Ano novo, Diretiva nova. A Tributação dos Grandes Grupos Multinacionais

Em Portugal, este tema tem sido essencialmente ignorado ou então negligentemente abordado. Parte da razão terá possivelmente que ver com a abordagem adotada pelo Ministro das Finanças Fernando Medina.

No passado mês de dezembro, com Lisboa inundada e após meses de reticências húngaras e polacas, o Conselho Europeu aprovou a Diretiva comunitária relativa a um “nível mínimo mundial de tributação para os grupos de empresas multinacionais e grandes grupos nacionais na União”, comumente conhecida como Diretiva Pilar 2 (em referência às regras elaboradas pela OCDE que lhe serviram de base).

De um modo geral, a presente Diretiva prevê que os grupos de empresas cujas receitas anuais consolidadas excedam os 750 milhões de euros tenham de assegurar que, em cada uma das jurisdições em que as suas entidades estejam estabelecidas, a sua taxa efetiva de imposto sobre o rendimento não fica abaixo dos 15%. Caso tal suceda, a casa-mãe terá de pagar a diferença em imposto no seu país, a menos que a jurisdição das afiliadas passe a cobrar um imposto “complementar” nacional que empurre essa taxa efetiva para 15%. Por outro lado, mesmo nos casos em que a casa-mãe se encontre numa jurisdição que não aplique este regime, a Diretiva prevê que tal imposto compensatório relativo a todo o grupo terá ainda assim de ser pago e repartido por quaisquer das empresas do grupo localizadas na União Europeia (ou noutros países participantes) – uma regra que certamente dará “pano para mangas” nos tribunais.

É verdade que estão previstos alguns mecanismos de atenuação baseados nos já habituais “critérios de substância” (nomeadamente, o volume de custos salariais suportados numa determinada jurisdição ou o valor dos ativos tangíveis aí localizados), bem como uma regra de minimis que excluirá jurisdições em que as receitas fiquem abaixo de 10 milhões de euros e os lucros forem inferiores a 1 milhão de euros. Mas, caso contrário, não haverá como evitar, por exemplo, o impacto deste novo regime na generalidade dos incentivos ao investimento baseados em deduções à coleta de imposto, de que variadíssimas empresas em Portugal beneficiam. Uma filial de um grupo multinacional que vise estabelecer-se em Portugal para beneficiar, entre outras, de condições fiscais favoráveis ao investimento em novos estabelecimentos nas zonas menos desenvolvidas do País (e da Europa…) ou em investigação e desenvolvimento deverá agora pensar três vezes antes de prosseguir com tais investimentos.

Em Portugal, salvo algumas exceções, este tema tem sido essencialmente ignorado, ou então negligentemente abordado. Parte da razão terá possivelmente que ver com a abordagem adotada pelo Ministro das Finanças Fernando Medina a este respeito. Em julho do ano passado, quando questionado sobre o tema pelo deputado Bernardo Blanco da Iniciativa Liberal, e perante a evidência de que a Estónia havia exigido a compatibilidade da Diretiva com o seu regime fiscal, Medina fez questão de vincar, em tom aparentemente tranquilizador, que “a Diretiva aplica-se a volumes de negócios superiores a 750 milhões de euros, (…) e por isso a negociação de exceções relativamente a esta matéria não me pareceu que fosse uma dimensão que Portugal devesse prosseguir” (min. 59) [1]. Ora, como já vimos, esta maneira de colocar a questão é falaciosa. Uma filial em Portugal poderá estar sujeita ao imposto complementar da Diretiva desde que:

i) as receitas do grupo internacional a que pertence ultrapassem o limiar de 750M€;

ii) as receitas e lucros do grupo em Portugal excedam os previstos na regra de minimis [2].

Portanto, tendo o grupo receitas consolidadas superiores a 750M€ de euros, o valor de referência a nível nacional não serão os 750M€ de volume de negócios, como afirmou o Ministro, mas sim, principalmente, os 10M€ de receitas e o 1M€ de lucros (valores médios entre o exercício presente e os dois anteriores). E mesmo esses lucros e receitas serão vistos, como referido, pela soma de todas as entidades estabelecidas no País e não somente a nível individual.

Com efeito, este regime foi em parte “costurado” tendo como referência um outro mecanismo de promoção de transparência fiscal ao nível das multinacionais, o denominado Country by Country Report (CbCR, vertido no art. 121.º-A do nosso Código do IRC).

Nos termos do CbCR, os grupos multinacionais cujo total de rendimentos exceda os 750M€ são já também obrigados a declarar às autoridades fiscais dos seus países os lucros obtidos nas diversas jurisdições onde se encontram estabelecidos, bem como o imposto sobre o rendimento que aí foi pago, cabendo a cada filial indicar à respetiva Autoridade Tributária qual a jurisdição em que o seu grupo entregará a respetiva declaração.

