ANA, uma privatização e as suas circunstâncias

Parece-me difícil fazer uma análise crítica justa do momento e dos termos da privatização da ANA ignorando que o estado de necessidade grave em que o país se encontrava no período 2011-2014.

Uma auditoria do Tribunal de Contas (TdC) arrasou a privatização da ANA levada a cabo pelo governo de Pedro Passos Coelho entre outubro de 2012 e outubro de 2013, (em resposta a compromissos assumidos nos MoU assinados por José Sócrates com a troika). As conclusões foram amplamente divulgadas e usadas como arma de arremesso na refrega política em curso.

Havendo outras de ordem processual, destacaria três conclusões da auditoria:

  • A venda foi intempestiva pois foi realizada num contexto adverso (designadamente de recessão) e, assim, não terá maximizado o valor do encaixe;
  • O desinvestimento total na ANA foi ao arrepio do que acontece na maioria da UE, onde o Estado permanece com interesses significativos nas empresas congéneres, e privou o Estado de poder beneficiar da participação em lucros futuros acima dos antecipados;
  • Os termos da alienação conduziram à criação de um monopólio privado de exploração do serviço aeroportuário nacional durante 50 anos, privando o país dos potenciais benefícios de uma solução concorrencial.

As conclusões do relatório do TdC incomodaram-me por três ordens de razões: a insensibilidade face ao contexto vivido na altura da privatização; a ligeireza da argumentação de que a receita não terá sido maximizada; a existência de uma contradição lógica entre as críticas que destaquei. Vejamos.

Não obstante o TdC referir os compromissos decorrentes do MoU e do Plano de Assistência Económica e Financeira assinados com a troika em maio de 2011, e que incluíam a privatização da ANA até ao final de 2013, o relatório parece não retirar daqui as devidas consequências, analisando a privatização como se tivesse “surgido no vazio”. Mas não! O país encontrava-se numa situação de emergência financeira e dependia dos continuados desembolsos das três instituições internacionais. Relembremos, a propósito, que os acordos faziam depender esses desembolsos da conclusão positiva de avaliações de condicionalidade, com periodicidade trimestral. Entre muitas outras condições, impunha-se a aceleração do programa de privatizações previsto até 2013 (e que abrangia transportes (Aeroportos de Portugal, TAP, e a CP Carga), energia (GALP, EDP e REN), comunicações (Correios de Portugal), e seguros (Caixa Seguros), bem como uma série de empresas de menor dimensão). E era necessário, também, reduzir o défice das Administrações Públicas para 3,0% do PIB em 2013 e trazer o rácio dívida pública/PIB para uma trajetória descendente a partir de 2013.

O contexto em que ocorre a privatização da ANA é, pois, um de “vender os anéis para salvar os dedos”. A principal preocupação do governo de então em matéria de privatizações era obter o maior encaixe possível no curto prazo, e usá-lo para reduzir o défice (mais tarde viu-se que para o Eurostat isto não era assim tão pacífico) e a dívida pública (fim para o qual foram afetados cerca de mil milhões de euros resultantes da alienação da ANA). O valor da venda (aproximadamente 3,1 mil milhões) foi alto ou baixo? Ninguém sabe ao certo. O que é certo é que este 26% acima da segunda oferta mais elevada.

É certo, ainda, que preocupação primeira com o encaixe imediato – resultante, como vimos, dos condicionalismos dos MoU – permite entender outras características da venda que são objeto dos reparos do TdC. Todos concordarão facilmente que o valor de uma empresa em regime de monopólio é superior ao da mesma empresa em ambiente concorrencial. Portanto, ao sacrificar a concorrência, o governo estava a privilegiar o valor da venda. A necessidade de maximizar o encaixe imediato justifica, também, a alienação integral, contrastando com o que parece ser a preferência do TdC. O Tribunal parece-me cair aqui no erro comum de pensar que o encaixe de uma privatização a 50%, digamos, é 50% do encaixe de uma privatização a 100%.

Resumindo. Parece-me difícil fazer uma análise crítica justa do momento e dos termos da privatização da ANA ignorando que o estado de necessidade grave em que o país se encontrava no período 2011-2014.

Teria sido preferível uma privatização que salvaguardasse a concorrência (nomeadamente quanto aos direitos sobre o NAL)? Teria! Teria sido preferível ir privatizando por partes, eventualmente esperando que as condições de mercado melhorassem? Talvez! Mas nenhuma destas alternativas permitiria um encaixe financeiro imediato tão elevado ou cumpriria os compromissos internacionais.

 

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