A Paz na terra de Canaã, uma reflexão prospectiva

Qualquer análise ou reflexão sobre conflito Israel-Hamas requer considerações ao nível bilateral, regional e internacional.

Este não é um exercício fácil. Especialmente sendo sobre o futuro. Niels Bohr avisou-nos sobre essa condição: “Prediction is very difficult, especially about the future”. Mais difícil se torna quando devemos considerar eventuais ou prováveis actores, i.e., pessoas que inevitavelmente terão de fazer, ou tentar fazer, o que Mandela fez. Depois de ter passado 27 anos na cadeia, Mandela foi libertado. Saiu da prisão com o perdão no coração e foi capaz de unificar o seu país. No caso do conflito no Médio Oriente, 27 anos são um grão de areia. Não tenho a certeza de que o perdão seja possível, nem que venha a ser redenção. Oxalá esteja enganado. Curiosamente, por um breve momento, o perdão no coração entre israelitas e palestinianos pareceu provável quando Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat assinaram os Acordos de Oslo (Washington, 1993; Taba, 1995).

Num meu anterior artigo, fiz uma abordagem histórica onde referenciei as cinco vezes que os árabes recusaram a solução de dois Estados (não acredito que seja possível outro tipo de solução). Antes de indicar prováveis futuros líderes que possam conduzir à paz, devo referenciar os Acordos de Oslo e as consequências do mesmo.

Tendo em mente as Resoluções 242 e 338, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, estes Acordos foram um marco na relação entre israelitas e palestinianos e representaram a esperança, infelizmente breve, num futuro de paz. Foi no âmbito deste processo que pela primeira vez houve um reconhecimento mútuo entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Naturalmente, entre outras, questões como fronteiras, a retirada (faseada) da presença militar de Israel da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, a transferência simultânea da segurança para as autoridades palestinianas, um autogoverno provisório palestino (pelo Conselho Legislativo Palestino) e uma revisão dos termos após 5 anos foram objecto de negociação e de acordo.

O extremismo, usualmente associado a dogmas, fanatismo, intolerância, negação de valores, ausência de pensamento critico e à imposição de modos de estilo e de comportamento, não se limita à política. Na religião, a intransigência caracteriza-se devoção absoluta, exacerbada e desprovida de isenção que afirma incondicionalmente a primazia duma religião sobre as demais. As três grandes religiões monoteístas do mundo têm extremismo e fanatismo no seu interior.

Tendo Yitzhak Rabin sido assassinado por Yigal Amir, um extremista político e religioso judeu (1995), não é de estranhar que tanto Arafat como Abbas tenham recusado as propostas feitas por Ehud Barack (2000) e por Ehud Olmert (2008) para a criação de dois Estados. É plausível pensar que nem Arafat, nem Abbas, estavam disponíveis para dar, nas palavras de Abraham Lincoln, “a última e mais definitiva medida de devoção” pela paz. Por outras palavras, tiveram medo de ter mesmo destino de Rabin, de ser assassinados por extremistas da sua própria facção.

Dito isto, qualquer análise, prospectiva ou não, do conflito Israel-Hamas requer considerações multidimensionais ao nível bilateral, regional e internacional. Abordarei apenas algumas variáveis dessas dimensões.

Nível Bilateral

Obviamente, não é possível deixar de reconhecer erros cometidos por vários governos de Israel (a política dos colonatos é um deles) e pelo governo de Netanyahu, quer ao nível político pela defesa de um nacionalismo étnico, quer também ao nível securitário.

Mas há algo que é incompreensível. No contexto em que Israel vive, como podem ter sido descurados aspectos essenciais para a sua defesa e para a protecção dos seus cidadãos? As distracções decorrentes da efervescente política interna em Israel – do lado do Governo, aos casos que envolveram Netanyahu e a recente tentativa deste de reforma da justiça, reforma essa que na minha opinião punha em causa o Estado de Direito; por sua vez, a oposição distraiu-se demasiado com os casos de corrupção do Primeiro-ministro – não servem de justificação. Ainda por cima, até os avisos dos norte-americanos, corroborados pelos britânicos, sobre eventuais acções do Hamas foram ignorados. Resultado? Israel foi apanhado de surpresa e colocado contra a parede.

