Há uma dose de resignação e de incompetência que engole o Executivo como se este fosse um micróbio político. Um micróbio sem responsabilidade que navega ao acaso da pandemia.

Estão os portugueses na “zona vermelha”, designação técnica que nos remete para quarteirões de prostitutas, bairros sociais, urbanizações selvagens, feudos mafiosos, acampamentos de imigrantes clandestinos, enfim, a denominação política para o facto da exclusão e da segregação. Portugal é hoje um território ocupado pela Variante Delta, governado pela biologia do vírus. Na “zona vermelha” os portugueses são como os peixes que não conhecem a água ou como os pássaros que voam sem ar. Os portugueses asfixiam sem o oxigénio da água e sem o oxigénio do ar, resta o oxigénio das Unidades de Cuidados Intensivos. O Governo observa ao longe no interior de uma bolha insensível e estúpida como se nada fosse da sua responsabilidade. É a vida, tenham paciência e é fazer as contas.

Há uma dose de resignação e de incompetência que engole o Executivo como se este fosse um micróbio político. Um micróbio sem responsabilidade que navega ao acaso da pandemia, ora para cima, ora para baixo, no movimento caótico de uma montanha russa. No entanto, são os portugueses que são submetidos a esta instabilidade permanente, a esta insegurança persistente, a este movimento circular que causa náuseas, alimenta o descontrolo emocional e deixa marcas psicológicas para o excelente futuro de Portugal. O Governo nega “responsabilidades políticas”, pois existe uma “matriz de risco” com poderes místico-científicos e relativamente à qual parece que nada há a fazer. Perante o “descontrolo não total da pandemia” existe a força cega de uma paralisia desconcertada.

E estão os portugueses seguros? E estão os portugueses confiantes? E estão os portugueses optimistas? Enquanto houver Europeu há esperança, enquanto houver Selecção a pandemia desaparece com a hora do jogo, o Presidente pode viajar imune para uma qualquer bancada VIP, viaja de “zona vermelha” em “zona vermelha”, numa tournée delirante por uma Europa doente, decadente, deprimente. É a força do escapismo, é a ilusão da normalidade, é a inconsciência que nos rouba a paz e nos consome o coração.

Queixa-se o Governo que está a ser injustamente criticado. Queixa-se o Executivo que isto é uma “corrida contra o tempo”, uma corrida entre o vírus e a vacina no circuito interno da saúde dos portugueses, justifica-se o Governo de que compreende a “fadiga pandémica”, só não reconhece o Executivo a fadiga pandémica causada pelo desleixo, pelo privilégio, pela indiferença, pela ausência de um sentimento de empatia republicana e patriótica por todos os portugueses contaminados pela doença ou em risco permanente nos movimentos pendulares imprescindíveis numa sociedade moderna e cosmopolita. Entretanto, os dados pessoais dos portugueses em estado de calamidade são encaminhados para a Google para distribuição e personalização de conteúdos publicitários. De que devem os portugueses queixar-se?

O que se designa por “gestão da pandemia” em Portugal é a resultante de um infinito número de discursos científicos e pseudo-científicos isolados, omniscientes, omnipresentes, numa competição pela verdade e pela certeza que só gera especulação e incerteza. Com tanta perícia científica, perante um cenário inédito de volatilidade, de ambiguidade, de complexidade, continuamos a desconhecer a origem de 80% dos casos detectados em Portugal. Temos virologistas com as suas teorias, epidemiologistas com as suas conjecturas, matemáticos com os seus modelos, médicos com as suas previsões, juristas com as suas reflexões, uma verdadeira Torre de Babel numa competição sórdida para alcançar o beneplácito de qualquer coisa que já ninguém absorve, percebe ou entende. É um verdadeiro pântano, palavra tão querida ao léxico político nacional, em que todos e cada um negam como Buda a realidade absoluta, negam como Cristo a realidade relativa. Portugal está entregue ao tribalismo científico.

Nesta particular conjuntura, Portugal é governado por uma variante do “cientismo” – o momento peculiar em que a dúvida do inquérito científico se transforma numa representação da autoridade e se expande como uma máquina de produção de valores morais. No recato do laboratório a sequenciação genética e o modelo matemático deslocam-se como travestis da política.

E a política segue o travesti da política. Perante o cisne negro, face a uma situação nova, perante a incerteza radical, face a um futuro não descrito pela ideologia, o Governo entra na floresta da pandemia como uma criança assustada. Armado com as limitações, preconceitos e vícios de uma cultura de gabinete, transportando apenas uma bússola luminosa e digital, o Executivo só sabe que tem de olhar para o mostrador do aparelho e seguir as instruções do cientismo instalado. Incapaz de ver a floresta, o Governo choca permanentemente com as árvores, choca permanentemente com a realidade. Mas continua a seguir a bússola digital. E onde ficam os portugueses?

O Executivo está refém de uma “visão em túnel” e não é capaz de uma percepção política mais extensa e mais contextual. Ser Napoleão e ser Maquiavel, perceber o “estranho normal” para reconstruir o “normal convencional”. E nos intervalos saber ler os silêncios que se evaporam da sociedade.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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Asa Delta

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