A fórmula da mediocridade

Num tempo em que o que fica por esclarecer alimenta a desconfiança nas instituições democráticas, a democracia saudável periga às mãos de um Governo e dos partidos que o suportam.

São muitas. São demasiadas as sucessivas “facadinhas” na democracia portuguesa. Sai-se do ano velho e entra-se no novo, e o assunto de conversa é o escândalo do processo de seleção do procurador europeu. Mas este facto não nos deve surpreender. Quantos casos mal explicados pairam há cinco anos na nebulosa do poder socialista, sempre com a cobertura do moralismo bloquista e anuência comunista?

A lista não é decerto exaustiva mas manifestamente longa, grave e mediática: FamilyGate, Tancos, golas anti-fumo (caso aliás investigado pela Procuradora preterida no concurso para a Procuradoria Europeia), substituição da Procuradora Geral da República, veto de nomes para o Conselho das Finanças Públicas, substituição do Presidente do Tribunal de Contas, nomeação do Ministro das Finanças para Governador do Banco de Portugal, SEF, censura à palavra “corrupção” no relatório da OCDE, e os mais recentes casos de vigilância ilegal a jornalistas, e do procurador europeu. Num tempo em que o que fica por esclarecer alimenta a desconfiança nas instituições democráticas e serve de combustível a forças políticas anti-sistema, a democracia saudável periga às mãos de um Governo e dos partidos que o suportam.

A força das democracias reside na capacidade das suas instituições. Nos EUA, as eleições de novembro de 2020 são um bom exemplo da capacidade de resistência das instituições à narrativa Donald Trump, pondo em causa o ato eleitoral, instigando a revolta e levantando suspeitas de corrupção no sistema. Em Portugal, o regime sobrevive cansado, transpirando corrupção por todos os seus poros, como cansado vive o povo da catadupa de suspeições que minam a democracia. O Governo do Partido Socialista sabe que estes são temas caros aos portugueses, tendo apresentado uma Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC). No entanto, há uma discrepância assinalável entre um documento bem intencionado (ainda que muito pouco concreto) e a ação do Governo. Nesta matéria sobram palavras ao Governo, para tão poucas realizações.

A mancha de casos que desonra a vida pública e política é preocupação bastante para todos os intervenientes da sociedade. O processo de seleção do procurador europeu tem feito correr muita tinta nos jornais e tempo nas televisões. Se há uma coisa certa até agora é que o processo está pejado de irregularidades, de falsidades e de enganos e já todos perceberam que quanto mais explicações são dadas menos a história faz sentido. Vai pondo, sim, a nu, responsabilidades graves do ministério da Justiça na viciação de um processo para um cargo europeu. E não é um cargo qualquer. Acaba por ser um paradoxo que uma “seleção” viciada sirva para preencher uma posição (a de procurador europeu) que tem por objetivo investigar e levar à Justiça crimes contra os interesses financeiros da União Europeia, de corrupção ou fraude envolvendo fundos europeus ou fraudes com IVA. Que confiança podemos ter em quem nomeia e no nomeado?

Assunto diferente é, por exemplo, a nomeação de Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal. Não se tratando de um ato corrupto, trata-se seguramente de um caso de grave conflito de interesses.

Era desejável, mais adequado e mais transparente haver um concurso público internacional para o cargo de governador (como acontece noutros países) em vez de a designação do Governador ser feita por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta do ministro das Finanças. A nomeação tendo sido proposta pelo seu sucessor, João Leão, não é, sequer, verdadeiramente livre, recorde-se que João Leão foi para o Governo pela própria mão de Mário Centeno. Um exemplo “by the book” da expressão “uma mão lava a outra”.

O Governo que para se livrar do escândalo onde se enredou de nomeações políticas de familiares, (tendo até aprovado um benemérito Código de Conduta), ignora, depois, que mesmo sem problemas de parentesco existem muitas nomeações que não são transparentes nem eticamente aceitáveis. São situações destas que levam a fragilidades institucionais, que comprometem a independência das instituições e que, a pouco e pouco, lentamente, vão enfraquecendo o Estado de Direito.

O atual estado das coisas, este status quo decrépito e bafiento, sobrevive por estarmos a braços com uma pandemia terrível e que leva a concentrações de esforços e atenções para o controlo da mesma. Mas a verdade é que todas as “facadinhas” na democracia, todos os casos que ficam por explicar, a ausência e rejeição de toda e qualquer responsabilidade política perante os problemas, contribuem significativamente para a inércia e ineficiência do Estado e para descrença dos portugueses no poder político. Igualmente grave é o fosso que se afunda no tribalismo moderno entre “nós” (cidadão comum) e “eles” (políticos), sendo este um assunto transversal na sociedade.

Vasco Pulido Valente dizia que convém “perceber duas coisas sobre a corrupção. Primeira, onde há poder, há corrupção. E onde há pobreza, há mais corrupção. (…) Quanto maior é o poder ou a pobreza, maior é a corrupção. Portugal junta a uma atávica miséria um Estado monstruoso e autoritário e, por consequência, tem as condições perfeitas para produzir uma enorme quantidade de corrupção.”

Está tudo por fazer. É preciso coragem para reformar o poder em Portugal.

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