As mais recentes sondagens demonstram uma substancial queda do Likud. Perante isto, é provável que depois do fim desta crise, os israelitas não votem em Netanyahu e que sejam investigadas e apuradas as devidas responsabilidades, não pondo de parte o apuramento de crimes de guerra. Sabendo que as escolhas serão sempre subjectivas, entre várias, Benny Gantz, que conseguiu estabelecer relações com vários Estados Árabes, poderá ser a principal alternativa a Netanyahu.

Não antevejo nenhum cenário em que Netanyahu venha a fazer parte da solução. Porém, neste momento, apesar das críticas e manifestações contra o Governo israelita, penso que há uma união inequívoca dos judeus em torno da resposta ao ataque de 7 de outubro e, se possível, ao resgate de todos os reféns.

Do lado palestiniano, a leitura é mais complexa. Aqui é necessário apontar várias coisas:

  1. O Hamas, fundado pelo íman Ahmed Yassin, é uma organização política e militar islâmica sunita que defende a resistência armada e que se opôs às Cartas de Reconhecimento Mútuo Israel-OLP e aos Acordos de Oslo por estes apoiarem a solução de dois Estados e renunciarem ao “uso de terrorismo e outros atos de violência”;
  2. O Hamas venceu as eleições legislativas de 2006, obtendo a maioria no Conselho Legislativo Palestiniano da Faixa de Gaza, com 75 dos 132 lugares. Contudo, só em 2007, após uma intensa disputa com a Fatah, é que assumiu o controlo total da Faixa de Gaza. Desde então, não houve mais actos eleitorais e o Hamas tem governado autocraticamente;
  3. Não podemos confundir o Hamas com o povo palestiniano por este estar refém daquele. Recentemente foi publicado um estudo sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, pelo Barômetro Árabe, em parceria com o Centro de Investigação Palestino para Políticas e Pesquisas, que revelou que a maioria dos palestinianos não apoiam a governação ou a ideologia do Hamas, nem o seu objectivo da eliminação de Israel. Adicionalmente, 73% dos palestinianos preferem uma resolução pacífica do conflito com Israel, com 58% a optar por uma coexistência entre dois Estados;
  4. O Hamas não tem qualquer interesse na segurança e bem-estar do povo palestiniano. Ali Baraka, chefe das relações externas do Hamas, recentemente sumarizou assim as duas mundivisões: “Os israelitas são conhecidos por amar a vida. Nós, por outro lado, sacrificamo-nos. Consideramos mártires os nossos mortos.” Ou seja, para o Hamas, os civis não são meros escudos humanos. Também são potenciais mártires. Adicionalmente, podemos recordar as opções do Hamas após a saída unilateral de Israel de Gaza. O Hamas em vez de construir infraestruturas e de desenvolver a economia, preferiu transformar Gaza numa base para as suas actividades terroristas, com instalações paramilitares em prédios civis, gastou recursos e dinheiro numa rede de túneis com mais de 500 kms (para comparação, os túneis do metro de Moscovo têm 397 kms) que passam por baixo de residências e de hospitais, sem terem construído abrigos para a população. Hoje, é claro que o propósito da rede de túneis serve para guardar armamento e munições, facilitar a mobilidade dos recursos para o combate de guerrilha e para aprisionar reféns.
  5. Quando comparamos a situação entre Gaza (Hamas) e a Cisjordânia (Fatah) vemos diferenças. Apesar de várias condicionantes, incluindo territoriais, a gestão da Fatah e do Hamas possibilita distintas realidades de vida aos Palestinianos.

Para mim, do lado palestiniano, desejando que terminadas as operações militares seja possível encetar negociações que conduzam à implementação pacífica da solução de dois Estados, Mustafa Barghouti, secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina, um partido político que é uma alternativa ao Hamas e à Fatah, parece ser uma boa opção. Oxalá esteja disponível para fazer o que Arafat e Abbas tiveram medo de fazer. Até porque o Hamas não cederá facilmente o poder. Nem a Fatah o fará.

