A última compra do SIRESP

Tudo no SIRESP é opaco e pouco sério. Tudo desde o seu início foi ruinoso para os contribuintes. Será agora, no seu final, diferente?

A semana passada foi noticiado que o Estado terá chegado a acordo para a compra do SIRESP (uma Parceria Público Privada), o sistema de comunicações das forças de segurança. Bombeiros e proteção civil. É a última compra, porque já em 2018 o governo tinha comprado uma parte do SIRESP (já lá iremos a esse aspeto). Recorde-se que o SIRESP esteve envolto em grande polémica no ano de 2017, devido as várias falhas que teve nos incêndios, sobretudo em Pedrógão.

Façamos um pequeno exercício de revisão. O SIRESP começou a ser pensado no tempo do Governo de Durão Barroso. Depois, de uma forma pouco séria, foi adjudicado ao consórcio acionista (que tinha sido o único candidato e era composto pela SLN (detentora do BPN) com 33%, a PT com 30%, a Motorola com 15%, a ESEGUR – Espírito Santo Segurança com 12% e a Datacomp com 10%) a 3 dias do final do governo de Santana Lopes.

Quando olhamos para a cronologia, percebemos que o processo foi aberto com várias lacunas. A começar, a inexistência de um calendário e de um objetivo para o SIRESP bem definido. Não houve uma análise custo-benefício e não se definiram as linhas estratégicas do projeto. O prazo reduzido para apresentação de propostas (de 9 julho de 2003 a 15 de setembro de 2003, menos de dois meses, e em pleno verão), fez com que apenas uma entidade respondesse (apesar de as restantes empresas que foram convidadas serem de nome internacional).

O Governo seguinte, com António Costa como ministro da Administração Interna, revogou o concurso. Contudo, ao invés de abrir novo concurso, optou por negociar com o consórcio que tinha vencido anteriormente. Disse, na altura, que tinha poupado dinheiro ao Estado. Demonstrei num artigo há um ano (onde a cronologia e as falhas do SIRESP podem ser encontradas), que isso decorreu de uma alteração que se afigura errada:

  • O “Comparador do Setor Público” deste projeto (o CSP é quanto custaria o projeto se fosse desenvolvido pelo Estado e não pelo privado, devendo esse custo ser comparado com o custo dos pagamentos ao privado, sendo que apenas quando o pagamento aos privados é inferior ao CSP é que a PPP gera valor – Value for Money) mostra que o seu valor inicial, em setembro de 2003, era de 280 M€, sendo a proposta dos privados de 450 M€.
  • Depois, ambos os valores foram revistos. O CSP passou para 342 M€ em março de 2006 (portanto já na segunda negociação após a anulação da adjudicação inicial) e o valor do privado passou para 305 M€. Mas, para isso, foi preciso que o CSP tivesse o seu âmbito aumentado e que o privado visse reduzido os seus serviços (entre os quais uma redução do investimento em mais de 50 M€).
  • Adicionalmente, considerou-se um valor financeiro dos riscos a serem assumidos pelo privado superior em 30% ao do cálculo inicial.
  • Assim, o custo do investimento e operação, se feito pelo público, foi revisto de 228 M€ para 278 M€ (+ 50 M€) e o valor financeiro dos riscos alocados ao privado foi revisto de 51 M€ para 63 M€ (+12 M€), dado assim origem ao aumento de 280 para 342 M€. Ou seja, alterou-se o escopo do projeto para que os valores agora justificassem a PPP.
  • Refira-se adicionalmente que não houve qualquer estudo de Value for Money, nem o contrato prevê alguma cláusula de partilha de benefícios. O pagamento do privado é por disponibilidade (ou seja, uma renda pré-fixada para fazer face ao investimento e aos custos de manutenção e operação), sendo que a remuneração dos acionistas é de 15% (TIR acionista nominal). Tendo em conta que em 2006 a taxa de juro a 15 anos da República rondava os 4%, temos um prémio real em torno dos 10%/ano.

