América. Boulevard dos Sonhos Perdidos

A América está dividida entre duas narrativas incompatíveis e irreconciliáveis.

Escrevo na Europa. Escrevo num País onde acaba a Europa. O Atlântico é o imenso oceano que me separa da América. No entanto, do alto destas palavras não vejo o mar, mas vejo a Estátua da Liberdade que, como o colosso de Rodes, anuncia a vitória de uma ideia política que se concretiza na mitologia da América.

A tocha na mão da Estátua da Liberdade não liberta os fumos do Mundo Novo, mas um rasgão negro de uma América que arde, um fumo espesso que atravessa o oceano e asfixia os pulmões do Mundo. George Floyd foi morto pela polícia de Minneapolis em oito minutos – um joelho transformado em máquina de compressão sobre o pescoço contra o asfalto negro da cidade. O negro contra o negro. O cidadão afro-americano tinha acabado de tentar passar uma nota de 20 dólares aparentemente falsa. Este é o valor da vida numa grande cidade da América.

Na aparente normalidade do gesto policial, as imagens da operação tornam-se virais. Em pleno ano de eleições presidenciais, com 40 milhões de desempregados, com uma pandemia que muito promete para as cidades e planícies da América, em plena guerra comercial e política com a China, as ruas sem nome enchem-se de protestos, confrontos e o Presidente refugia-se no abrigo nuclear da Casa Branca. As imagens circulam pelo Mundo globalizado e murais de George Floyd surgem em Manchester, Nápoles, Nairobi, Nantes, Berlim, Idlib, Bruxelas, Milão, Barcelona, Belfast, Amesterdão. Alguém viu um mural em Lisboa? Tirem as conclusões que entenderem.

Ao mesmo tempo um cidadão mexicano é preso por não usar a máscara obrigatória e é morto na esquadra pela polícia. Nem uma palavra, nem um gesto, o Mundo ignora impávido e sereno. Quanto vale a vida de um cidadão mexicano? O preço de uma máscara cirúrgica.

A América projecta sobre estas palavras o traço ficcional de Hollywood, a sedução de todas as fantasias e de todas as mitologias. A vida na América parece um argumento de uma série de televisão, desfocada da realidade, baseada no olhar superficial e impensado sobre as aparências. Quando o número de mortes causado pela pandemia ultrapassa o número de americanos mortos em conflitos armados desde 1945, a América continua a insistir na ideia demente e artificial de que o País adquiriu um excepcionalismo permanente, o que não é mais do que a experiência de viver e de existir no interior de um enredo artificial criado pelo Supremo Argumentista. A ficção é a realidade. Como tal, todos são actores de uma ficção que tem as consequências da realidade – o polícia que é racista, o negro que é morto, a cidade ensombrada pela experiência da violência simultânea de muitas histórias em canais diferentes, como se tudo não fosse mais do que uma reportagem na Fox News ou uma história sórdida numa série da Netflix.

O Presidente mais parece um vilão de Gotham City. A realidade não importa porque o Presidente cria a sua própria realidade, seja nas breves mensagens no Twitter que chegam para dividir e incendiar a complexa fábrica racial americana, seja em conferências de imprensa surreais onde a América virtual da Casa Branca ganha o brilho de um discurso que voa sobre um ninho de cucos.

Há um fumo de distopia que se liberta do “melting pot” americano, uma espécie de pessimismo cultural disfarçado pelo oportunismo político. O elemento que confere coerência entre os opostos é o controlo e a utilização em benefício próprio dos mecanismos sociais da violência – seja pela violência física, simbólica, seja pela violência sublimada na distribuição de bens e estatuto. Estranho é que este desconforto e esta violência se incorpora nos reality-shows, nos filmes, na música, na literatura, nos infindáveis talk-shows, nos jogos de computador, e que só o brilhantismo comercial da América consegue transformar em produtos para consumo de massa. Esta gramática exerce uma influência sobre o Mundo que se torna imparável, para o bem e para o mal, como se todo o Planeta fosse um episódio na grande série americana.

A América está dividida entre duas narrativas incompatíveis e irreconciliáveis. De um lado, está a visão activista em que a questão do racismo constitui o pecado original da nação americana – racismo que explica a violência policial, a ideia de homicídio, e a suprema reivindicação do direito à justiça. Do outro lado, está a perspectiva do império da lei e a exigência do respeito pela ordem constitucional e pela lei do lugar. Entre as duas narrativas a ideia de coexistência pacífica simplesmente desaparece, e quando tal acontece a fricção entre as placas é o néon incandescente de uma qualquer forma de desintegração.

Estas duas Américas nunca se encontram, e para além de uma classe média em recessão, o cenário permite o zoom entre o passeio onde vivem os sem-abrigo que vão debitando automaticamente a frase: “Can you spare a dime, brother”; e o subúrbio fortificado com cartazes plantados no jardim com a seguinte informação: “Attention – The Owner of this Property is Armed”. Barack Obama acreditava que a América iria mudar quando visse duas crianças negras a brincar nos jardins da Casa Branca. A morte de George Floyd vem provar que a América continua a ser a Cidade na Colina no eterno labirinto dos guetos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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