Blocos & Coligações

A democracia portuguesa é uma camada fina à flor da pele. O país real não tem relação com o país imaginário da Europa.

No país político bloqueado surge a AD. Uma velha aliança para um novo país. A direita clássica coliga-se para fazer frente ao desconhecido. A solução parece óbvia e saída do compêndio político das soluções testadas. A AD encaixa no espírito do tempo, na lógica dos grandes blocos ideológicos, na diversidade interna de uma invenção política sem novidade. Importa agora reinventar o CDS e reinventar o PSD.

Se a AD é apenas um expediente para maximizar a aritmética eleitoral pode ser pouco e pode ser muito. Pode ser pouco porque não acrescenta nada ao país. Pode ser muito porque evita uma maioria de esquerda ou talvez não. Na ciência política avançada da AD, está contida a crítica que os extremos sempre fizeram à democracia liberal – deixar o destino da nação entregue à “mercearia eleitoral”. Aliás, a “geringonça” e a tendência “parlamentar pura” que o regime insiste em exibir só serve os interesses de uma direita radical e anti-sistema que sonha ganhar o sistema para mudar o sistema. A direita que fica de fora é a nova direita que o regime inventou – uma máquina política de oportunismo e de radicalismo infantil. Se a AD é o gótico político português, a nova direita é o excesso dramático de um barroco boçal.

A política portuguesa democrática atravessa uma estranha fase de transformação. A direita agita-se à procura de uma identidade que corresponde à sua função política. Chega e Iniciativa Liberal procuram um novo “desígnio” para o país de Abril. O Chega injecta o país com a ideia de uma democracia iliberal e musculada, talvez proto-fascista, um tema recorrente nas correntes mais “tradicionais” e saudosistas da direita portuguesa. Os Liberais pretendem a inocência de uma solução liberal para um país sem cultura liberal.

Adquirida está a fragmentação do espaço politico à direita, fragmentação em todas as direcções e com diversos graus de radicalismo. E radicais porque desprezam o “bloco central” e radicais porque supostamente apresentam as soluções para a “raiz” do problema político português. A “raiz” do problema político português é para estes partidos a esquerda. Tudo o que mexe à esquerda é uma fraude política responsável por todos os atrasos, os prejuízos, os enganos, os abusos, a falência das instituições, a degradação dos costumes, a indigência das empresas, a pobreza dos portugueses. Chega e Liberais são democratas de uma nota só em que a esquerda é a responsável por todos os males que afligem o país e massacram os portugueses.

Mas que não haja ilusões relativamente às credenciais democráticas dos partidos progressistas. Para a esquerda, a “raiz” do problema político português reside na existência da direita. Esta é a grande identidade da esquerda para além da pequena grande sofisticação ideológica. Nada une mais a esquerda que o ódio à direita, e escrevo ódio, porque é de ódio que se trata. Nada une mais a direita que o ódio à esquerda, e escrevo ódio, porque é de ódio que se trata.

Esta transformação política é alargada e polarizada pela falência do respeito político entre os dois grandes partidos centrais ao sistema. O PS olha o PSD como uma representação do mal e de todas as injustiças sociais. O PSD observa o PS como um exemplo maligno de oportunismo e de hipocrisia política. A democracia portuguesa está entregue a esta dança macabra entre amigos e inimigos. Os amigos são da nossa cor. Os inimigos são de outra cor. O confronto político torna-se uma guerra política entre duas soluções exclusivas em que a vitória de um lado implica a degradação e a humilhação do outro lado. A democracia de Abril destruiu as pontes e construiu os muros. A democracia portuguesa está transformada numa realidade formal que ainda vai poupando o país às consequências de uma guerra civil que vive nos discursos.

E onde fica o país neste estado democrático? Não fica para além de um apêndice incómodo que resiste pelo voto às soluções políticas perfeitas à esquerda e à direita. O país estagnado que empobrece, que paga impostos, que é razão de ser de um estado permanece à deriva porque ninguém é responsável por nada. O apuramento das responsabilidades políticas não existe na democracia portuguesa. O governo é um passaporte para a impunidade. A oposição é uma licença para a irresponsabilidade. A negação da responsabilidade política separa ainda mais o universo político entre esquerda e direita. A negação da responsabilidade política divide o país entre o estado e a sociedade e divide a sociedade entre poderosos e dependentes. Para a esquerda tudo são direitos. Para a direita tudo são deveres. A“dialéctica estéril” da responsabilidade política representa o impasse de um país com poucas tradições democráticas, com um estado forte, com uma sociedade civil fraca, um país sem apólice e sem seguro.

A democracia portuguesa é uma camada fina à flor da pele. O país real não tem relação com o país imaginário da Europa. Sempre distante da história, o país é o paraíso com o sol sem manchas, uma estátua com traços de mau gosto. A realização política é sempre inferior e a obra feita é sempre a sombra escura da obra sonhada.

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