A pronúncia do Norte (2)
Desta vez, uma viagem à Islândia, um país estranhíssimo que, como escreve Michael Booth, no livro 'The Almost Nearly Perfect People', tudo tem feito para se afastar dos restantes países nórdicos.
Prosseguindo o nosso périplo pela Escandinávia, guiados por Michael Booth e pelo seu livro ‘The Almost Nearly Perfect People’, aterramos agora numa terra que está na moda, em larga medida devido a um vulcão com um nome comprido e impronunciável que gaseou a Europa há um par de anos. Anfitriã em 1972 da celebérrima disputa xadrezística entre Spassky e Fischer, pátria da cantora Björk, a Islândia é um país estranhíssimo, antediluviano, com assombrosas paisagens que envolvem os seus 340.000 habitantes e outros tantos turistas (em 2016, visitaram a ilha 1,8 milhões de pessoas, um aumento de 40% face ao ano anterior).
Como diz Michael Booth, talvez seja descabido integrá-la no conjunto das nações escandinavas, uma vez que a Islândia, ao longo da sua história, tudo tem feito para se afastar dos restantes países nórdicos. Aliás, tem mais relações comerciais com a Alemanha, o Reino Unido e os Estados Unidos do que com qualquer dos seus vizinhos.
A natureza bizarra do país não se limita ao nome dos vulcões e das lagoas. Entre 2003 e 2008, os três principais bancos da Islândia endividaram-se loucamente. A dívida da ilha chegou a representar 900% do PIB e, no pico da crise, um terço dos islandeses manifestou a intenção de abandonar o seu país. O povo saiu à rua, porventura esquecido – ou enfurecido – pelos tempos de gastos fabulosos, em que Elton John era contratado e trazido de jacto para cantar uma só canção numa festa de aniversário, ou em que um executivo do banco Kaupthing alugava o Museu de História Natural de Londres para uma festa nocturna animada por Tom Jones.
As coisas melhoraram recentemente, mas nunca nos devemos esquecer que estamos a falar de uma terra em que, de acordo com uma sondagem de 1988, 54% das pessoas dizem acreditar em elfos e outras criaturas misteriosas; num inquérito de 2007, registou-se alguma moderação nestes arroubos místicos e panteístas, mas, ainda assim, 8% dos inquiridos afirmaram que os elfos existiam, 16% consideraram a sua existência “provável” e 32% disseram ser “possível” haver na vizinhança um “povo escondido”.
Escondidos, escondidos, estarão os noruegueses. Ou, melhor, divididos entre o trauma pós-massacre de Utøya, os debates sobre a imigração e o multiculturalismo e, enfim, a colossal fortuna acumulada graças ao petróleo, que faz com que a Noruega, um país com uns cinco milhões de habitantes, tenha o maior fundo soberano do mundo. Quando chegou aos 600 mil milhões de dólares, em 2011, ultrapassou o Abu Dhabi – e continua a crescer.
Uma estimativa conservadora afirma que o fundo de reserva da Noruega alcançará um bilião de dólares (um bilião “americano”, note-se), o que lhe permitiria, sem grandes problemas, pagar confortavelmente o dobro da dívida da Grécia. Mas, ao contrário dos islandeses, o povo dos fiordes é prudente e sensato, gastando anualmente apenas 4% da fortuna gerada pelo petróleo, através de um fundo que diversifica os seus investimentos, detendo activos em cerca de 800 empresas. Para esta cautela, pesa decerto a memória de um tempo agreste, quando a Noruega era um país predominantemente agrícola, mas cujo solo arável cobre apenas 2.8% do território.
Em face desta opulência discretíssima, não admira que a Noruega seja hoje um pólo de atracção para imigrantes de todo o planeta, incluindo famílias oriundas de outros países nórdicos, como a Dinamarca ou a Suécia (actualmente, há cerca de 35.000 suecos a trabalhar na Noruega, na mira de salários que, no mínimo, se situam nos 35 euros/hora).
Nem tudo são rosas, porém. A Noruega está a desindustrializar a sua economia a um ritmo muito mais rápido do que os seus parceiros comerciais e, actualmente, apenas 10% do PIB é gerado pela exportação de bens manufacturados, o que contrasta com os 20% registados na Suécia. Por outro lado, o investimento em investigação e desenvolvimento é relativamente baixo em termos comparativos: apenas 1.71% do PIB, em confronto com os 3.42% da Suécia. Mais do que isso: quase metade do investimento em I&D provém de fundos públicos, enquanto na Suécia apenas um quarto da aposta em inovação é feita com base no Estado. Aliás, 52% do PIB da Noruega é criado a partir do sector público, situação que alguns analistas e observadores consideram inviável por muito tempo.
A OCDE, sempre atenta e vigilante, já avisou a Noruega que tem de incentivar os seus cidadãos a trabalharem, estudarem e inovarem mais, sobretudo se tivermos presente que 10% dos empregos do país são ocupados por estrangeiros, em especial nas tarefas que exigem menores qualificações ou que são mal remuneradas (de acordo com alguns estudos, cerca de metade dos serviços de limpeza do país são prestados por estrangeiros).
O debate sobre a imigração continua aceso – e está para durar. A extrema-direita xenófoba e nacionalista não abrandou com a prisão de Anders Breivik, pelo contrário. Um caso de estudo.