Adicionalmente, a PPP tinha vários erros de conceção e contrato:

  • O contrato não tinha cláusula de fiscalização e acompanhamento da instalação dos equipamentos. Também tem um anexo (anexo nº 29) de penalizações que faz com que o valor a pagar pelo Estado apenas se reduza em casos em que o sistema falhe durante vários dias.
  • O contrato tem uma cláusula standard nas PPP que aqui não faz sentido nenhum: a alocação do risco “acts of God” (ou seja, desastres naturais) ficou do lado do Estado. Isso faz sentido numa infraestrutura de transportes ou social, uma vez que o privado constrói a ponte ou a estrada ou outra infraestrutura para ser operada, e não para resistir a um terramoto. Mas no SIRESP essa clausula mostra negligência na elaboração do contrato, dado que o objetivo do sistema é que ele funcione exatamente em caso de calamidade.

As notícias da semana passada eram escassas em informação. Isso é algo comum em Portugal que nos devia preocupar. Assim que o governo anunciou a compra, todos os documentos relativos a essa operação deveriam ter sido tornados públicos. A transparência para com os cidadãos assim o exige.

Aquilo que sabemos é que, aparentemente, o Estado pagará sete milhões de euros para ficar com 100% do capital do consórcio. Ora, aqui começa o primeiro problema do negócio. Não são sete milhões por 100% do capital. São sete milhões por 67% do capital. É que, em julho de 2018, o Estado já tinha ficado com 33% do capital do SIRESP, que pertencia a Galilei. Esta empresa pertencia ao grupo BPN e tinha ficado na orbita do Estado aquando da nacionalização do banco em 2008. Na mesma altura a Altice reforçou a sua posição para 52% (comprou a parte da ESEGUR).

Assim, na realidade, o valor do SIRESP neste negócio de junho de 2019 é de 10,5 milhões de euros (sendo que nunca foi claro o valor pago pelo Governo em julho de 2018 pelos 33% da Galilei). Sucede, porém, que o contrato do SIRESP extingue-se em 2021. Ou seja, o Governo avaliou o negócio que já só dura 2 anos, por 10,5 milhões euros.

Ao avaliar o SIRESP por 10.5 milhões de euros, o Estado considera que os dividendos dos 2 anos de operação em falta e o valor residual dos equipamentos valem esse montante.
Há no entanto várias questões que ficam por responder:

  1. O investimento necessário em 2017 e 2018 chegou a ser realizado pelos privados, ou é agora um encargo adicional do Estado? Falava-se em 10 milhões de euros para redundâncias que não existiam. Se este investimento agora passa a ser feito pelo Estado, então o SIRESP foi avaliado em 20 milhões.
  2. Quanto valem os dividendos dos últimos 2 anos e o valor residual da empresa?
  3. Caso o Estado não tivesse comprado agora o remanescente, faria sentido adquirir os equipamentos em 2021, no final do contrato? E se sim, qual seria o valor na altura de compra desses equipamentos?
  4. Faz sentido avaliar o negócio pelo valor líquido do balanço da empresa (ativos – passivos), como referiu o secretário de Estado do Tesouro? É que pode haver uma diferença significativa entre o valor contabilístico dos ativos e o seu valor comercial.
  5. Qual é a qualidade dos equipamentos neste momento? E qual é a sua capacidade tecnológica?

Tudo isto precisa de ser explicado. Qual a razão que fez sentido comprar aquele sistema e não avançar para uma solução diferente? Num país a sério, o Governo antes sequer de assinar a primeira página do contrato teria dado todas estas (e porventura mais) explicações.

E, depois, a questão mais importante. O que vai o Estado fazer a partir de agora? Vai integrar o sistema de comunicações nas próprias estruturas de segurança? Ou vai manter um sistema autónomo? E como vai financiar os investimentos necessários, sobretudo nos próximos anos, para garantir a fiabilidade e segurança do sistema?

Tudo no SIRESP é opaco e pouco sério. Tudo desde o seu início foi ruinoso para os contribuintes. Será agora, no seu final, diferente? Mas tudo isso o primeiro-ministro António Costa sabe bem. Ele foi um dos principais responsáveis pelo péssimo negócio do SIRESP, como demonstrei atrás, quando em 2006 aceitou negociar novamente com o consórcio. Isto depois de o ter deitado abaixo, com justificação legal, o vergonhoso concurso anterior.

Junte-se ao SIRESP a atuação de Costa como ministro no caso dos Kamov e podemos bem aferir da qualidade do seu mandato como ministro da Administração Interna e nº2 de José Sócrates.

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