As decisões políticas na crise de Covid-19

Se se antecipar que vamos enfrentar uma situação dramática como aquela que se vive em Itália, é da responsabilidade da liderança politica decidir já, preventivamente.

Como se sabe, a família de coronavírus é conhecida desde os anos 60, tem vários tipos de vírus e afectava principalmente os animais. Em 2002 foi, pela 1ª vez quebrada a barreira das espécies e o vírus passou para a espécie humana, causando a epidemia SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome), na China em 2002.

Apesar deste precedente (e de outros que se seguiram em 2009 – Asian Flu – e 2014 – MERS-Middle East Respiratory Sindrome) esta pandemia tem (e terá) consequências muito mais profundas e duradouras porque, na ausência de medicamentos específicos e de uma vacina para a combater, e tendo em conta o rápido e elevado contágio, a única arma eficaz é o chamado distanciamento social, o que leva à imposição inevitável de quarentenas rígidas que as democracias, como os países da UE e os EUA, tem uma grande dificuldade de impor (ao contrário da China).

Sem estas quarentenas rígidas não há forma de conter o crescimento exponencial de novos casos e de alcançar uma curva em S por forma a suster a epidemia e dar uma possibilidade aos serviços de saúde de não colapsarem.

A propagação do Covid-19 tem sido feita (como no SARS) de Leste para Oeste mas os países europeus e os EUA , que beneficiaram de um tempo de preparação (que em grande parte desperdiçaram) estão em estados diferentes quanto à evolução no combate à epidemia: estima-se que a Itália precisará de mais 1 a 2 semanas para atingir o pico de novos casos; a Espanha (o 2º caso mais grave na Europa) e a França impuseram quarentenas rígidas há menos tempo que a Itália, Portugal só declarou, recentemente, o estado de emergência, a Alemanha ainda nem sequer impôs qualquer quarentena e o Reino Unido começou por seguir uma estratégia inicial de deixar a população mais exposta ao vírus, concentrando o combate aos 20% dos casos estimados que necessitariam de cuidados hospitalares e intensivos, para depois mudar de orientação no sentido da imposição de distanciamento social através de quarentena (como nos outros países europeus) que ainda não declarou.

Nestes países, na Europa, estamos ainda longe de uma situação que possamos considerar de estável (no sentido de alcançarmos uma curva em S) e portanto mais afastados ainda de podermos dizer que estamos perto de regressar à normalidade.

Uma das situações mais preocupantes tem a haver com o caso dos EUA pelas seguintes razões:

  • O Governo Federal começou por desvalorizar a gravidade da epidemia (Trump de inicio difundiu a ideia que o covid19 era uma espécie de “gripe má” que matava menos que a gripe comum “seasonal flu”, culpou a oposição democrática e a comunicação social – CNN – por “fake news” e alarmismo) e portanto perdeu um tempo precioso para apontar medidas restritivas de distanciamento social a nível global do país , ou seja não existiu uma estratégia geral para o país (só muito recentemente Trump fala em emergência nacional). Nesta epidemia, cada dia conta, e decisões tardias só acabam por tornar a situação ainda pior.
  • Nos EUA as decisões quanto à saúde pública estão em grande parte delegadas nos Estados e assim uma grande parte das medidas concretas de combate à epidemia foram tomadas por iniciativa dos Governadores, mas sem haver uma coordenação efectiva a nível federal e sobretudo sem uma imposição global de uma quarentena rígida, os riscos de propagação rápida e elevada são reais. Até agora só um número mínimo de Estados impuseram quarentenas rígidas. E isto é tanto mais preocupante quanto se trata de um país enorme, em que não se impõem barreiras fronteiriças entre os Estados (que como disse adoptam medidas diferentes), com uma população com grande mobilidade em termos de deslocações territoriais e em que existem 28 milhões de pessoas sem cobertura de saúde (que poderão resistir ao recurso a unidades de saúde, porque terão de pagar) e 11 milhões de emigrantes ilegais que têm razões para resistir ao isolamento.

Por outro lado a imposição de uma quarentena rígida, na China, foi automática devido ao carácter totalitário do regime e nos países europeus a imposição de estados de emergência tem sido aceites pelas opiniões públicas desses países. No caso americano esta aceitação de fortíssimas restrições individuais poderá não ser tão evidente, pelo menos em alguns Estados, dada a cultura enraizada de defesa , por vezes extremada , de liberdades individuais.

É certo que a descoberta de uma vacina e/ou de medicamento(s) especifico(s) para este vírus pode alterar bastante esta situação mas é comummente aceite na comunidade cientifica que uma vacina fiável, segura, de aplicação generalizada apenas existirá num período de tempo entre 12 a 18 meses.

A descoberta de um medicamento específico poderá ser mais rápida. No caso da crise SARS em 2002 (que vivi enquanto ministro da Saúde) foi muito importante a descoberta de um anti-viral (Tamiflu) para debelar a epidemia mas isto só aconteceu passados alguns meses desde o aparecimento deste vírus.

No caso português estamos, ainda, numa fase anterior àquela em que se encontra já grande parte destes países, nomeadamente Itália e Espanha. Por razões de prudência não é de excluir, apesar das medidas tomadas, que venhamos a evoluir para uma situação dramática como aquelas que já hoje se vivem na Espanha e sobretudo na Itália onde, segundo as próprias declarações dos profissionais de saúde transmitidas na comunicação social, o sistema de saúde está à beira do colapso, com consequências funestas para as pessoas que necessitam de cuidados intensivos hospitalares.

Obviamente que as decisões a tomar quanto à evolução futura, numa epidemia, têm que ser suportadas pelo saber cientifico disponível (como aquelas que foram tomadas até aqui) mas isso não afasta a responsabilidade das decisões de liderança a nível político.

Foram decisões políticas tomadas, por exemplo, pela Coreia do Sul (imposição rápida e generalizada de testes), por Singapura (beneficiando da experiência passada do combate ao SARS), e pela China (com medidas restritivas brutais) que permitiram os bons resultados até aqui registados. Mesmo em Portugal assistiu-se a uma tomada de decisão politica (e bem) quanto ao fecho das escolas não seguindo a orientação técnica do Conselho Nacional de Saúde Pública.

Se se antecipar que vamos enfrentar uma situação dramática, como aquela que se vive hoje em Itália (e esta é uma decisão politica), é da responsabilidade da liderança politica tomar um conjunto de acções fundamentais quanto à disponibilidade de recursos (quando forem necessários) que possam fazer face à antecipada deterioração (rápida) da situação actual: profissionais de saúde, camas (mesmo em ambiente não hospitalar), cuidados intensivos, ventiladores, equipamentos de protecção (luvas, fatos) e isto envolvendo as disponibilidades que existam na área militar e nos sectores social e privado e decidir preventivamente a tomada de medidas adicionais mais restritivas (suportadas pelo melhor conhecimento cientifico disponível e na experiência de outros países que já atingiram uma situação mais avançada). Esta eventual decisão politica pode, aliás, ser facilitada pelo suporte, em geral, que as forças partidárias têm manifestado às decisões até agora tomadas.

Porque estamos a antecipar o futuro, esta é uma área da esfera da responsabilidade politica, em que a tomada (ou ausência) de decisões (que serão julgadas pela opinião pública) podem e devem ser suportadas pelo melhor conhecimento cientifico possível, mas que não podem ser substituídas apenas por orientações técnicas.

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