A rua e a eleição

Greta Thundberg tem uma influência mundial que não pode ser nem negada, e isso não é bom nem mau. O que é um problema é a ausência de escrutínio sobre o que faz e diz.

Não, a mensageira não me interessa, não faço comentários sobre a sua idade (Alexandre Magno, com a mesma idade, já fazia coisas extraordinárias, embora possa haver quem argumente que, provavelmente, o futuro não é mesmo quando se é educado por Aristóteles ou quando se falta às aulas), não faço piadas rascas com o nome, não me incomoda o estrelato e poder comunicacional, e não discuto a origem dos recursos financeiros que usa.

É certo que não me agrada especialmente o alarde das públicas virtudes próprias como penhor de superioridade moral, e muito menos me entusiasmam os gestos simbólicos para disfarçar a ausência de acção concreta e real mas, nesse aspecto, a concorrência é feroz.

A mensageira não me interessa, mas a mensagem transmitida tem impacto global em matérias que são do meu interesse, por isso a mensagem interessa-me e interessa-me poder discuti-la, e à forma como a escrutinamos, sem ser imediatamente acusado de me vergar aos interesses, de ser condescendente com as mulheres, de não ter consciência da urgência associada às alterações climáticas e outras parvoíces.

A mensagem essencial de Greta Thundberg pode ser avaliada nos seguintes aspectos:

  1. Temos um problema sério de alterações climáticas que temos de resolver urgentemente
  2. Esse problema resulta do facto dos governos nos terem traído e, portanto, é preciso que a rua obrigue os políticos a fazer o que a ciência diz que deve ser feito
  3. Os adultos destruíram a minha infância e vão destruir o resto da vida de quem vai ter de viver no futuro

Na sua simplicidade e urgência, esta mensagem tem tocado muita gente de boa vontade, incluindo muitos que se enternecem com o poder de mobilização de massas da história simples de uma adolescente que fez o que achou certo, aparentemente sozinha.

Quanto ao primeiro aspecto, Greta Thundberg está essencialmente certa, temos mesmo um problema sério e temos mesmo de olhar para ele o mais rapidamente possível. E está certa porque, pese toda a incerteza sobre o futuro, é verdade que ignorar os riscos pode ter efeitos sociais muito mais catastróficos que os gerirmos sensatamente, mesmo que venhamos a concluir, no futuro, que afinal as coisas não evoluíram como pensámos.

Só que para que isto seja verdade, é preciso que não adoptemos medidas que acabem por simplesmente antecipar as consequências negativas das alterações climáticas, ou seja, é preciso que cada uma das soluções que desenhamos para responder ao diagnóstico seja avaliada seriamente, identificando ganhadores e perdedores em cada momento.

Ora é nisso, no fundo aquilo a que diz respeito o segundo aspecto da mensagem, que Greta (ou melhor, as muitas pessoas que se sentem representadas pela sua história) está profundamente errada, o que seria o menos e, principalmente, induz soluções erradas.

Eu sei que o argumento é o de que o seu papel é aumentar a consciência do problema, e que isso está a ser conseguido eficazmente, nomeadamente entre as pessoas mais novas. Este argumento só seria válido se a esse aumento da consciência do problema correspondesse um aumento de acção concreta que possa gerir melhor o problema.

A última viagem de barco feita por Greta é, desse ponto de vista, uma metáfora reveladora. Para evitar as emissões de duas passagens de avião (a dela e do pai), partindo do diagnóstico certo de que é útil reduzir as emissões do transporte aéreo, fizeram-se opções absurdas que as companhias de aviação com certeza agradeceram: poucas vezes vi demonstrada de forma eloquente a utilidade social do transporte aéreo e a dificuldade em encontrar alternativas.

As emissões associadas à viagem poderiam ser quase nulas escolhendo um horário que habitualmente não encha o avião. Seria uma mensagem no sentido certo: há maneiras de evitar as emissões que custam bem menos do que pensamos, desde que façamos um esforço para pensar seriamente sobre o assunto.
Poderiam ser praticamente nulas se as participações nas cimeiras de Nova Iorque e na COP de Madrid tivessem sido feitas por vídeo, embora, provavelmente, se perdesse alguma eficácia comunicacional. Mais uma vez, uma mensagem no sentido certo: é já hoje possível tirar mais partido dos meios que temos para diminuir a pegada ecológica, mas é útil saber que isso implica, muitas vezes, que estejamos dispostos a perder alguma coisa no processo.

A opção foi pagar uma viagem de avião a uma velejadora profissional, embarcar numa demorada viagem, com um bebé a bordo apesar dos riscos, implicando cinco pessoas a gastar recursos durante três semanas, incluindo uma alimentação insustentável, muito processada, como forçosamente é a alimentação numa viagem de longo curso num barco em que se pretende poupar energia. Em algumas alturas o apoio de um motor a diesel foi indispensável (como aconteceu na subida da embocadura do Tejo, com motor, mas sobretudo nos dias seguintes à saída dos Estados Unidos, para gerir a adaptação à forte tempestade que se verificava).

As mensagens estão todas erradas, desde a colocação da vida em risco de terceiros, incluindo um bebé, a necessidade de uma viagem de avião para terceiros, um consumo de recursos pelo menos semelhante ao que teria ocorrido de avião, um tempo inacreditável de viagem de que o comum dos mortais não dispõe e um preço absolutamente proibitivo.

Tudo para uma simples acção de propaganda que visava exigir a lua aos políticos adultos, com base num discurso ressentido que ignora que a geração acusada de ter roubado a infância aos que hoje têm dezasseis anos é a geração que conseguiu diminuir a percentagem da população mundial em pobreza extrema dos 45% em 1981, para os menos de 10% em 2015.

Ressentimento que segue uma longa linha genética dos populismos de todos os tempos e todos os quadrantes e que, sem surpresa, acaba na alegação de que a esperança está nas pessoas que vão às manifestações de rua, e não nos processos democráticos, forçosamente imperfeitos, que elegem os nossos representantes, os tais a que os manifestantes atribuem o estatuto de traidores.

Sim, Greta tem uma influência mundial que não pode ser nem negada, e isso não é bom nem mau, é um facto.
O que é um problema é a ausência de escrutínio sobre o que faz e diz, como se houvesse alguma razão para deixarmos de lhe dedicar a atenção e exigência que dedicamos a qualquer outro político influente.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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