É pelo estudo que a Finlândia se destaca entre os países nórdicos. Ainda que com sinais de decréscimo nos últimos inquéritos, o país da Nokia aparece sempre no topo dos rankings do PISA e nas estatísticas da educação. Bem, a economia também não vai mal, sendo considerada a terceira mais competitiva do mundo. Os finlandeses têm o maior rendimento ‘per capita’ do Ocidente e, apesar da tão apregoada felicidade dinamarquesa, revistas como a Monocle e a Newswek e organizações como o Legatum Institute dizem ser a Finlândia o país ideal para viver em todo o planeta. Alcoolismo e vodca em excesso? Nada disso. Os finlandeses consomem entre 10 a 12 litros de álcool por ano, o que se situa a meio da tabela dos países com mais bebedores. Os dinamarqueses e os ingleses, por exemplo, consomem muito mais álcool do que os seus comparsas da Finlândia. Os suecos, é certo, bebem menos do que os finlandeses, mas o governo de Estocolmo gasta mais do dobro do que o de Helsínquia em campanhas de prevenção do alcoolismo.
Onde os senhores da Finlândia carregam forte não é no álcool, é noutros medicamentos para o espírito; entre os medicamentos mais prescritos no país, o primeiro é um anti-psicótico, o segundo é insulina e o terceiro é um antidepressivo. A Finlândia é também o país escandinavo com mais altas taxas de suicídio, 17.6 pessoas por 1.000 habitantes, contrastando com os 11.9 da Dinamarca (e, já agora, com os 11.8 dos Estados Unidos ou os 6.9 do Reino Unido).
Se a isso juntarmos outro dado estatístico – os finlandeses são o terceiro povo do mundo com mais armas em casa, a seguir aos Estados Unidos e ao Iémen –, talvez tenhamos razões para nos preocupar se quisermos visitar o país dos mil lagos. Um país onde o vazio das ruas é confrangedor, a ponto de Michael Booth dizer que “comparada com Helsínquia, Oslo parece Bombaim”…
Estará tudo na sauna, de que se chega a organizar um campeonato do mundo? A competição é algo selvática: ganha quem aguentar mais tempo com a temperatura mais alta. Numa das últimas edições, um concorrente morreu quando a temperatura chegou aos 110 graus centígrados. O infortunado saunista era… russo.
E o sucesso na educação, modelo para muitos países? Por muito que custe dizê-lo, não, não é devido ao salário dos professores, o qual não se distancia da média europeia (e é cerca de 20% inferior ao dos professores norte-americanos). Também não é devido à reduzida dimensão das turmas; com 20 a 23 alunos, as turmas finlandesas não são mais pequenas do que a de outros países nórdicos (e de várias regiões do globo). Também não é devido a uma escolarização precoce – as crianças finlandesas entram formalmente no ensino básico aos sete anos. Não há exames, nem grandes testes ou avaliações antes dos 16 anos, assevera Michael Booth. De igual modo, há poucos trabalhos de casa e um aluno tem, em média, apenas quatro horas lectivas por dia.
Há quem diga, sem receio de parecer xenófobo ou politicamente incorrecto, que uma das causas do sucesso escolar finlandês decorre de terem uma elevadíssima percentagem de estudantes nativos: 99% dos alunos têm o finlandês ou o sueco como língua materna, ao passo que na Alemanha, por exemplo, 10% dos alunos falam turco.
Será uma explicação possível, mas redutora. Não tem em conta um dado fundamental: não há grande diferença de resultados entre todas as escolas do país. Entre as mais cotadas e as menos cotadas, em termos de classificações, a diferença é apenas de 4%. A par disso, uma enorme mobilidade interna: a seguir aos Estados Unidos e à Nova Zelândia, a Finlândia é o país cujos habitantes mais se movimentam no interior do território, nascendo aqui e estudando acolá, trabalhando num lugar e morando noutro, mudando várias vezes de local de residência e emprego. Daí a importância de um currículo uniforme e robusto a nível nacional, sem grandes disparidades na qualidade da oferta escolar.
Por outro lado, se em termos salariais não há grandes discrepâncias face aos países da mesma área geocultural, existe na Finlândia um enorme apreço pela profissão docente, altamente conceituada e prestigiada. Mais de um quarto dos licenciados da Finlândia encara a carreira docente como a sua escolha profissional preferida, acima de todas as outras. Ser professor é uma ambição para muitos, sendo mais difícil entrar nos cursos de magistério, digamos assim, do que em Direito ou Medicina.
Há uns anos, no mestrado em pedagogia da Universidade de Helsínquia, apareceram 2.400 candidatos para 120 vagas. Desde 1970, todos ou quase todos os professores finlandeses têm o mestrado ou grau equivalente. Os mais estatistas explicam o sucesso do modelo finlandês pela ausência de escolas privadas, outros afirmam que aquele êxito se deve à simplicidade da língua. Só falha uma coisa, ao que parece: as crianças não são especialmente felizes na escola. Em todos os países nórdicos, são, aliás, as que registam menos alegria na ida para os estabelecimentos de ensino. Um relatório da OCDE mostrou que os alunos da Finlândia não só têm menos gozo no ensino do que os seus colegas da Suécia como, apesar de terem melhores resultados, se exprimem pior em termos verbais.
Não há razões, todavia, para que a Suécia celebre e festeje. Um relatório recente do Fórum Económico Mundial colocou a Finlândia em terceiro lugar na lista dos países com maior potencial de crescimento no futuro. A Suécia foi destronada, passando para a quarta posição. E agora, claro, deveríamos falar da Suécia, a terra do mobiliário IKEA e dos filmes atrevidos. Em suma, um país demasiado grande para caber nestas linhas.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A pronúncia do Norte (2)
{{ noCommentsLabel }}