O eleitorado português normalizou o Chega. Depois de passar o PS, o próximo pode bem ser o PSD. André Ventura já cheirou o sangue na água.

A crise das democracias ocidentais bateu com estrondo à porta de Portugal. Quando a semana passada aqui se escreveu sobre a possibilidade de o Chega ultrapassar o Partido Socialista, perante o acantonamento do partido num espaço político minguante, não se imaginava que isso pudesse acontecer já nestas eleições.

O rápido crescimento da direita radical não é um exclusivo português, só chegou cá mais tarde. O Alternativa para a Alemanha entrou no Bundestag como a terceira força política, em 2017, com 12,6% dos votos, e este ano tornou-se o segundo maior partido com 20,8%. André Ventura foi ainda mais rápido. Elegeu-se a ele próprio em 2019, com 1,3% dos votos, e nestas eleições encostou ao PS com 22,6%, devendo superar os socialistas em número de deputados quando forem contados os votos da diáspora.

O eleitorado português normalizou o Chega. Depois de passar o PS, o próximo pode bem ser o PSD.

André Ventura já cheirou o sangue na água: a incapacidade dos partidos do centro para resolver os problemas que afligem os portugueses; a fragilidade de um primeiro-ministro vulnerável a novos ataques por causa da Spinunviva e desprovido de uma vitória suficientemente robusta (apenas mais 140 mil votos) para afastar a instabilidade; um PS entre o atordoado e o desesperado pela ameaça da irrelevância política.

O sistema mudou. Depois de décadas demasiado virados para dentro, entretidos com os seus jogos de poder, os partidos do regime assistem ao desmoronar de uma ordem que julgavam imutável, para eles reservada ad infinitum.

Vivemos provavelmente os tempos mais decisivos para o sistema político português desde os primeiros anos do pós-25 de abril. O sentido de urgência que pesa sobre a coligação PSD/CDS para responder aos velhos e novos problemas do país ganhou toneladas. As soluções exigem tempo, que deveria ter sido melhor aproveitado no passado e agora já não existe.

Mesmo fazendo tudo bem, será difícil impedir que o barco siga rio abaixo e quebre contra o descontentamento com a imigração, o medo de uma mudança tecnológica acelerada, as crises na habitação e na saúde que só pioram em vez de melhorar.

André Ventura esperará pelo seu momento, dará estabilidade, para mais tarde, se for o mais votado, servir ao PSD e ao PS a mesma vitimização de que agora é alvo.

Nessa altura, o diabolizado bloco central não parecerá assim tão má ideia. Mas a menos que PSD e PS sejam capazes de se reinventar, rejuvenescer, abrir-se à sociedade, acabar com a endogamia e o clientelismo, ter a coragem para tomar medidas ambiciosas e difíceis que mudem o país, juntar os dois no governo será um fraco dique para conter o populismo. Até o poderão alimentar, se o arranjinho for sentido como uma última tentativa de se agarrarem ao poder.

Se PS e PSD forem capazes de fazer essa mudança, talvez seja possível evitar que o país caia na ilusão de achar que o Chega, com a visão do mundo que tem, as propostas irresponsáveis e irrealistas que tem e os quadros que não tem, será capaz de salvar o país.

Nota: Este texto faz parte da newsletter Semanada, enviada para os subscritores à sexta-feira. Há muito mais para ler. Pode subscrever neste link.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

A grande ilusão

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião