As regras europeias

O governo tem toda a legitimidade em contestar as regras europeias, mas deve fazê-lo no momento certo. Usar o orçamento é puro oportunismo político e é pôr o interesse partidário à frente do país.

Quando Alexis Tsipras ganhou as eleições Gregas, em janeiro de 2015, encetou uma estratégica de forte confrontação com Bruxelas e com os países do centro e norte da Europa. Chegou a convocar um referendo, e após o ter vencido, foi obrigado a impor ao seu país uma austeridade ainda maior.

Tsipras compreendeu, da pior maneira, que a realidade impõe-se sempre à ideologia, por mais romântica que esta última seja. Ou se quiserem, quanto mais romântica for a ideologia, maior é o choque com a realidade.

As regras orçamentais europeias determinam, no âmbito do Tratado Orçamental, que os países da zona euro têm dois momentos no ano em que são sujeitos a uma avaliação pela Comissão Europeia. Em abril, quando entregam o Programa de Estabilidade. Em outubro, quando entregam o seu plano orçamental, em função do Orçamento do Estado que apresentaram nos respetivos Parlamentos nacionais. É o “Draft of Budgetary Plan” (DBP).

Quando apresentaram o DBP para 2016, Costa e Centeno optaram por uma postura de grande conflitualidade com Bruxelas. Havia duas razões políticas: primeiro, agradar aos partidos da extrema-esquerda que sustentam o governo; segundo, procurar ganhar margem orçamental, face às regras Europeias, para que a “compra” de votos de determinadas franjas do eleitorado fosse mais rápida. Para isso, havia que flexibilizar a margem orçamental. Os interesses partidários e de sobrevivência do líder e da clique que o rodeia, sempre à frente dos superiores interesses da Nação.

As regras orçamentais europeias não se limitam a um défice abaixo dos 3% do PIB e uma dívida pública abaixo dos 60%. Elas impõem, desde 2005, mas com maior ênfase, com o Tratado Orçamental, o atingir de um Objetivo de Médio Prazo de um saldo estrutural de -0,5% PIB.

O que é afinal o saldo estrutural? Trata-se do défice orçamental, corrigido do efeito do ciclo económico e de medidas pontuais. Não observável diretamente (ao contrário do défice nominal, que é receitas menos despesas, ou do saldo primário, que é receitas menos despesas sem juros), o cálculo do saldo estrutural obriga ao cálculo do hiato do produto. E a Comissão Europeia tem uma metodologia comum aos Estados Membros.

O que o governo fez no DBP de 2016, em janeiro deste ano, foi confrontar Bruxelas com duas manobras: a primeira foi calcular o hiato do produto, e consequentemente, o saldo estrutural, de forma diferentes do que Bruxelas faz. O segundo foi considerar medidas discricionárias (isto é, que dependem da decisão do governo), que aumentavam o défice (reduzindo a receita ou aumentando a despesa, como o corte na sobretaxa e a reposição de vencimentos na AP), como extraordinárias.

Assim, no papel, Portugal consiga reduzir o saldo estrutural em 0,6 p.p., outra obrigação decorrente das regras Europeias. Como é óbvio, a Comissão Europeia usou a metodologia e as regras existentes. Mas o país perdeu parte da credibilidade que tinha ganho.

Este Orçamento para 2107 já não tem um nível de confrontação com Bruxelas tão elevado. Mas desenganem-se aqueles que acham que as regras europeias, nomeadamente a do saldo estrutural, estão a ser cumpridas. Na melhor das hipóteses, o saldo estrutural irá melhorar 0,2-0,3 p.p., ao invés dos 0.6 necessários.

A minha previsão é que não tenha qualquer melhoria. Mas a Comissão, muito provavelmente, deixará passar com alguns avisos o plano orçamental do governo para 2017.

Tem havido muitas críticas, pelo que é legítimo perguntar se o saldo estrutural devia ser o benchmark da política orçamental? Eu também critico alguns aspetos metodológicos. Mas é importante, nesta discussão, ter em atenção seis aspetos:

  1. Nenhum indicador é infalível, todos terão sempre argumentos contra e falhas metodológicas.
  2. Quem tem criticado a utilização do saldo estrutural, nunca apresentou uma alternativa melhor.
  3. A Comissão até usa a metodologia mais simples para o cálculo do hiato do produto (“filtro Hodrick Prescott”). A do FMI é mais complexa, e a que alguns académicos internacionais usam, ainda mais.
  4. Entre 1995 e 2005 usou-se preferencialmente como indicador de controlo o défice nominal. Como referi, é um indicador observável e de fácil cálculo. Mas tem falhas graves: é mais facilmente manipulável, nem que seja através das medidas pontuais, como programas de recuperação de dívidas fiscais, aumento de dividendos ou outras operações não recorrentes. Mas sobretudo, não considera o efeito do ciclo económico. Vimos em Portugal, entre 1996 e 2001, como a utilização do saldo orçamental gerou um enorme desequilíbrio nas Finanças Públicas. Apesar do crescimento económico em torno dos 4%/ano, da descida das taxas de juro, que na maturidade a 10 anos, passaram de cerca de 15% para valores em torno dos 5% e do plano Mateus para recuperação de receita fiscal, o défice baixou dos 5% para os 3%. Quando a economia entrou em recessão, os juros estabilizaram nos 4%-5% terminando o seu efeito de descida na despesa, e o plano Mateus terminou, o défice orçamental rapidamente, a partir de 2001, passou para os 5% PIB. Com a crise financeira de 2008, o défice subiu aos 10%.
  5. Não é possível manter uma zona económica e monetária, sem regras orçamentais comuns e sem disciplina orçamental. Uma zona Euro que não imponha regras orçamentais exigentes levaria a um “risco moral” por parte dos países mais devedores, transferências orçamentais de um grupo de países para outros e no final, o próprio fim da união monetária.
  6. As regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental foram aprovadas por Portugal, no Parlamento, pelos três partidos democráticos, Europeus e pró economia de mercado (PSD, PS e CDS).

Corolário: se existem regras que são necessárias, se as aceitámos e se elas também são seguidas pelos outros Estados membros, temos de procurar segui-las.

Além que Finanças Públicas sustentáveis, com saldos orçamentais equilibrados, são essenciais ao futuro do país, com ou sem regras Europeias. Por último, não me choca que da parte do governo haja vontade de discutir a metodologia do cálculo do hiato do produto. O que me parece um erro e uma má vontade do governo é querer usar o processo orçamental para essa luta.

Sejamos claros: o governo tem toda a legitimidade em contestar as regras metodológicas. Mas há um sítio e um momento próprio para isso. O processo orçamental deve ser realizado de acordo com as regras existentes, goste-se ou não delas. Usar o processo orçamental, que é um espaço de rigor técnico, em função das opções políticas, para entrar em conflito com Bruxelas, é inútil, ineficaz e sobretudo destrói a nossa credibilidade com os nossos pares.

É puro oportunismo político. É, mais uma vez, pôr os interesses pessoais e partidários acima dos interesses nacionais.

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