A Justiça e as insolvências que aí vêm

A Justiça deveria estar preparada para as insolvências que são esperadas este ano. Mas, como denunciam as estatísticas, não está.

O Banco de Portugal e o Instituto Nacional de Estatística acabam de publicar os resultados de um inquérito empresarial realizado entre os dias 6 e 10 de Abril (“COVID-19: acompanhamento do impacto da pandemia nas empresas”). Sem surpresa, as microempresas e, em especial, as empresas de alojamento e restauração são as mais afectadas pela suspensão da actividade económica. O inquérito sugere também pistas quanto ao futuro imediato da economia portuguesa e, sobretudo, evidencia a urgência de se voltar a um estado de alguma normalidade económica. A situação das empresas, muito debilitadas de tesouraria, em resultado da quebra de actividade, mostra que não podemos continuar assim parados.

Relativamente aos principais números, entre os inquiridos na referida nota informativa, temos que 7% das empresas de alojamento e restauração encerraram actividade de forma definitiva e, globalmente, considerando todo o universo de análise, “quase 50% das empresas referiu só conseguir manter-se em atividade até 2 meses sem medidas adicionais de apoio à liquidez, sendo que 10% reportaram que não têm condições para se manter por mais de um mês”. Por outras palavras, a maioria das empresas sobrevivem no osso e vem aí uma enxurrada de insolvências, numa altura em que o FMI acaba de publicar que o PIB português contrairá 8% em 2020 e que a taxa de desemprego será de 14%.

É nestas circunstâncias, de adaptação a novas expectativas, que os processos de insolvência são mais importantes. A insolvência é uma instituição reguladora. Por um lado, é onde o património dos devedores pode ser ordeiramente reunido com vista ao ressarcimento dos credores, em função do grau de exigibilidade dos créditos. Por outro lado, é também o mecanismo através do qual podem ser reorientados os recursos que resultam de actividades menos produtivas, que estão insolventes, para outras de maior potencial económico. Previnem também o surgimento de empresas “zombie”, que por definição são empresas cujos resultados não lhes permitem sequer financiar o serviço da dívida, e que prejudicam a produtividade global das economias.

As insolvências e, sobretudo, os mecanismos de pré-insolvência, de que são exemplo em Portugal os processos especiais de revitalização, devem proteger trabalhadores, fornecedores e credores diversos, incluindo o Estado. Funcionam em complementaridade de outros instrumentos jurídicos, que visam combater a ocultação e a dissipação do património, como as impugnações paulianas, e devem fazê-lo em defesa de todos os “stakeholders” das empresas. Os mecanismos de pré-insolvência representam também uma janela de oportunidade, para avaliação, sob protecção contra credores, da viabilidade das próprias empresas afectadas, no contexto de conjunturas económicas em mudança.

Mas os processos de insolvência têm de ser eficientes. Numa situação de aflição, como aquela que muitas empresas estarão neste momento a viver, quer como credores quer como devedores, é fundamental que os tribunais respondam em tempo útil, mas no respeito dos vários interesses envolvidos. É, pois, essencial que os tribunais funcionem em pleno, para evitar que vença a lei da selva e o oportunismo de alguns. Não é, portanto, tempo para férias judiciais – a modalidade adoptada no presente estado de emergência, mas que nesta altura não garantirá a totalidade dos processos urgentes – nem, menos ainda, o tempo para ideias peregrinas como a de suspender as insolvências (como ainda recentemente foi sugerido pela AIP).

Infelizmente, o quadro geral dos processos de insolvência em Portugal é caracterizado pela sua morosidade. De acordo com dados da Direcção-Geral da Política de Justiça (boletim nº72 – Janeiro 2020), a duração média dos processos de falência, insolvência e recuperação de empresas findos nos tribunais de 1ª instância em Portugal no final do terceiro trimestre de 2019 era de 65 meses (cinco anos e cinco meses!). Trata-se do tempo que, em média (!), demora um processo desta natureza, de A a Z, até ao chamado “visto em correição”, sendo de notar que a duração média destes processos duplicou desde 2015.

A morosidade destes processos tende a ser acompanhada de uma baixa taxa de recuperação. Em Portugal, a taxa de recuperação dos créditos, face ao total de créditos reconhecidos, é de apenas 12%. A fim de evitar insolvências prolongadas no tempo e parcas na recuperação, os países implementam regimes de pré-insolvência para encorajarem a recuperação de empresas antes de estas entrarem em insolvência. É o caso dos processos especiais de revitalização (PER) em Portugal que, todavia, também demoram. Em média, a duração de um PER é de seis meses, quando a parte substantiva do mesmo, a negociação do plano de recuperação, não pode por lei exceder os três meses. Resta acrescentar que só metade dos PER terminam com acordo.

A Justiça deveria estar preparada para as insolvências que são esperadas este ano. Mas, como denunciam as estatísticas, não está. A digitalização poderia ajudar, porém, como os tribunais ainda estão noutro tempo, não haverá digitalização que valha. A abertura do sector à sociedade também seria benéfica, mas, como também se sabe, o sector vive fechado sob si mesmo. O problema é muito sério e vai limitar a capacidade de recuperação da economia, prejudicando a vida de muitas pessoas durante algum tempo. O cumprimento dos contratos será afectado, numa altura em que, por via de moratórias e suspensões diversas, a própria noção de contrato está ameaçada. Há o risco de uma espécie de “anarco-direito”. Valerá (ou não) a negociação directa entre credores e devedores.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

A Justiça e as insolvências que aí vêm

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião