As agruras da inflação

Dada a incerteza no fornecimento de energia, da duração da guerra, dos obstáculos ao comércio internacional e das decisões de política monetária, as agruras da inflação continuarão em 2023

O INE publicou esta semana a estimativa rápida da inflação para Janeiro de 2023, mostrando uma desaceleração no crescimento dos preços. O mesmo aconteceu em outros países e os festejos já começaram. Os festejos são impulsionados pelos governos que endividaram os seus países e por isso querem uma política monetária expansionista que se traduza em taxas de juro mais baixas mesmo que isso possa provocar maior inflação, e pelos advogados da inflação temporária que querem ter a sua tese vindicada.

Mas o INE é bem claro quando explica que a desaceleração se deve especialmente à redução da velocidade na subida do custo da energia, um mercado altamente intervencionado. Os produtos alimentares não transformados, pelo contrário, registaram uma aceleração para 18,5% (em Dezembro foi de 17,6%).

Se compararmos os valores de 2022 em Portugal para a inflação (8,1%, índice harmonizado) com o crescimento médio dos salários (4,5%, a estimativa do Banco de Portugal em Junho passado, quando ainda defendia a ideia de que a inflação era temporária apesar de prever uma inflação anual de 5,9% – em Maio apontava para 4% e em Dezembro de 2021 para 1,8%), vemos que a quase totalidade dos portugueses perdeu poder de compra no ano passado. E esta perda não foi pequena, cerca de 3,5% do rendimento obtido via salários e, por isso, uma das agruras da inflação.

Esta perda de poder de compra foi maior nas famílias mais carenciadas. Como escrevi aqui, a subida dos bens essenciais adquiridos pelas famílias mais pobres foi muito superior à taxa de inflação verificada, e este problema ainda se agravou mais em Janeiro de 2023, pelo que a eliminação temporária do IVA sobre estes alimentos se tornou um imperativo moral, pelo menos por quem não se fica apenas pelo discurso e tem uma preocupação real pelos mais necessitados. Os governos de outros países perceberam-no rapidamente, o português ainda não chegou lá.

As famílias da classe média podem substituir bens e serviços que sejam mais caros por outros mais baratos, mesmo que isso signifique uma perda de qualidade no consumo. Mas as famílias mais pobres já compram os bens mais baratos que o mercado disponibiliza, pelo que não têm alternativa à subida de preços que, no caso de alguns alimentos essenciais, ultrapassaram os 40% em 2022. Esta realidade mostra outra das agruras da inflação e que é uma das suas mais graves consequências: o surgimento de notícias sobre o aumento do número de famílias falidas (aqui).

As expectativas para 2023 são para que haja uma desaceleração na velocidade de crescimento dos preços, mas isso significa apenas que vão aumentar menos e não que vão baixar, como a SIC recentemente dizia aos portugueses ao perguntar se já sentiam a diferença nas compras pelo abrandamento da inflação.

O menor crescimento dos preços é sempre um bom sinal, mas a questão relevante é se a inflação vai diminuir suficientemente ou se a política monetária terá de continuar a ser restritiva para se poder corrigir os erros dos últimos anos. O controlo da inflação é um objectivo estatutariamente estabelecido e enquadrado pela garantia de independência dos bancos centrais e a gestão da política monetária nos últimos anos falhou redondamente nesse aspecto. As consequências para os responsáveis deste falhanço foram nulas, pelo menos até agora, apesar da sua credibilidade ter sido negativamente afectada.

Ricardo Reis, provavelmente o economista português mais consagrado a nível internacional, divulgou no ano passado um “working paper” sobre quatro possíveis razões para que a política monetária tenha falhado na prevenção do crescimento da inflação, a saber:

  1. Diagnóstico errado sobre a natureza dos choques num período de grande incerteza (pandemia) que conduziu á excessiva “duração” de uma política monetária expansionista quando a recuperação económica foi muito mais rápida do que acontecera em recessões anteriores.
  2. Actuação negligente face às expectativas dos agentes económicos, causada por uma forte convicção de que essas expectativas de inflação estavam firmemente ancoradas e que, por isso, os aumentos da inflação seriam apenas temporários – o Banco de Portugal.
  3. Confiança excessiva na credibilidade da política monetária conquistada após a crise do Euro, criando a ilusão de existir demasiada margem de manobra para se concentrar na recuperação da actividade real e subestimar os seus efeitos na inflação.
  4. Revisão da estratégia que tornou os bancos centrais tolerantes a uma inflação mais elevada devido à tendência de queda no retorno das obrigações do Estado, i.e., para ajudar os países a sustentarem as suas dívidas elevadas, mas ignorando que o retorno do capital privado se manteve mais elevado causando uma distorção na alocação do seu stock em prejuízo do investimento produtivo.

Essencialmente, apesar de não o dizer desta forma, Reis aponta para 3 possíveis razões no comportamento errado doas autoridades monetárias para o aparecimento de inflação: Incompetência dos bancos centrais nos três primeiros casos, mas especialmente no primeiro onde houve uma interpretação errada da informação disponível: no segundo e terceiro casos excesso de confiança dos gestores da política monetária; e no quarto interferência dos governos que provocou a diminuição, de facto, da independência dos bancos centrais.

A questão agora é se os problemas identificados vão ser mitigados ou se se vão resolver ao longo de 2023. A política monetária está a mudar de expansionista para restritiva após a fábula da inflação temporária ter sido “desmascarada” e as taxas de crescimento dos preços terem ultrapassado os 10%. Esta mudança resolveu, pelo menos por agora, as razões 1 e 3.

Mas os outros problemas persistem. As expectativas das famílias e das empresas relativamente à inflação futura são agora menos claras, o que vai dificultar as suas decisões futuras em termos de consumo e de investimento, prejudicando o crescimento económico. Esta é outra das agruras da inflação.

Para além destas questões, há ainda outras três, mais estruturais, que também vão ajudar a definir se o nível da inflação em 2023 e nos anos seguintes será muito inferior ao de 2022:

  1. A tendência de envelhecimento da população europeia, o decrescente rácio entre trabalhadores activos e a população total e a baixa taxa de natalidade irão pressionar no sentido ascendente o endividamento público e privado, e com ele, os preços;
  2. A redução do efeito deflacionário da globalização dos mercados pela menor oferta de trabalho do sudeste asiático e de outras regiões, e pelo crescimento do proteccionismo na UE e nos EUA, retirará pressão para a desaceleração do crescimento dos preços;
  3. O elevado e crescente nível de endividamento dos governos, que não só causa pressões inflacionistas como está inversamente associado ao crescimento económico pela maior carga fiscal que exige.

O que se observa é que a pressão dos governos para que a política monetária passe a ser mais acomodatícia face à divida que contraíram está cada vez mais presente. Os bancos centrais estão já a reagir a esta pressão, e esta semana observou-se uma menor subida na taxa de juro de referência do FED. Mas a possibilidade de se repetir o erro do passado recente de optar por uma política monetária excessivamente expansionista para sustentar o endividamento dos governos é muito real e pode conduzir a novas agruras da inflação.

No fim de tudo, e dada a incerteza que persiste a nível do fornecimento de energia, da duração da guerra, dos obstáculos ao comércio internacional e das decisões de política monetária, apenas podemos estar certos de uma coisa para os próximos tempos: as agruras da inflação continuarão a fazer-se sentir nas nossas vidas ao longo de 2023.

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