
Anjos e demónios
A vida em sociedade tem custos e um deles é ouvirmos coisas de que não gostamos.
Há três anos, uma humorista constatou que uns cantores entoaram mal o hino nacional. Entre erros na letra, desafinação e invenções harmónicas, com um pequeno vídeo caricaturou o sucedido. Envergonhados, os cantores riram-se da situação e brincaram com o resultado nas suas redes – afinal de contas, todos erramos. Isto é história alternativa. Tudo podia ter sido assim, mas os Anjos não quiseram.
Orgulhosamente, dizem agora que pediram à internauta que retirasse o vídeo e se autocensurasse. Em tribunal, enquanto pedem mais de um milhão de euros de indemnização por danos causados (por uma piada!), falam em provas de triatlo, ataques de acne e vidas arruinadas. Por um momento esqueçamo-nos de que é contra a Joana Marques e apreciemos o ridículo da situação. Um milhão de euros por uma crítica musical em forma de vídeo. Que prejuízos pode causar?
E mesmo que cause, é absolutamente indiferente. É indiferente por duas razões. Primeiro, porque qualquer um de nós tem direito à sua opinião, desde que não difame ou, inequivocamente, cause dano, como brilhantemente Stuart Mill exemplifica com o caso do produtor de milho. Em segundo, porque manifestamente, neste caso, a Joana Marques não disse nada. Limitou-se a cortar bizarrias entoadas pelo dueto e intercalá-las com caretas suas e dos seus colegas jurados dos Ídolos. Apenas apontou para algo que todos pudemos ver em direto na SportTV. Se alguém aqui gerou dano não foi a Joana com um vídeo de evidente pouco alcance, mas os Anjos pelo péssimo arranjo que fizeram.
O caso já fez correr muita tinta e a esta altura já não vale a pena chover no molhado. Contudo, ainda não consegui ouvir uma (peço apenas uma) opinião sensata que dê razão aos queixosos. Estiveram mal naquele dia em Portimão e têm andado muito mal com as figurinhas que têm feito um pouco por todos os canais. E sim, se, daqui para a frente, o negócio arrefecer, podem culpar-se a si próprios, porque, agora, é que não os queria ter numa romaria que organizasse. Talvez não seja verdade que toda a publicidade é boa. Parece-me que esta tem sido péssima e fico feliz que lhes tenha saído o tiro pela culatra.
Mas mais relevante que este caso, no mínimo, esdrúxulo, tem sido a formação, mais ou menos natural, do clube de lesados do “Extremamente Desagradável”. Devo confessar-me ouvinte diário e religioso do podcast e seguidor dos espetáculos da Joana já de há uns anos a esta parte. Logo, ouvi os episódios de que esta gente toda se queixa e se há mérito que dou à forma de estar da Joana Marques é a coragem com que se propõe a rir de qualquer um, mas principalmente daqueles que se julgam especiais. Daqueles que são incapazes de se rir de si próprios, que se levam demasiado a sério, ou arrogantemente se reclamam como superiores ou mais inteligentes que qualquer um de nós. Esta gente tem de ser desarmada e não há melhor ferramenta para isto que o desconcertante humor.
No meio de tanto desvario que temos visto e lido nestas semanas, nada ultrapassa a ultrajante publicação da jornalista Sandra Felgueiras. Nas suas redes sociais, deu-se à tristíssima figura de conseguir escrever, em poucas linhas, o texto mais abjeto que li em muito tempo. Desde comparações a Hitler, aos Ayatollahs, passando por violações de mulheres, o humor e a própria Joana Marques naquele texto foram acusados de tudo. Sobre o véu de uma falsa preocupação moral com o estado da sociedade e da paz no mundo, usando-se das já habituais falácias da derrapagem e argumentos de autoridade duvidosos, a pivot da TVI conseguiu demonstrar por a+b que, no meio desta história, era possível fazer pior que os Anjos.
Pela excentricidade do caso, somos quase levados a pensar que se trata de um ataque isolado à liberdade de expressão, de uma distopia distante, mas não. A filosofia dominante de ‘a tua liberdade acaba quando a minha começa’, acompanhada de um relativismo absoluto desses limites e dos sentimentos associados, põe profundamente em causa a nossa liberdade coletiva. E casos como o de Leo Lins colocam o problema completamente a nu – os censores andam por aí.
A vida em sociedade tem custos e um deles é ouvirmos coisas de que não gostamos. Mas nesta infantilização coletiva a que as nossas sociedades vieram parar, muitos são aqueles que, não estando preparados para a discórdia e para a crítica, querem ver os tribunais a intervir. Também aqui querem um Estado papá que os proteja do incómodo da liberdade dos outros. Para esses, se não estão prontos para esta parte do contrato social, talvez o melhor fosse mesmo recolherem-se ao silêncio de um convento — onde o humor não os possa ofender.
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