Quer isso dizer que, no caso de Portugal, uma antecipação do número de empresas abrangidas pela nova Diretiva pode ser estimada com base no número de declarações CbCR entregues no nosso país. Os deputados da Iniciativa Liberal questionaram o Governo sobre o número de declarações entregues e a resposta do próprio Ministério das Finanças não é nada abonatória da primeira abordagem do ministro Fernando Medina a este tema: desde 2018 até 2021, o número de entidades declarantes nunca foi inferior a 3000, pelo que será de esperar que o número de empresas abrangidas pela nova Diretiva, mesmo considerando a regra de minimis, possa facilmente vir a cifrar-se nas centenas ou até milhares.

Mas não é só o Governo que parece ainda não ter prestado a devida atenção às implicações e regras da Diretiva. O Grupo Parlamentar do Chega, cujo líder, André Ventura, foi em tempos jurista da Autoridade Tributária, apresentou no âmbito do OE de 2023 uma proposta de redução transversal da taxa de IRC para 15%, alegando que “a aplicação de uma taxa máxima [sic] de 15% sobre o lucro das empresas vai ao encontro da proposta da OCDE” e que “não é lógico … que uma multinacional que, potencialmente, possui lucros mais elevados possa vir a beneficiar de uma taxa de IRC inferior a uma micro, pequena ou média empresa.” Se o presente artigo tiver sido minimamente bem-sucedido na sua explicação da lógica subjacente à Diretiva Pilar 2, o leitor não terá neste momento dúvidas de que a interpretação feita pelo Chega esbarra flagrantemente contra o sentido das normas aprovadas, o que mais uma vez se revela sintomático da leviandade com que este tema está a ser abordado por muitos dos decisores políticos em Portugal – não augurando nada de bom para o processo de transposição e adaptação da Diretiva ao panorama fiscal português, que terá de estar concluído até ao final deste ano, para início de aplicação em 2024.

Seja como for, no final do dia, a Diretiva faz ou não sentido?

Muito se tem discutido internacionalmente a este respeito desde que a OCDE apresentou o seu primeiro relatório blueprint em 2020, ainda então na sequência de um plano de ação inicialmente elaborado em 2015 para abordar os “desafios fiscais suscitados pela digitalização”. Em geral, é de esperar que as hostes políticas mais “sociais” tendam a engrandecer os fitos de “justiça fiscal” vertidos neste regime (pelo menos até perceberem as suas potenciais implicações, como, por exemplo, uma menor margem de captação e retenção de investimento externo por via de benefícios fiscais contratuais…), ao passo que as hostes mais “empresariais” verão tudo isto como mais um nó sufocante de burocracia e compliance em redor do pescoço do tecido empresarial europeu (em contraste com os orçamentos cada vez mais abastados das organizações internacionais responsáveis por gizar e implementar este tipo de regimes…).

Pessoalmente, tentando porventura ver o “copo meio cheio”, e aproveitando ainda a época de resoluções de Ano Novo, gostaria de acreditar que a presente Diretiva terá como efeito benéfico trazer de volta as grandes empresas para uma posição mais assertiva e vincada a respeito da carga fiscal suportada – não só por si, como pela iniciativa privada em geral –, ao invés de continuarem a cair um pouco na tentação de “passar entre os pingos da chuva” para não terem de medir forças com governos (e opiniões públicas…) cada vez mais rapinadores. Mas como só a morte e os impostos são certezas na vida, o tempo o dirá.

[1] Não posso também aqui deixar passar a forma como, já em dezembro, numa das últimas reuniões do Ecofin (a que assisti por este tema ainda estar em cima da mesa), o ministro Fernando Medina achou igualmente por bem apresentar a inação do Governo como motivo de orgulho. O momento deu-se quando, graças ao representante francês, a discussão resvalou para um típico ritual de engalanamento da parte de cada país candidato a acolher a sede da nova Autoridade Europeia para o Combate ao Branqueamento de Capitais (AMLA). Após França, Espanha, Luxemburgo, Áustria ou, a meu ver mais simbólico, Lituânia (com o argumento da sua atratividade para fintechs e criptoativos) terem discorrido sobre as grandes virtudes das respetivas candidaturas, o nosso ministro, certamente num momento visto pelo próprio como de grande audácia, pediu a palavra para dizer o seguinte: “Queria apenas dizer que, apesar de sermos quem tem as melhores condições, não vamos avançar com uma candidatura” (12:47), ao que se seguiu uma risada condescendente da parte dos restantes participantes. Se temos as melhores condições, o que é que o Governo anda a fazer?

[2] Mesmo que as receitas e lucros não excedam os limiares de minimis, a filial em Portugal poderá também estar sujeita a imposto complementar nos casos descritos mais acima no segundo parágrafo. Para além disso, importa notar que o limiar de minimis deve ser analisado com referência aos lucros determinados nos termos do regime. Quer isto dizer que, para garantir que estão excluídas da aplicação do imposto complementar num determinado ano (por ficarem abaixo dos limiares de minimis), as entidades pertencentes aos grupos multinacionais abrangidos terão ainda assim de efetuar uma estimativa com base nos ajustamentos previstos no regime, pelo que em termos técnicos se pode dizer que se encontrarão sempre sujeitas à Diretiva (e a alguns dos seus custos de compliance). Para os primeiros anos de aplicação, contudo, a OCDE já sugeriu algumas medidas de simplificação ou, por assim dizer, “condescendência” administrativa.

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