Baile de Máscaras

Em Portugal não somos dados a grandes angústias. A liberdade convive com o medo e o medo recomenda cautela e segurança. Recomendo pois uma leitura política com máscara.

Na rua vejo mais pessoas de máscara do que cães com açaime. As máscaras tornaram-se parte da paisagem urbana com rostos estáticos pendurados em pedaços coloridos de tecido. Comecei a reparar na expressão dos olhos nacionais, ou não fossem os olhos o espelho da alma. Em Portugal o debate sobre o uso da máscara não existe. O Governo manda, o Governo sabe. Os portugueses vão obedecendo enquanto asfixiam sob um sol abrasador. As claques de futebol parecem estar isentas e o tradicional português superior exibe a sua imunidade natural baseada no conhecimento de quem já viu muita coisa e não tem intenções de morrer. Mas adiante.

Existem várias teorias sociológicas para o significado da máscara.

  • Em primeiro lugar, a máscara é de facto um açaime, pois evita que o portador cause dano físico e moral à comunidade, seja pela propagação viral, seja pela privacidade de um rosto fechado e sem opinião.
  • Em segundo lugar, a máscara é um sucedâneo do preservativo, pois permite que o portador desafie o perigo, o pedaço proibido, sem sofrer as consequências de uma decisão marcada pela adrenalina do risco.
  • Em terceiro lugar, a máscara é uma extensão da personalidade do indivíduo, veja-se a paleta infinita de cores, motivos, padrões que animam os passeios da cidade como personagens de uma realidade transformada num teatro. Acresce a este ponto o facto de a máscara ser um objecto de propaganda política, um espaço a preencher com todo o tipo de mensagens, desde a denúncia do capitalismo financeiro, mais a catástrofe climática, mais a supremacia branca, mais a primazia do populismo.

As grandes firmas de cosméticos percebem que o batom é um acessório pré-pandemia e apostam nos eyeliners e sombras fluorescentes a lembrar o glamour de Rihanna e o mistério dos olhares do Médio Oriente. O capitalismo é uma fábrica infinita a definir tendências, a estimular necessidades, enfim, a produzir lucros e riqueza.

Mas a utilização da máscara não se pode resumir exclusivamente a um episódio de etiqueta respiratória. Na realidade, a máscara reduz a capacidade social da interacção humana, tanto podendo gerar confiança, se o uso for obrigatório e universal, como tendo potencial para gerar desconfiança e fenómenos de agressão social e exclusão.

A máscara introduz na dinâmica das sociedades contemporâneas um efeito de “esterilização da atmosfera” social, pois perde-se a percepção de um sorriso, desaparecem as infinitas e subtis expressões que animam o rosto humano, impossibilita a cumplicidade de uma conversa ocasional, asfixia a ironia de uma palavra sussurrada. Sendo obrigatória e universal, a máscara representa uma forma de confinamento das emoções humanas, o que justifica perguntar ao Governo se existe uma estratégia de saída deste confinamento emocional. A máscara é a concretização de uma consciência que assume que o vírus representa uma ameaça existencial para toda a Humanidade.

Existe obviamente um outro lado da questão. Ao tornar o uso da máscara numa regra geral, o Governo está a criar uma nova norma social. Uma norma social que representa sobretudo um mecanismo de acção colectiva que se sobrepõe e acrescenta e compensa os factores de decisão individual e que estabelecem os comportamentos sociais em tempos de normalidade. Neste sentido a propagação social do vírus terá mais probabilidade de poder ser mitigada.

Mesmo uma sociedade estabelecida na primazia do indivíduo existe um largo espectro de decisões dispersas e que vão do racional ao irresponsável, daí que nesta situação particular e excepcional poderá existir um benefício colectivo na utilização obrigatória e universal da máscara. Neste particular, o individual condicionado e o escrutínio colectivo cruzam-se no efeito exponencial e preventivo para a segurança da comunidade.

Em termos objectivamente mais políticos, é observável no debate global a proliferação de um negacionismo face ao vírus e à projecção da pandemia. Nesta narrativa alternativa, as máscaras são uma afirmação política à Esquerda, uma vez que assumem o estatuto de uma imposição do Estado supremo face à superior soberania do indivíduo.

Por outro lado, o debate global é também marcado por uma espécie de xenofobia biológica, uma outra narrativa em que a pandemia é o resultado de uma agressão exterior à comunidade, logo as máscaras são o símbolo de uma ameaça impessoal, invisível, não no domínio da saúde pública, mas da perspectiva das grandes movimentações geopolíticas em busca do domínio global. Neste sentido, a utilização da máscara é o primeiro sintoma de uma doença política caracterizada pelo declínio interno, pela imposição externa, pela degradação política e sobretudo económica. Para esta sensibilidade política, a preservação da saúde pública implica a sabotagem da saúde económica.

Em Portugal não somos dados a grandes angústias. A liberdade convive com o medo e o medo recomenda cautela e segurança. Quando metade da Europa não permite a entrada de portugueses, considerando para todos os efeitos Portugal como um Estado falhado, os portugueses acham tudo muito interessante, estão perfeitamente de acordo e o problema está com os técnicos reputados. Confirmo apenas que escrevi esta crónica sem máscara. Recomendo pois uma leitura política com máscara.

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