A tempestade perfeita da publicidade digital

A publicidade digital tem desafios complicados pela frente. Mas uma aparente má notícia pode ajudar os anunciantes a focarem-se no que é verdadeiramente importante.

À medida que o calor aumenta, tudo indica que este será um verão quente para a indústria da publicidade digital. Depois do reforço das iniciativas de aumento de proteção de privacidade, começadas pela Apple (ITP 2.2) e pela Firefox, a Google será a próxima a limitar o uso de cookies no seu browser Chrome. Ou seja, em cerca de 90% do tráfego da Internet, os anunciantes terão cada vez mais dificuldade em fazer aqueles anúncios que nos perseguem e que toda a gente detesta mas pelos quais, por algum motivo, as marcas estão dispostas a pagar mais.

Ao mesmo tempo, um estudo das universidades de Minnesota, California, Irvine e Carnegie Mellon, divulgado a semana passada, revela que do prémio que os anunciantes estão dispostos a pagar por este tipo de anúncios (mais de 2,5 vezes o preço dos anúncios normais) apenas uma fração (4%) chega aos bolsos dos editores. Outro dado interessante é que o grande bolo pago pelos anunciantes (cerca de 60%) vai parar aos bolsos das empresas cujas plataformas intermediam estas compras e vendas. A avaliar por estes dados, a compra de publicidade programática é um excelente negócio para as empresas de Silicon Valley e a ruína dos editores.

Para ajudar a criar a tempestade perfeita, os reguladores no mercado europeu estão a apertar o cerco a empresas como a Google e o Facebook, tentando colmatar as ineficiências criadas pelo RGPD, que perversamente aumentou o poder destas empresas. No Reino Unido, a ICO divulgou um estudo verdadeiramente demolidor para a indústria da publicidade digital, o que deixa antever o que poderá vir a seguir em termos de legislação. Coincidência ou não, o Economist desta semana faz um artigo de futurologia (escrito em julho de 2020) em que Facebook, Instagram e Whatsapp são desligados no continente europeu.

Este pode ser um momento definidor para a publicidade digital, que se tem focado essencialmente no comportamento das pessoas e deixado de fora outro aspecto igualmente importante: o contexto das pessoas.

Bharat Anand, professor de estratégia na Universidade de Harvard conta, no seu livro “The content trap”, uma experiência que fez com os seus colegas e que demonstra o efeito do contexto nos media. O estudo consistiu em pegar num artigo sobre a crise financeira da Grécia e mostrá-lo em diferentes ambientes, pedindo aos leitores para o classificar com base numa série de indicadores de qualidade. Em primeiro lugar, o artigo foi exibido num site sem marca, onde teve uma pontuação de 5 em 10. Depois, foi mostrado no site do The Economist e no site do Huffington Post (a origem do artigo). Quando lido no Economist, a pontuação foi de 6,9 ao passo que no Huffington Post a pontuação desceu para 6,1. Mais de um terço dos que leram o artigo no site sem marca deram um pontuação de 4 ou menor. No caso do Huffington Post, esse número foi de 23%. No caso do Economist foi de apenas 10%.

Aparentemente, o sítio onde lemos uma notícia pode aumentar consideravelmente a nossa percepção sobre o que estamos a ler. Apesar de Anand não ter estudado o efeito que os meios têm na nossa percepção sobre a publicidade, é legítimo esperar que um site considerado de alta qualidade – como o The Economist – também melhore ou, pelo menos caucione, a qualidade da publicidade. Boas notícias para os editores que têm sites com maior qualidade editorial.

Mas a qualidade editorial pode estar nos olhos de quem a vê. Um fascinante estudo sobre o efeito da ideologia política nas nossas escolhas de consumo deixa bem claro como o contexto, neste caso, ideológico é determinante para o comportamento. O estudo levado a cabo por Nailya Ordabayeva e Daniel Fernandes, da Universidade Católica Portuguesa, tem uma premissa muito interessante: as pessoas mais conservadoras (direita) e as pessoas mais liberais (esquerda) têm uma visão muito diferente em relação à desigualdade no mundo. Neste estudo, os termos conservador e liberal são usados no contexto político norte-americano, em que conservador está conotado com a direita e liberal com a esquerda.

Para os conservadores, a desigualdade existe porque as pessoas que trabalham mais ganham mais dinheiro e, por isso, sobem na hierarquia social. No caso da visão liberal, as pessoas trabalham todas o mesmo mas umas têm mais sorte ou melhores ligações familiares e, por esse motivo, ganham mais dinheiro, subindo na escala social. No primeiro caso, a desigualdade é inevitável e até desejável. No segundo caso, a desigualdade é algo extremamente injusto e deve ser erradicada.

Até aqui nada de novo. Mas as coisas ficam verdadeiramente interessantes quando percebemos o efeito dessas mundivisões nas escolhas de consumo que fazemos. O desejo de diferenciação das pessoas é bastante conhecido e estudado na psicologia e também no marketing. Uma pessoa que compra um Porsche está a comprar tudo menos um meio de mobilidade.

No caso da ideologia política, o conservadorismo dá origem ao que os autores chamam de diferenciação vertical, que tem como base uma visão do mundo em que o importante é ser melhor do que os outros. No caso dos liberais, a diferenciação é horizontal e o que é importante é ser diferente e único.

Para atingir diferenciação vertical, os consumidores compram produtos que sinalizam que são melhores do que os outros. Para conseguir diferenciação horizontal, compram produtos que demonstram que são diferentes dos outros. No estudo, os autores conseguem provar que a relação entre o conservadorismo e a compra de bens de luxo não é apenas correlacional mas sim causal. Ou seja, a minha ideologia política é a causa das minhas decisões de compra. O mesmo se aplica tanto a conservadores como liberais.

Este resultados têm implicações práticas úteis para o marketing, principalmente em termos de segmentação. Produtos que apelam mais à diferenciação vertical – eu sou melhor do que os outros – terão maior sucesso quando anunciados em meios mais lidos por conservadores. Por outro lado, produtos que evidenciam diferenciação horizontal – eu sou diferente dos outros – terão maiores taxas de conversão quando anunciados em meios privilegiados por liberais.

Quer a ideologia política de Silicon Valley seja mais conservadora ou liberal, os próximos meses serão certamente interessantes de seguir.

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