Aquiles, e os três calcanhares da inovação europeia
Regulamentar contra perigos conhecidos é necessário, mas a regulamentação preventiva tem sufocado a inovação. É a velha história do medo que paralisa, e do controlo que congela.
Quantas vezes ficamos a pensar em algo que nunca nos tinha passado pela cabeça? Numa recente entrevista à Sifted, Herrmann Houser, investidor de capital de risco e partner da Arm Holdings, que apoiou e provavelmente a principal razão pela qual a Apple sobreviveu nos anos 90, afirmou que a Europa ainda precisa — e muito — de peças em falta: financiamento e cultura de gestão, regulação e inovação descentralizada e, finalmente, investigação e transferência de tecnologia.
A afirmação parece um prefácio ao relatório sobre o “Futuro da Competitividade Europeia”, que Mario Draghi apresentou na segunda-feira, 9 de setembro: o antigo primeiro ministro italiano e ex-presidente do Banco Central Europeu sustenta aquilo que muitos especialistas, empresários, empreendedores e investidores estão cansados de dizer: os países da União Europeia precisam de puxar os cordões à bolsa, ou, trocando por miúdos, precisam de investir até 800 mil milhões de euros por ano para se manterem competitivos face a economias como a norte-americana ou a chinesa.
Vamos por partes e foquemo-nos num dos objetivos primordiais deste documento, que tem como foco recuperar a liderança europeia em matéria de inovação, posição perdida em indústrias-chave, particularmente no setor tecnológico, nomeadamente em questões ligadas à revolução digital e à internet. Para começar, e falando de financiamento e cultura de gestão, faltam-nos ambos. Dinheiro e cultura estão em falta na Europa e existe um enorme gap no financiamento das startups na Europa, particularmente quando olhamos para os projetos em growth stage. Segundo os dados mais recentes divulgados pelo Banco Europeu de Investimento, a média de financiamento numa empresa com 10 anos na Europa, em fase scaleup, está abaixo de 300 milhões de dólares, sendo que, em São Francisco, empresas com o mesmo perfil conseguiram investimento na ordem dos 500 milhões de dólares. Médias valem o que valem, mas alguma coisa os números indica.
Regulamentar contra perigos conhecidos é necessário, mas a regulamentação preventiva de danos teóricos para tecnologias emergentes, como a IA de open source, tem sufocado a inovação. É a velha história do medo que paralisa, e do controlo que congela.
Mas o financiamento não é o único problema quando falamos de scaleups: outro desafio está relacionado com talento e com a gestão do mesmo em cada fase e em cada área da empresa. Em Silicon Valley, é possível ter gestores a gerir negócios com valores de 500 a 1.000 milhões numa qualquer área de negócio da Apple, HP, Google ou Facebook, e podemos abordar uma série deles: “Queres vir gerir esta startup XYZ?”. Na Europa, em contrapartida, não temos cultura de pessoas experientes em gerir este tipo de negócios. Isto acontece, por um lado, porque não há Big Tech na Europa: os maiores negócios europeus estão em negócios mais tradicionais, como por exemplo, no retalho, com empresas como LVMH ou Hermès, ou o gigante Novo Nordisk a liderar. Pode levar mais décadas a ser resolvido, se a Europa passar a preocupar-se em corrigir os mercados de capitais e problemas de exits.
Paralelamente, nesta entrevista para o The Economist, Mark Zuckerberg e Daniel Ek comentam a “dura realidade” de que “as leis destinadas a aumentar a soberania e a competitividade europeias estão a conseguir exatamente o oposto”. “A Europa está particularmente bem posicionada para aproveitar a onda de IA de open source. No entanto, a estrutura regulatória tão fragmentada, repleta de implementações inconsistentes, está a prejudicar a inovação e a atrasar quem a desenvolve”, afirmam, assinalando que, “em vez de regras claras que informam e orientam as empresas que fazem negócios em toda a Europa, a indústria tech enfrenta regulamentos sobrepostos e orientações inconsistentes sobre como cumpri-los. Sem alterações urgentes, as empresas europeias, académicos e outros, correm o risco de perder a próxima onda de investimentos em tecnologia e oportunidades de crescimento económico.”
Regulamentar contra perigos conhecidos é necessário, mas a regulamentação preventiva de danos teóricos para tecnologias emergentes, como a IA de open source, tem sufocado a inovação. É a velha história do medo que paralisa, e do controlo que congela. Daí que defendam a simplificação e harmonização das regulamentações, aproveitando os benefícios de um mercado único, mas diverso. “A Europa precisa de facilitar a criação de grandes empresas e fazer um trabalho melhor em reter os seus talentos. Muitas de suas mentes mais brilhantes em IA optam por trabalhar fora da Europa.” Elementar, meus caros!
As universidades no Triângulo Dourado — Oxford, Cambridge, Imperial, UCL e King’s College London — são responsáveis por um terço dos spin-offs, quatro em cinco empresas de capital de risco e private equity estão em Londres, e 60% de todos os negócios são fechados apoiando empresas na capital e no Sudeste. (…) Insanidade é que muitas ideias inovadoras do Reino Unido se transformem em empresas… nos Estados Unidos. E esta?
Terceiro calcanhar da “Europa de Aquiles”: investigação e transferência de tecnologia. No mais recente estudo do UKONWARD, afirma-se que o desempenho “abaixo do esperado” do Reino Unido, analisando o número de spin-offs universitários. Diz a investigação que, à escala mundial, frequentemente falhamos nos spin-outs para empresas ou startups. A resposta para este problema virá, provavelmente, de um menor envolvimento das universidades. A academia tende a saber pouco sobre gestão e negócios por isso, em tom de piada, diria que quanto menos eles estiverem envolvidos, melhor para todos. No entanto, as universidades não deixam de ser espaços onde a inovação encontra catalisadores naturais, seja o contacto com um mercado ávido de experimentar coisas novas, pelo idealismo natural da idade da maioria das populações ou, até, pela quantidade de conhecimento “transacionado” diariamente.
As universidades no Triângulo Dourado — Oxford, Cambridge, Imperial, UCL e King’s College London — são responsáveis por um terço dos spin-offs, quatro em cinco empresas de capital de risco e private equity estão em Londres, e 60% de todos os negócios são fechados apoiando empresas na capital e no Sudeste. País altamente centralizado permanece altamente centralizado, o que não é realmente uma surpresa. O Reino Unido provavelmente não vai mudar. Ou vai? Insanidade é que muitas ideias inovadoras do Reino Unido se transformem em empresas… nos Estados Unidos. E esta?
A emergência de novos paradigmas em ciência e inovação não é tanto um resultado da ação governamental, mas sim da capacidade do mercado de responder às mudanças tecnológicas e sociais. Por isso, o futuro da ciência e da inovação depende menos de intervenções estatais e mais de nossa disposição em confiar no poder criativo e disruptivo do mercado livre.
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