
Autárquicas, um espelho do futuro político português
As eleições autárquicas não serão apenas um teste de força para os partidos, serão também um retrato do país que emerge do novo ciclo político.
Tenho utilizado este espaço, que o ECO simpaticamente me disponibiliza, para muitas vezes escrever sobre centralismo, regionalização, elites locais e até sobre uniões de freguesias. Acredito piamente que os espaços de poder local podem ser mais eficientes na gestão de um conjunto de temáticas do que a administração centralizada, bem como podem ser sítios ideais para a formação de lideranças assentes na proximidade e no conhecimento direto dos problemas das populações. É evidente, também, que muitas vezes, pela falta de escrutínio, se tornam locais de fermentação de ‘Ezequiéis Valadas’ em potência. Não posso negar, mas mais poder trará mais escrutínio e atenção mediática, podendo evitar esses casos.
Em dezembro do ano passado, escrevia aqui no ECO sobre os ciclos autárquicos, tentando antever o que podemos esperar destas eleições que se avizinham. Retirar ilações nacionais dos resultados locais nem sempre é fácil e pode mesmo ser desajustado, apesar de Guterres ter aí criado precedência. Contudo, depois dos enormes incêndios deste verão, a tentação será muito grande, mas devemos lembrar-nos que, em 2017, logo após os incêndios de Pedrógão Grande, o PS de Costa, não só teve mais câmaras, como cresceu face a 2013.
Voltando aos números que usei no artigo de dezembro, é verdade que, historicamente, o PSD tende a ter dificuldades em ganhar quando está no governo, tanto em número de presidências, como em variação desse mesmo número. Todavia, também é verdade que a dinâmica cíclica subjacente às eleições autárquicas favorece, no caso, as aspirações de Montenegro para as eleições de outubro.
Feita a análise macro inicial, quando entramos na filigrana, percebemos que o cenário não é assim tão simples. Entre dezembro e hoje, tivemos umas eleições legislativas que alteraram completamente o panorama político a que estávamos habituados no pós-74 – pela primeira vez, o PS ficou em terceiro lugar. Não é expectável que o mesmo suceda nas autárquicas, até porque hoje o PS tem 149 presidências, o PSD tem 114 e o Chega não tem nenhuma. No entanto, Ventura e o Chega sabem que não serão o segundo maior partido sem uma implantação concelhia condizente.
Até por isto, a aposta de Ventura nestas eleições foi fortíssima, com candidaturas próprias a todos os municípios e o envolvimento de praticamente todo o grupo parlamentar em candidaturas, ora às câmaras, ora às assembleias municipais. Nas legislativas passadas, o Chega venceu 60 concelhos, concentrados especialmente a sul do Tejo. Desses, 21 (como noticia o Expresso) têm os atuais presidentes com impossibilidade de recandidatura, de onde se destacam municípios como: Sintra, Portimão, Loulé, Olhão, Silves, Palmela ou Montijo.
Claro que Ventura joga em dois tabuleiros e a vitória é mais do que certa. Com cautela, têm aparecido vozes a falar da possibilidade de conquistar até 30 câmaras (metade das vencidas nas legislativas) ou das 20 onde os presidentes saem de cena. E a verdade é que muitos foram os concelhos onde o Chega não ganhou, por margens curtas: tomemos o exemplo de Évora. Aqui o Chega ficou em terceiro, com 23.2% dos votos, tendo ganho a AD com 27.87%; o PCP que lidera a autarquia teve 7.37%. Em 2021, nas autárquicas, a CDU ganhou com 27.44% dos votos, tendo o PS ficado em segundo com 26.27%. É perfeitamente expectável que neste cenário de eleição a quatro, em outubro, a presidência se possa decidir entre os 22% e os 24% dos votos, onde o Chega, não tendo ganho, pode ser competitivo.
Bem, como dizia, Ventura joga em dois tabuleiros. Na realidade, joga na possibilidade de ter uma vitória retumbante e ser a terceira força autárquica destacada em presidências de câmara ou de freguesia, vereadores e deputados municipais. Contudo, caso algo corra mal, em 2021, teve apenas 4.16%, tendo elegido 19 vereadores. Por comparação, será sempre uma vitória.
Neste panorama, e depois das últimas eleições, tenho visto muitos analistas olhar para o Chega como essencialmente um problema eleitoral para o PS – foi assim em maio. Mas as autárquicas não são iguais e basta ter mais um voto para se eleger o presidente. É verdade que o mapa a norte do Tejo, há meio ano, estava pintado de laranja; enquanto a AML, o Alentejo e o Algarve se pintavam ora de rosa, ora de azul. Mas também é verdade que o PSD ganhou muitos daqueles municípios por pouco e um PS menos fragilizado pode voltar a ser competitivo, aliado a alguma sangria de votos da AD para o Chega. Não digo que seja o mais provável, a experiência diz-nos que não, mas também nos diz que o crescimento de Ventura tem sido constante, galopante e incerto nas consequências.
Enquanto o Chega tenta crescer e efetivar os ganhos de maio, o PSD tenta recuperar a ANM, o PS tenta evitar uma catástrofe, a IL quer mostrar que não vai seguir os passos autárquicos do BE, o PCP quer dar uma prova de vida nos seus bastiões e o CDS quer atrasar a morte inevitável. Cada partido luta por um objetivo muito claro e bastante relevante para o seu futuro imediato e a médio prazo. Em cidades como Lisboa, Porto, Sintra, Gaia, Cascais, Loures, Amadora, Seixal, Gondomar, Coimbra, Setúbal, Funchal, Aveiro, Faro, Évora, Santarém, Loulé, Portimão; em dezenas de cidades e concelhos relevantes socialmente para o país, teremos eleições competitivas a decorrer.
No fim, não será apenas o Chega a testar a sua capacidade de crescer. Cada partido, à sua maneira, joga nestas autárquicas a sua própria sobrevivência política. As eleições autárquicas não serão apenas um teste de força para os partidos, serão também um retrato do país que emerge do novo ciclo político. Entender os resultados será essencial para compreender o que nos espera na próxima década. Outubro poderá não ser só uma noite eleitoral, mas o início de uma nova era.
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