Independentemente das circunstâncias, das condições e dos actores, a redenção vai exigir tempo. Em ambos os lados existem cargas emocionais fortes e intensas que não serão ultrapassadas com facilidade.

Nível Regional

Depois do Egipto (1979) e da Jordânia (1994), a normalização de relações entre Israel e os países árabes sunitas começou a ser uma realidade depois dos Acordos de Abraão – Emiratos Árabes Unidos (EAU), Bahrain, Sudão, Marrocos (2020) e Omã (2021). Mais recentemente verificaram-se aproximações com a Arábia Saudita.

Neste âmbito deve-se relembrar a divisão que existe, desde a morte de Maomé, entre sunitas e xiitas (respectivamente cerca de 90% e 10% do mundo muçulmano), assim como os conflitos gerados pela procura de preponderância regional por parte da Arábia Saudita e do Irão.

Não é difícil perceber que consequências teria para o Irão uma aproximação da Arábia Saudita a Israel. Não é por acaso que o Irão apoia o Hamas e o Hezbollah. A intensidade da resposta de Israel poderá provocar o afastamento da Arábia Saudita dos Acordos de Abraão e um potencial efeito dominó com a saída dos outros Estados árabes sunitas. Se isso acontecer, o ataque do Hamas terá impedido o isolamento do Irão. Nesse caso, ao contribuir para o esmorecimento dos Acordos de Abraão, a Arábia Saudita correrá o risco de ser vista como derrotada (diplomaticamente), condição que pode levar a uma eventual perda de influência na região. Penso que o departamento de estado norte-americano esteja a ter conversas com todas das partes árabes dos Acordos de Abraão.

Convém ter em mente que o Hamas, por tudo o que representa e pelas suas ligações à Irmandade Muçulmana, é uma faca de dois gumes. Não deixa de ser uma ameaça à estabilidade interna de vários países do mundo árabe, onde, como já referi, também existem fanáticos religiosos. Esta é uma das razões que faz com que nenhum país árabe queira receber os cerca de dois milhões de refugiados (de segunda ou terceira geração) altamente radicalizados após décadas de lavagens cerebrais pelo Hamas.

Como sabemos, assim que a vigência britânica no território cessou, os países árabes atacaram Israel tendo sido derrotados. É desde essa altura que vários Estados árabes (Kuwait, Síria, Líbano, Iraque, Egipto, etc.) recusam dar cidadania aos palestinianos que já vivem nesses países há 75 anos. Um dos pontos que pode ajudar à concretização de um plano da paz que estabeleça a solução de dois estados é a concessão de nacionalidade, pelo menos aos palestinianos nascidos nos seus territórios, por estes países árabes. Outro ponto a considerar poderá ser a gestão temporária de Jerusalém-Oriental por parte da ONU.

Evidentemente, não posso deixar de referir o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, para quem o Hamas não é uma organização terrorista, mas antes uma “organização patriótica [uma espécie de mujahideen] que defende o seu povo e o seu território”. Por outras palavras, o Hamas não é um movimento de libertação. Também são guerreiros sagrados. Alguém sabe como é que Erdoğan classifica o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK)? Porém, estas afirmações não são de estranhar. Não podemos esquecer que a Turquia, tal como o Qatar, com quem estreitou ligações, são ferrenhos apoiantes da Irmandade Muçulmana e do Hamas.

Por fim, quando a situação “normalizar”, vários Estados árabes, incluindo o Qatar, terão de fazer escolhas. E escolhas significativas.

Nível Internacional

Neste nível é necessário equacionar as acções dos EUA, China, Rússia e da UE.

Devido à sua postura utilitarista, a acção da China não deixa de ser previsível uma vez que o que a sua principal preocupação é sempre os seus interesses. A China tomará decisões tendo em mente as consequências para as peças que já posicionou em vários tabuleiros. Portanto, ambiguidade até ao último momento, ou até depois disso, é o mais expectável. O que sabemos é que a China tem conseguido aumentar a sua influência num contexto de estabilidade. Como reagirá perante o aumento da instabilidade internacional?

