A indústria de vigilância europeia
Os tiques autoritários de diversos governos da União Europeia estão a ser expostos graças às revelações associadas ao uso do software Pegasus.
Não passa um mês sem que se descubra mais um governo da União Europeia envolvido em atos de vigilância com contornos muito pouco democráticos. Tudo começou com os suspeitos do costume no que toca ao abuso de liberdades civis: os governos da Hungria e da Polónia foram apanhados a usar o software espião Pegasus contra jornalistas, ativistas, políticos da oposição e até procuradores públicos. A vergonha depressa alastrou a Madrid, onde se confirmou o uso de espionagem contra os independentistas catalães, o que acabou por levar à demissão da chefe das secretas. E da própria pátria da democracia veio agora o pior escândalo de todos, já chamado de “Watergate grego“: entre as dezenas de pessoas controladas abusivamente, estava o próprio líder da oposição.
Neste momento, ninguém sabe qual é o ponto de situação dos programas de espionagem como o Pegasus na União Europeia. Ninguém sabe que governos o usam, contra quem, nem de que forma. O Parlamento Europeu instaurou um comité para investigar, mas os resultados só irão aparecer em março de 2023 – e até lá será difícil assegurar alguma transparência.
A agência responsável pela Proteção de Dados da União já veio pedir que ferramentas como o Pegasus sejam banidas, e percebe-se porquê: este tipo de programas tornam cada telefone invadido num aparelho de escuta e controlo permanente, pois não só dão acesso a todo o conteúdo (mensagens, fotos, links, etc) como permitem identificar permanentemente o local onde está a ser utilizado. O Pegasus tem origem em Israel mas está longe de ser o único no mercado, encontrando-se várias empresas europeias na disputa pelo desenvolvimento do software de espionagem mais eficiente.
Com isto, ficaram bem à mostra os tiques autoritários de dezenas de países europeus. Práticas que são comuns em Marrocos, na Síria, no Irão e na Arábia Saudita começam subitamente a ser habituais nas várias capitais europeias. E isso é inaceitável. Já se identificaram centenas de europeus visados por este tipo de vigilância abusiva, na grande maioria dos casos sem qualquer sustentação legal.
Nas inquirições do Parlamento Europeu, os próprios israelitas confirmaram ter pelo menos cinco países da União entre os seus clientes, mas o New York Times afirma que o número é três vezes maior. Portanto, metade dos governos da União possui um sistema de vigilância que pode ser usado sem controlo judicial e que tem sido especialmente dirigido a políticos e jornalistas. Para além de Hungria, Polónia, Espanha e Grécia, as forças de segurança alemãs e holandesas também confirmaram a aquisição deste tipo de software, no que deverão ter sido acompanhadas pela França, pela Bélgica e pela Áustria, entre outros.
O problema não é novo, já dura pelo menos há duas décadas e tem beneficiado da inação de Bruxelas. Quer os governos nacionais quer as instituições de Bruxelas têm tolerado o crescimento de empresas que operam na margem da lei, criando e vendendo software que é usado para fins anti-democráticos dentro e fora da União. Estão envolvidas empresas austríacas (DSIRF), italianas (RCS) e gregas (Cytrox), para além de entidades francesas e alemãs que trabalham para os próprios governos.
A hipocrisia é óbvia: quando a UE se apresenta ao mundo como o paradigma dos direitos humanos, não pode ter empresas suas a contribuir para a destruição desses mesmos direitos em países vizinhos. E é pior ainda que, dentro da União, se espiem abusivamente jornalistas, juízes e políticos sem qualquer sanção aos governos que usam e abusam destas práticas anti-liberais. A Hungria e a Polónia têm feito a sua deriva autoritária sem sanções de Bruxelas, mas o problema alastra rapidamente – e se continua assim, deixa de ser possível à União usar o seu soft power para promover algo que não passará de bazófia.
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