As insólitas interpretações do Fisco

Queremos descomplicar Portugal? Se expurgarmos o que está mal no país, ficaremos com o que está bem e já terá valido a pena.

Passou algo despercebida a notícia de que, segundo o Fisco, o gelado vendido pelo restaurante, com serviço de mesa, para consumo no interior do mesmo, paga IVA a 13% porque faz parte de um serviço de restauração, enquanto o mesmo gelado, vendido pelo mesmo restaurante, mas ao balcão e sem serviço de mesa, para consumo exterior, paga IVA a 23% porque é uma transmissão de um bem.

A notícia é insólita e expõe as facetas do nosso sistema fiscal. Por um lado, mostra que a diferenciação das taxas de IVA, ao contrário do que somos frequentemente levados a pensar, nada tem a ver com a existência de bens e serviços de primeira, segunda ou terceira necessidade. Por outro lado, evidencia o ridículo de uma interpretação fiscal cuja inspecção por parte da Autoridade Tributária, como bem lembraram os especialistas, será na prática impossível de realizar.

A leviandade legislativa é um assunto que me tem ocupado com frequência nestes artigos. Na minha opinião, na ausência de leis devidamente redigidas e entendíveis pelo cidadão comum, Portugal perder-se-á no labirinto da incerteza jurídica e terá dificuldade em progredir. Trata-se, porém, de posição minoritária, na medida em que há importantes agentes da justiça portuguesa que pensam exactamente ao contrário. Será, de resto, esse o caso da Procuradoria Geral da República que, no seu recente parecer sobre conflitos de interesses dos governantes, ficámos há dias a saber, entende que “as normas jurídicas não podem ser interpretadas de forma estritamente literal, devendo atender-se aos demais critérios de interpretação jurídica, entre os quais avulta a determinação da vontade do legislador”.

Ora, no caso da lei tributária, para além da letra da lei, avulta a interpretação que o Fisco faz da mesma. Não sendo um exclusivo nacional, é um problema sobre o qual seria conveniente intervir em Portugal. É, aliás, para reduzir a incerteza associada à diferente aplicação de uma mesma lei que as empresas pedem informações vinculativas à Autoridade Tributária.

Regressando ao exemplo anterior, qual seria a taxa de IVA a aplicar sobre o gelado se o consumidor, tendo iniciado o consumo do gelado na rua após o ter adquirido no restaurante, tivesse decidido voltar para o interior do restaurante sentando-se numa mesa a fim de o saborear ao som de música ambiente?

Assumindo que o facto gerador da exigibilidade do imposto tivesse sido a transmissão inicial do bem, teria o consumidor direito a reembolso de parte do preço pago pelo gelado, e o restaurante direito a crédito de IVA, se a venda passasse a configurar uma prestação de serviço taxada a IVA inferior e exigível apenas aquando da sua realização? E como poderia o restaurante comprovar perante terceiros, designadamente junto do Fisco, a alteração da natureza da venda?

A impraticabilidade do caso anterior não é única. Infelizmente, há outros casos de igual ou maior complexidade interpretativa nos códigos tributários e, em particular, no código do IVA. É o caso do alojamento em estabelecimentos do tipo hoteleiro, previsto na lista de actividades sujeitas à taxa reduzida, relativamente ao qual se estipula o seguinte: “A taxa reduzida aplica-se exclusivamente ao preço do alojamento, incluindo o pequeno-almoço, se não for objeto de faturação separada, sendo equivalente a metade do preço da pensão completa e a três quartos do preço da meia pensão”.

Ora, lê-se e não se entende. O que é que é equivalente a metade do preço da pensão completa e a três quartos da meia pensão? Na dúvida, entramos no campo preferido dos “pareceristas” – especialistas em pareceres –, onde cada qual diz o que quer.

Outro exemplo diz respeito às “Prestações de serviços de alimentação e bebidas, com exclusão das bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias”, que são tributadas à taxa intermédia e relativamente às quais se estipula isto: “Quando o serviço incorpore elementos sujeitos a taxas distintas para o qual é fixado um preço único, o valor tributável deve ser repartido pelas várias taxas, tendo por base a relação proporcional entre o preço de cada elemento da operação e o preço total que seria aplicado de acordo com a tabela de preços ou proporcionalmente ao valor normal dos serviços que compõem a operação. Não sendo efetuada aquela repartição, é aplicável a taxa mais elevada à totalidade do serviço”.

Uma vez mais, lê-se e só muito dificilmente se entende, excepto para concluir que o melhor será aplicar a taxa mais elevada à totalidade do serviço – situação em que, segundo a redacção reproduzida, se estará garantidamente dentro da lei.

Os exemplos anteriores são reveladores de situações que beneficiariam de clareza e simplicidade de redacção. Mas o que sucede é o contrário, num país em que “avulta a determinação da vontade do legislador” seja lá o que isso for. E, assim, em vez de se preocuparem em vender gelados, ou outros bens mais ou menos sofisticados, as empresas continuarão a perder tempo com devaneios interpretativos que nada acrescentam, bem pelo contrário, apenas desajudam e distraem na hora de acrescentar valor.

Queremos descomplicar Portugal? Então comecemos por estes pequenos exemplos. Se expurgarmos o que está mal no país, ficaremos com o que está bem e já terá valido a pena.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

As insólitas interpretações do Fisco

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião