Bruxelas manda, Lisboa obedece: Paradoxo de Rodrik

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 9:47

Portugal, como outros países periféricos da Zona Euro, enfrenta um dilema estrutural: ou continua a apostar na integração e aceita as limitações à sua soberania, ou procura recuperar maior autonomia.

O Paradoxo da Globalização, formulado pelo economista Dani Rodrik, defende que é impossível conciliar, em simultâneo, integração económica global plena, soberania nacional total e democracia robusta. Na prática, os países podem aspirar a dois destes pilares, mas terão inevitavelmente de abdicar do terceiro. Portugal, enquanto membro da União Europeia e da Zona Euro, é um caso paradigmático deste trilema.

Ao longo das últimas décadas, Portugal priorizou a integração económica, beneficiando do acesso ao mercado único europeu, da livre circulação de capitais, bens e pessoas, e da adoção do euro como moeda única. Esta opção trouxe ganhos significativos em termos de comércio, investimento estrangeiro e modernização da economia. No entanto, a adesão à União Europeia implicou uma redução substancial da autonomia política portuguesa, sobretudo da política económica (quer monetária quer orçamental). Ao abdicar da política monetária (agora conduzida pelo Banco Central Europeu) e ao submeter-se a regras orçamentais comuns, Portugal viu-se limitado na capacidade de responder de forma independente a choques económicos.

A crise da dívida soberana entre 2010 e 2014 ilustra bem esta realidade, mas não foi a primeira vez que Portugal recorreu ao FMI. O país já tinha sido intervencionado em 1978-79 e 1983-85, antes de pertencer à União Europeia, num contexto de menor integração económica internacional e com moeda própria. Nessa altura, apesar de impor ajustamentos, o FMI não limitou completamente a soberania nacional: Portugal manteve alguma margem para desvalorizar o escudo e definir políticas monetárias próprias. Além disso, os montantes emprestados pelo FMI foram significativamente menores, pois o país utilizou a sua “máquina de fazer dinheiro” para o ajustamento interno. A austeridade nesses anos foi feita sobretudo através da desvalorização da moeda e, como as perceções dos agentes económicos, sobretudo das famílias, são maioritariamente nominais, a descida do poder de compra real não foi tão sentida porque a população tinha mais dinheiro no bolso em termos nominais. Em contraste, durante a intervenção da troika, com o euro e as regras europeias, a autonomia para esse tipo de ajustamento desapareceu, e a austeridade teve de ser aplicada de forma direta, com cortes salariais e aumentos de impostos, tornando o seu impacto mais visível e socialmente contestado.

Portugal, tal como outros países periféricos da Zona Euro, enfrenta um dilema estrutural: ou continua a apostar na integração e aceita as limitações à sua soberania, ou procura recuperar maior autonomia, arriscando custos económicos e possíveis fraturas políticas. Mas este paradoxo não se aplica apenas à periferia. A própria Alemanha, motor da economia europeia, também vive o trilema entre integração, soberania e democracia. Ao beneficiar de um euro relativamente mais fraco do que um marco alemão seria, a sua economia exportadora prospera no mercado único. Todavia, para manter a coesão do bloco, Berlim tem cedido parte da sua soberania orçamental e assumido responsabilidades financeiras em momentos de crise, gerando debates internos sobre a legitimidade democrática de decisões tomadas a nível supranacional.

Esta reflexão é particularmente relevante num momento em que se discute o futuro da União Europeia e os equilíbrios entre um governo supranacional não eleito pelo povo e a legitimidade democrática deste processo.

O conceito de “tríade impossível” ou “trilema” aparece em áreas tão diversas como a política, a economia e a tecnologia, evidenciando limitações que impedem a concretização simultânea de três objetivos desejáveis. No Paradoxo da Globalização, Portugal é um caso paradigmático no contexto europeu. A integração europeia abriu ao país o mercado único e trouxe estabilidade monetária, mas à custa de uma parte significativa da sua soberania económica. Com essa perda de autonomia, também as decisões políticas plenamente democráticas a nível nacional, alicerçadas em eleições diretas do povo, perderam grande parte do seu peso político. Muitas das ‘políticas chaves’ passaram a ser definidas por instituições supranacionais que não são eleitas diretamente pelos cidadãos portugueses. Bruxelas manda e Lisboa obedece. Este padrão de restrições tem um paralelo na tríade impossível da política monetária, descrita no modelo de Mundell-Fleming. Segundo esta teoria, um país não pode manter ao mesmo tempo um regime de câmbios fixos, livre circulação de capitais e uma política monetária independente.

O caso do franco suíço entre 2011 e 2015 corrobora bem este dilema. O Banco Nacional Suíço (BNS) estabeleceu um floor de 1,20 francos por euro para evitar a valorização excessiva da moeda helvética face ao euro, num período em que o BCE expandia o seu balanço para superar a crise das dívidas soberanas na Zona Euro. Para manter este câmbio fixo (peg), o BNS foi obrigado, ao longo desse período, a imprimir francos suíços e a comprar euros massivamente, aumentando a sua base monetária e, por consequência, a liquidez na economia (massa monetária), alimentando gradualmente receios de pressões inflacionistas Quando o BCE informou que iria avançar para um programa de quantitative easing (QE), o BNS, não querendo continuar a imprimir moeda, e receando um surto inflacionista, decidiu abandonar o cap de 1,20 no dia 15 de janeiro de 2015. O resultado foi uma valorização imediata do franco de cerca de 30% face ao euro, confirmando que o trilema monetário não podia ser contornado.

Até no universo digital encontramos uma versão deste fenómeno, no chamado “trilema das blockchains”. Nas criptomoedas como o Bitcoin, é praticamente impossível conciliar segurança, escalabilidade e descentralização. Aqui, a escalabilidade pode ser vista como a capacidade da rede se tornar verdadeiramente global, suportando milhões de utilizadores e transações sem perda de desempenho. No entanto, o Bitcoin privilegia a segurança e a descentralização, sacrificando essa dimensão global ao processar apenas um número limitado de transações por segundo. Por isso, muitos entusiastas da primeira criptomoeda do mundo veem-na mais como uma reserva de valor, o chamado “ouro digital”, do que como um instrumento para facilitar as trocas no dia a dia. Soluções que visam aumentar a escalabilidade e, consequentemente, a sua projeção global, como as redes de segunda camada (ex.: Lightning Network), implicam algum grau de centralização, comprometendo o ideal de um sistema plenamente descentralizado. Tal como no paradoxo de Rodrik, mais globalização exige a renúncia a outros valores fundamentais.

Também no investimento, o dilema clássico surge entre risco, rentabilidade e liquidez. Um ativo com elevada rentabilidade e elevada liquidez tende a implicar risco mais alto, como acontece com criptomoedas. Produtos com baixo risco e elevada liquidez, como depósitos a prazo, oferecem retornos modestos. Já se se procura rentabilidade com baixo risco, a liquidez é normalmente baixa, como em imóveis ou fundos de pensões. O investidor, assim, nunca consegue maximizar ao mesmo tempo as três variáveis: risco, rentabilidade e liquidez.

Na política orçamental, o trilema é entre reduzir a dívida pública em percentagem do PIB, proteger despesas essenciais (saúde, educação, defesa, apoios sociais) e evitar o aumento de impostos. Para reduzir o rácio dívida/PIB são necessários excedentes orçamentais, o que implica cortar na despesa ou aumentar a receita. Se não se mexe nas áreas sociais nem se agravam impostos, só um crescimento económico muito forte pode resolver o dilema. Caso contrário, será preciso sacrificar um dos vértices: abdicar de uma redução rápida da dívida, cortar despesas sociais ou aceitar maior carga fiscal.

O denominador comum destas tríades é que os sistemas complexos enfrentam restrições fundamentais ao procurar otimizar três objetivos em simultâneo. Qualquer tentativa de as equilibrar exige escolhas difíceis e compromissos, implicando inevitavelmente aceitar perdas num dos vértices. Estaremos sempre algures numa das arestas do triângulo, consoante qual dos três objetivos se pretende maximizar (ou priorizar).

Em jeito de conclusão, e regressando à integração de Portugal na UE, se a Europa avançar para uma integração global mais profunda, capaz de rivalizar com os EUA e a China, enfrentará o dilema do Paradoxo da Globalização de Dani Rodrik: não é possível conciliar, em simultâneo, integração económica global, soberania nacional e democracia plena. Uma maior abertura ao comércio e ao investimento exigiria uma coordenação interna reforçada, com políticas orçamentais, sociais, energéticas e de defesa mais centralizadas. Isso implicaria uma perda adicional de soberania para os Estados-membros, que veriam decisões cruciais tomadas a nível supranacional, ou seja, um poder cada vez mais centralizado em Bruxelas. Se a União Europeia quiser preservar alguma soberania, terá de aceitar um défice democrático: decisões mais tecnocratas e menos sujeitas ao escrutínio direto dos cidadãos, para evitar bloqueios políticos internos. Em suma, mais integração global exigirá à Europa escolher entre sacrificar soberania ou abdicar de parte da sua democracia plena. Mas a Europa precisa de avançar, caso contrário perderá influência nas próximas décadas e será relegada para segundo ou terceiro plano no próximo século.

 

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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