Ao ter desviado a atenção e a diminuição dos apoios à Ucrânia, o reacender do conflito Israel-Hamas foi útil a Putin. Contudo, os russos não estão interessados em ter um dos seus principais fornecedores de armas, o Irão, demasiados envolvidos no apoio militar ao Hamas e Hezbollah. Depois da deslocação de Sergey Lavrov a Teerão, delegações do Irão e do Hamas foram recebidas em Moscovo. Não obstante outras circunstâncias, como o aumento do caos internacional, e até pontuais vantagens, o apoio público da Rússia tem como o objectivo principal garantir o fornecimento de armas por causa das necessidades decorrentes da invasão da Ucrânia.

Os EUA, para além dos sérios avisos que deram ao Irão para não se envolverem no conflito, atacaram, como retaliação aos ataques de drones a bases militares dos EUA na região, alvos dos aliados iranianos na Síria.

A administração Biden, em particular pela acção de Anthony Blinken, tem estado muito bem. Demonstra estar genuinamente preocupada com a situação. Apoia Israel, mas tenta que Netanyahu não ceda a instintos primários. Estou convencido de que sem diplomacia dos EUA, é muito provável que uma operação militar semelhante à batalha de Estalinegrado já estivesse a ocorrer. Para além disso, os EUA não descuram uma visão geoestratégica estando atentos ao que se passa na Arábia Saudita, nos Emiratos Árabes Unidos e na Turquia.

Curiosamente, algo que começou por ser irrealista, a ideia de uma NATO Árabe (que incluiria Israel) é provavelmente uma das melhores vias para a paz na região. Vários Estados apoiaram a ideia e não há dúvida de que teoricamente, esta organização possibilitaria um fórum de entendimento para a paz. Contudo, é uma ideia que provavelmente ficará “na gaveta” por agora. Para todos os efeitos, a causa palestiniana é popular, no mundo árabe (e não só) e há muitos refugiados palestinianos nos países árabes vizinhos, cujas lideranças não podem ignorar retóricas de décadas. Não admira que os esforços da administração Biden se concentrem na preservação dos Acordos de Abraão.

Por fim, uma palavra sobre a UE. Esta crise só veio reconfirmar a sua irrelevância a nível internacional. A probabilidade da UE vir a ter de fazer escolhas é muito alta. Especialmente, no que concerne à sua natureza e até composição. É evidente que o Neo-funcionalismo europeu já não responde aos desafios do mundo actual. Nem interna, nem externamente.

Notas finais

Se o Hamas libertasse todos os reféns, deixaria Israel sem argumentos para continuar as suas operações em Gaza. Resta saber se Ismail Haniyeh, Ali Baraka e outros dirigentes do Hamas estão disponíveis para isso? A intenção manifestada pelo Hamas em só libertar os reféns internacionais não é um bom sinal.

Desejo que todas as hostilidades cessem o mais rápido possível. O tempo para analisar as infracções ao jus in bello e aos excessos e exageros cometidos não deixará de acontecer. O que importa agora é a Paz e uma contribuição mútua para a manter e consolidar.

Notas adicionais

  1. Já não se trata apenas de anti-sionismo. É inquestionável que o antissemitismo está a aumentar. O que se passa na Europa e na América é sintomático de uma intolerância e duma intransigência crescente dentro da sociedade ocidental que potencialmente nos forçará a fazer escolhas. E essas escolhas poderão não ser pacíficas. Espero que os nossos governantes estejam à altura das suas responsabilidades e que os moderados não fiquem silenciosos, expressando-se de maneira a ajudar a aliviar tensões.
  2. Vladimir Putin, uma alma profundamente atormentada pelos crimes hediondos cometidos pelos nazis, razão pela qual invadiu a Ucrânia, para a desnazificar, assiste agora impávido e sereno ao aumento do antissemitismo no seu próprio país. Como devemos classificar o que aconteceu em Makhatchkala? Que medidas vai Putin tomar para desnazificar o Daguestão?

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