos e as virtudes que procuravam enaltecer. Para eles, o povo britânico não era uma “canalha”, era constituído por homens que eram imperfeitos, mas possuíam um sentido moral e um senso comum inato.

A tentativa de perfeição na “Encyclopédie” baseada em princípios abstractos e na razão, que remete para o ideal platónico da ditadura dos filósofos, saiu muito cara aos franceses poucos anos depois de ter sido concluída, tendo servido de motivação para a barbárie que foi a Revolução Francesa há 200 anos e servindo ainda hoje para inspirar os que saíram para a rua para causar distúrbios, partir montras e atacar inocentes.

Por coincidência, as eleições francesas decorreram na mesma altura em que alguns comemoram um dos seus episódios mais bárbaros, a tomada da Bastilha, quando a “canalha” bebeu sangue de mortos e pendurou cabeças de inocentes em paus para as poder passear na rua. Nas eleições desta semana a “canalha” voltou a falar, não para “guilhotinar” inocentes ou afogá-los em lagos, mas para protestar contra dirigentes “iluminados” (representados por Macron, que assim se assumiu simbolicamente na sua tomada de posse em Versalhes).

As “luzes” nunca trouxeram a razão às “trevas” – outra herança dos filósofos franceses que ainda hoje erradamente se ensina nas escolas – que supostamente assolavam a Europa desde a Idade Média. O que se passou na Revolução Francesa é a mesma barbárie que pode acontecer com a “canalha” que agora saiu à rua para comemorar uma pretensa vitória nas eleições.

Tal como em 1793, quando o Rei foi condenado à morte, os extremistas dominam o parlamento francês. Foram estes radicais, as suas utopias e os seus ódios que ameaçaram o bem estar da Europa continental no passado e que o voltam a fazer hoje. O contraste com a moderação do “Reino Unido do Brexit” não podia ser maior.

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